Alma escrita por Flora Niandre


Capítulo 4
O Pedido do Coelho


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo deu um pouquinho de trabalho para arrumar, diálogos não são meu forte ~.~.

E também tem o fato que o trabalho está sugando todo meu tempo, então só consigo mexer nos capítulos nas minhas folgas.

Muito obrigada a todos que esperaram, aqui está mais um pouquinho de "Alma"!



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Tento dar mais um passo, mas três crianças insistentes me impedem, bloqueando meu caminho, rindo e me acariciando. Procuro Matthew à frente, mas não o vejo. Com certeza já avançou muito.


Suspiro desistindo, me deito cruzando as pernas dianteiras e com a cabeça erguida. Vendo que me rendi, as meninas riem divertidas. Devem ter diferença de um ano; a mais nova, que talvez tenha quatro anos, carrega uma flor murcha, e todas elas usam um simples vestido marrom acompanhado de um avental encardido, com cabelos fartos e morenos presos em tranças frouxas, escondidas por um chapéu branco. Animadas, as crianças montam a mais nova em minhas costas, que puxa minhas orelhas e pelos, me deixando ligeiramente desconfortável. De longe, uma mulher na faixa dos seus vinte anos observa a diversão delas, sem demonstrar preocupação.


Em meio às risadas, a mais velha enfia os calcanhares em minhas costelas. Repetindo esse movimento, as outras duas o reproduzem, me obrigando a levantar. Cuidadosamente me ponho de pé, as perninhas da pequena balançam. Dou passos cautelosos em direção à mulher que nos observa. As crianças se divertem ainda mais, apertando meus pelos. Percebendo que tento alcançá-la, a mulher vem até mim.


— Vamos, desçam. Já encheram demais o pobre animal. — Ela puxa bruscamente a menina mais nova, que cai no chão fazendo um barulho terrível.


Sem entender o que aconteceu, a menina começa a chorar, e as outras, assustadas, prendem-se na saia da mulher.


— Chega de choro, venha. — Se abaixa para pegar a criança, mas a mesma se recusa.


Sento-me ao lado da menina, levando o focinho até sua bochecha, lambendo-a várias vezes. O choro incessante se transforma em risos, devido às cocegas que a fazia sentir. Afasto-me de seu rosto, e ela se levanta, tentando me abraçar.


— Pronto, vamos embora. — A mulher estende a mão para a menina, que a aceita.


A menina do meio pega a flor murcha que a outra derrubou oferecendo-a mim. Delicadamente seguro o caule da flor em minha boca.


— Obrigada — diz e corre até a mulher mais velha, seguindo as demais crianças.


Observo as quatro se afastarem. Pelo canto do olho, percebo um coelho de pelagem escura me encarando curioso. Viro-me para vê-lo melhor.
Um assovio faz minhas orelhas se mexerem rapidamente. Matthew está a minha procura. Com a flor ainda em minhas presas, levanto, impulsionando as patas traseiras, correndo em direção ao som, ignorando o coelho.

Matthew me espera impaciente de frente para uma construção alta de três andares. Diminuo a velocidade indo ao seu encontro.


Logo que chego ao seu lado, sua mão direita se levanta e abaixa bruscamente. Sinto uma pancada na cabeça, minha visão escurece e retorna segundos depois.


— Já disse que não pode se afastar de mim quando estamos indo cumprir uma missão. — Grosseiramente, ele arranca a flor que descansava em minha boca, jogando-a no chão.


Um rosnado sobe por minha garganta, balançando todo meu corpo. Novamente, ele desfere outro tapa, resmungando. Cesso o rosnado. Matthew adentra a construção grunhindo baixo.


Comparado com o quanto apanhava no começo, os tapas de agora não foram nada. Ele não me vê como humano, afinal, não sabe minha forma verdadeira. Independente de quantas vezes o deixei se deitar comigo, em sua mente não passa de um sonho.


Chacoalho a cabeça, ignorando a onda de raiva que domina meu corpo. Sigo os passos de Matthew, entrando na construção atrás dele. O lugar é bem simples, como de costume para essa época, sendo composto por uma mesa de madeira no meio, uma lareira atrás e uma escadaria à direita, levando ao segundo andar.


Dois homens me esperam sentados à mesa, ambos de barbas grisalhas e com pouco cabelo na cabeça. Um deles se levanta e fecha a entrada atrás de mim. O outro empurra o assento onde se sentava, revelando um acesso escondido no chão. O mesmo homem que arrastou o banco, levanta a porta revelada. Ouço a voz de Matthew vindo de dentro da abertura.


Aproximo-me, analisando a entrada. Uma escada precária de madeira leva ao porão escondido. A voz desesperada de uma senhora se mistura a gritaria de Matthew, que ordena-a a confessar.


