Alma escrita por Flora Niandre


Capítulo 2
Capítulo 2 - A Mulher do Baú




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O cheiro de terra molhada misturado ao de fezes humanas e animais incomodam minhas narinas, apesar de ser algo muito comum. Moscas irritantes voam por todos os lados, galinhas, cachorros e pessoas dividem as ruas enlameadas de chuva.
Um rebuliço está acontecendo, deixando as pessoas alvoroçadas. Mais bruxas serão caçadas, descobertas e mortas de diversas maneiras. E é claro que estou ajudando nessa caçada insana.
Minhas patas dão passos ritmados, calmos, acompanhando o homem ao meu lado. Posso sentir a empolgação de Matthew conforme avançamos em direção à casa da possível bruxa.
Uma multidão nos segue, sedenta de morte. Olhando em volta, percebo diversos homens praticantes da tão temida “bruxaria”, clarividentes, doutores que encontram a cura através de vozes, tão hipócritas quanto eu mesma, caçando a própria espécie.
Com um caminhar ritmado e decidido, nos aproximamos do nosso alvo. Pouco afastada da cidade, encontramos uma fazenda simples com uma casa pequena, aparentemente de dois cômodos. Galinhas e porcos correm soltos pelo celeiro, alvoroçados pelo barulho de gritos que nos acompanham.
Matthew para dois passos antes da porta de entrada, que nos recebe aberta. Minhas orelhas mexem-se rapidamente em alerta, farejo todo o ar vindo da casa. Ervas, flores, carne seca; identifico todos os aromas. Essa sim é a casa de uma bruxa.
— Whisper...- Matthew sussurra, abaixando-se em minha direção.
Sem mais espera, entro rapidamente na casa. O primeiro cômodo é a cozinha, no qual plantas secas pendem pregadas nas madeiras das paredes, e restos de aves mortas, penas e pelos descansam na mesa. No fogo da lareira a minha frente, há um caldeirão contendo um líquido borbulhante. Movo-me cautelosa para ver seu conteúdo, farejando o ar a sua volta. O que ferve dentro dele é apenas uma simples sopa de galinhas.
Afasto-me da lareira, e Matthew entra na casa. Sua expressão demonstra descontentamento perante as coisas que observa, ele vira-se bruscamente para a porta de entrada e grita sua visão, descrevendo tudo que vê de forma vil e cruel, como se estivéssemos na cozinha de um demônio.
Ignorando seu discurso, continuo meu trabalho, entro no próximo cômodo e localizo, à direita, um quarto pequeno. Debaixo da janela, há uma cama simples, apenas um estrado de madeira com cabeceira limpa, livre de qualquer adorno, entalho ou brasão. O colchão de penas, as cobertas e travesseiros estão caídos no chão. De frente para a porta, encontra-se um grande baú comprido e alto, completamente trancado com um grande cadeado e correntes. Ao lado da cama uma mesinha comum foi colocada, apenas um grande pedaço de madeira em cima de dois cavaletes, e em cima dela, uma bacia e jarra de água. A casa era tão comum como a de qualquer cidadão dessa época poderia ser. Ainda sim, Matthew continua sua descrição da casa do demônio.
Ando até o baú. Um cheiro estranho emana do mesmo, algo se esconde dentro dele. Calmamente encosto a pata direita na tampa da caixa de madeira, que é muito maior do que os usuais, e algo movimenta-se rapidamente, impedindo-me de fazer qualquer fazer qualquer aproximação. Um gato branco salta de trás do caixote, chiando ameaçadoramente. Esquivo, afastando-me. O animal encara-me rosnando; sua cauda e todos os pelos do corpo eriçam-se. Sento-me de frente para ele.
— Por que vocês não fugiram quando dei a chance? – Abro a boca, deixando as palavras saírem.
— Não há escapatória. Quantas bruxas que você deu essa tal “chance” saíram com vida? — rebate o gato, rosnando ainda mais alto. — Percebi seu pássaro sobrevoando nossa casa há dias.
— É um aviso. Laima, meu familiar, sobrevoa as casas para avisar vocês, dando a chance de fugirem. — Deito-me cruzando as patas, mantendo a cabeça erguida.