Desço rapidamente as escadas. O porão escondido é enorme, escuro e sem janelas, e a única luz provém de várias velas acesas ao redor. A ventilação escassa vem das frestas da madeira do andar de cima. Respirar nesse lugar não é uma tarefa fácil. A mulher exausta, sentada à mesa, grita por piedade. Matthew continua rebatendo com gritos, mandando-a se confessar.

Percebendo minha chegada, os gritos da mulher aumentam. Apenas me sento, observando os acontecimentos. Os homens de antes descem ao porão, indo de encontro à mulher, forçando-a a se deitar sobre a mesa.


— Onde está sua marca, bruxa?! — Matthew grita. — Já estamos no quarto dia! Confesse!


A pobre senhora não consegue dizer frases que façam sentido. O medo e o cansaço já tomaram conta dela. Pelo seu cheiro de mato, ervas e flores, ela é como a mulher do baú: uma bruxa que usa plantas para fins medicinais.


Matthew se aproxima de seus ouvidos gritando ordens, aumentando o pânico da senhora. Ele sempre repete que não é de torturar, mas esse é o pior tipo de tortura.


— Chega! — Matthew ordena. — Façam o teste da água. Levem a mulher pelos fundos.


Os brutamontes obedecem, enganchando a mulher com força, um de cada lado, forçando-a a se levantar e andar. Sobem as escadas com Matthew os seguindo.


Suspirando, faço o caminho para segui-los, quando um barulhinho de pulos no chão de madeira me chama a atenção. Paro olhando para trás, na direção do barulho. O coelho de pelagem escura que me observava brincar com as crianças surge de um canto sem iluminação de velas.


— Você é a bruxa dos rumores, não é? Que está ajudando a nos matar e nossas senhoras. — diz ao se aproximar.


O encaro em silêncio.


— Ajude ela, por favor... — suplica.


— Não posso. — Sento-me à sua frente.


— Ela nunca fez nada. Aquelas crianças estavam com alguma doença, e minha senhora as curou. A mãe, achando estranho o fato de curar as meninas com ervas desconhecidas, a denunciou para seu dono. – As orelhas do coelho agitavam, seu corpo todo tremia. — Ela pode ser uma bruxa, mas não faz mal a ninguém! Nenhuma delas faz! Estão sempre usando do que sabem para ajudar aqueles que necessitam, não entendo por que estão nos caçando como animais.


Ele está certo. Normalmente peço a Laima que procure os possíveis alvos de Matthew, e sempre acertamos. Então, Laima sobrevoa suas casas durante a noite, procurando avisá-las, dando-lhes a oportunidade de fugir, se quiserem tentar.


Em um movimento rápido, o coelho se vira, voltando para a escuridão de onde viera. Retorna com uma flor branca — uma margarida — em sua boca.


— Só posso lhe oferecer isso em troca. — O coelho solta a flor sob suas patas. — Por favor!


Uma troca pouco equivalente, uma simples flor em troca de arriscar me expor a várias coisas. Provavelmente ele me viu com aquelas crianças quando me deram a flor e associou, em sua inocência, que isso me compadeceria. Solto um longo suspiro: infelizmente ele estava certo.


—Laima — chamo. Obedecendo ao meu comando, entra num rasante pela escadaria, pousando de frente para o coelho.


— Muito bem. Irei ajudá-la — afirmo. — Laima, viu para onde foram?


Laima acena com a cabeça, levanta voo, saindo por onde entrou. Impulsiono as patas traseiras, colocando-me em pé, com passadas apressadas vou até o coelho, pegando-o delicadamente em minhas presas e levo-o para fora. Seguindo Laima, uma ansiedade toma meu corpo. O pensamento de revê-la antes do dia que marcamos me faz aumentar mais e mais a velocidade.
Realmente haviam levado a mulher pelos fundos, adentrando a mata. Olho para o alto, procurando seguir Laima, que nos sobrevoa indicando as direções que deveríamos seguir.


Corro o máximo que posso, tentando ser delicada com o animal preso em minha mandíbula. A mata se fecha cada vez mais a nossa volta, diminuindo a claridade e nossa visão de Laima. Sem que precisasse chamá-la, a ave aparece voando ao meu lado. Paro de correr, colocando o coelho no chão enquanto Laima pousa de frente para mim.


— Estão logo à frente, ainda não jogaram a mulher. Estão no lago dela — sussurra.


— Tente avisá-la. Peça que afunde a mulher até que os homens se afastem — ordeno.


Obedecendo minha ordem, levanta voo novamente, fazendo um desvio à esquerda.


Dela? — pergunta o coelho.


— Vai conhecê-la — respondo. — Mas agora precisamos afastar os homens dela assim que jogarem sua senhora no lago. Consegue fazer algum barulho alto o suficiente para atrai-los?


— Acho que sim — diz confiante.


Concordo com a cabeça. Deixo o coelho para trás, indo até a beira do lago escondido, sentando ao lado de Matthew. Sua mão pousa em minha cabeça, afagando-a enquanto grita com a mulher. Olho para a água e lá está ela, escondida numa parte escura no fundo da água, retribuindo o olhar com uma piscadela. Ela se prepara para fazer o que pedi.


Os homens empurram a senhora, que cai, fazendo com que a água do lago espirre para todos os lados. Ela tenta subir novamente à superfície, mas é puxada para baixo. Pacientemente, os homens observam, esperando para ver se a senhora vai ou não boiar, revelando sua identidade.


O som dos arbustos sendo chacoalhados atrai a atenção dos três homens, e eles se viram para olhar. Matthew aperta a pele de meu pescoço, puxando-a juntamente com os pelos forçando-me a virar a cabeça em direção ao som. Ainda que esteja me obrigando, consigo ver parcialmente o que acontece no lago. Assisto calmamente a senhora ser erguida da água com a ajuda dela, do outro lado do rio. Ela consegue sair do lago e corre ofegante, se escondendo atrás de uma árvore de tronco grosso.


Foco o olhar para frente, para os homens vasculhando a área, tentando encontrar de onde surgiu o barulho. Matthew empurra meu pescoço, fazendo-me levantar para ajudar os homens na busca. Corro em direção ao arbusto que passou despercebido pelos homens, e o coelho se esconde, encolhido de medo. Farejo envolta dele, fingindo que busco algo.


Para minha sorte, pelo canto do olho avisto outro animal passando a minha direita. Corro até ele e o abocanho. Uma ratazana do tamanho de um gato agora se debate em minha boca.


Levo a ratazana até os brutamontes. Um deles arranca-a bruscamente de minha boca, segurando-a pelo rabo, enquanto balança de um lado para o outro, rindo da cena.


— Ora, era só um rato grande. — O outro homem ri, voltando-se para Matthew. – A água a rejeitou?


—...Não — responde analisando o lago. — Vamos embora.


Abaixo o focinho até o coelho escondido entre minhas pernas.


— Sua senhora está do outro lado do lago. Ela irá ajudá-la a atravessar. Depois, sumam daqui — sussurro para o coelho.


—Quem é ela? — insiste em perguntar.


—Whisper! — Ouço Matthew me chamar. Ignoro a pergunta do coelho, olhando para onde meu dono me espera impaciente.


Os chamados incessantes continuam por alguns minutos, e então, desistindo de me esperar, vai embora seguido pelos brutamontes. Observo a ratazana contorcer-se nas mãos de um deles conforme se afastam.


— Tudo bem em fazer isso? — A vozinha sussurrante do pequeno animal ecoa embaixo de mim.


— Por que não estaria?


— Sugar! — Ouço a voz da senhora. O coelho apressa-se em direção a ela saltitando e, ao alcançá-la, pula em seus braços, onde é recebido com ternura. Posso perceber a forte ligação que ambos compartilham.


— Obrigada — a senhora agradece, olhando para mim. — Sei que Sugar deve ter sido insistente com isso, foi algo totalmente contra o que faz, não é mesmo?


Olho-a confusa; não são muitas que sabem sobre mim, ou pelo menos sei que existem boatos entre elas, mas nenhuma certeza.


— Já vivi o bastante para saber das coisas apenas com o olhar. — Ela ri.


— O que vamos fazer agora? Não podemos voltar para vila. — Sugar pergunta, olhando sua companheira.


— Daremos um jeito. — Decidida, a senhora carregando seu amigo se vira para irem embora. Abro a boca para lhe perguntar sobre ela, mas sou interrompida. — Ah sim, sua amiga me disse que a espera aqui amanhã. Não pôde esperá-la hoje.


Um sentimento de descontentamento emerge contra minha vontade; chacoalho todo meu corpo a fim de expulsá-lo. Amanhã voltarei e conseguirei vê-la. A visão dela sentada à beira do lago inunda minha mente, deixando-me agitada. Sinto minha cauda balançar levemente.


Espreguiço-me lentamente com as patas dianteiras para frente. Melhor voltar para casa por agora. Está na hora de decidir com Laima o que faremos, pois prometi a ele uma conversa sobre nosso problema atual, já que claramente é uma idiotice acreditar no que alguém como ele diz.


Perguntei a mim mesma então como seria uma vida sem aquele homem que há tanto tempo atormentava meus dias e noites. Eu seria de ser livre por completo? Há quanto tempo Matthew vinha controlando meus passos e coração? Não dava pra lembrar, mas eu estava disposta a descobrir


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Notas finais do capítulo

Curiosidade de hoje: Matthew Hopkins foi um dos maiores caçadores de bruxas na Inglaterra. Existem livros contando sobre sua vida e um livro publicado pelo caçador onde ele conta como reconhecer bruxas e seu material usado para caça.

Até a próxima!



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