— Ninguém escapa da bruxa traidora. – O rabo do animal mexe-se rapidamente, mostrando seu desgosto. – A bruxa que caça sua própria raça! Estávamos ótimos! A noite ia bem, teríamos nossa deliciosa sopa para o jantar! Mas o maldito pássaro, os gritos!
— Holt! – Uma voz suplicante grita de dentro do baú.
O felino vacila, desviando sua atenção de mim para o baú, e é desse momento que me aproveito. Num bote preciso, abocanho o bichano pela garganta. “Holt” debate-se inutilmente, sem conseguir atingir-me com suas unhas. Solto-o e piso em suas costas, prendendo-o no chão.
Levanto a cabeça, posicionando as orelhas para trás, e um uivo cruel sai de minhas entranhas, percorrendo todo o caminho até soltar-se de minha boca.
Matthew entra correndo no cômodo e olha para mim, percebendo o gato indefeso sob minhas patas. Desvio meu olhar dele e encaro o baú.
Um grito de felicidade e insanidade explode de sua garganta. A mulher do baú, que entendeu a situação, grita desesperada. Sua voz sai entre soluços, várias vezes mencionando o nome do gato que prendo firmemente. O animal, por sua vez, mia o nome de sua dona com o tom tão choroso quanto o dela.
Sem esforço nenhum, Matthew puxa o que consideraria sua “arca de tesouros”, levando-o para o cômodo principal da casa. Posso ouvir a euforia da multidão, vários passos e gritos, homens ajudando Matthew com a carga.
Holt estremece sob minha pata, gritando, chiando, tentando fugir em vão. Abaixo-me, deitando ao seu lado.
— Mesmo se eu te soltar agora, você não vai poder fazer nada — sussurro em sua orelha.
— Whisper! – Matthew chama meu nome.
Abocanho novamente o gato pelo pescoço. Minhas palavras o afetaram, pois ele já não se mexe mais. O chão de madeira range conforme ando, olho todos os cantos da casa, e o gato em minha boca parece fazer o mesmo, como se estivesse relembrando de todos os momentos que viveu nesse lugar com sua dona.
Fecho os olhos, reprimindo qualquer sentimento de culpa ou tristeza. Impulsionando as patas traseiras, corro para fora da casa com minha presa balançando de um lado para o outro.
A multidão espera-me do lado de fora. Um grupo de pessoas com tochas em mãos passam por mim, jogando-as na casa, e o fogo espalha-se timidamente, quase de luto pelo que acontece.
Crianças tentam pegar o gato de minha boca. Rosno ferozmente para afastar qualquer um que se aproxime.
— Deixem o cachorro em paz! — Alguém grita para as crianças, que desistem de sua irritante missão.
Atravesso as pessoas, chegando até Matthew. Quatro homens carregam o baú gritante, enquanto meu dono segue atrás com um sorriso satisfeito.
— Achou um belo jantar hoje. — Ele acaricia minhas orelhas, olhando o gato.
Marchamos até a cidade, na praça central, encontrando uma pira parcialmente erguida, aguardando as novas vítimas.
Os homens deixam o baú cair pesadamente no chão. Outros se aproximam com machados, e ao vê-los Holt volta a chorar e espernear. Sento-me assistindo a cena. Com brutalidade, os machados destroem o tampo do caixote, sem o menor cuidado para não atingir a dama dentro dele.
Com a tampa destroçada, puxam a moça de dentro, e algumas partes de seu corpo magro sangram devido as machadadas. Seus cabelos ruivos dançam conforme ela debate-se. Outras senhoras são trazidas, amarradas em escadas. Mulheres simples, parteiras acusadas de sacrificar crianças que já nasceram mortas.
A única bruxa de verdade que será morta essa noite é a dona de Holt. Mesmo se debatendo, não consegue soltar-se dos braços firmes dos homens que a amarram.
Todas as vítimas são erguidas, choram, gritam, pedem piedade. Menos a dona do gato que pende em minha boca. Ela olha para todos com raiva, com sede de vingança. O fogo é aceso e espalha-se rapidamente, cruel. Um calor terrível toma conta do lugar. Holt mia desesperado. As pessoas gritam eufóricas, crianças dançam alegres umas com as outras, uma cena um tanto perturbadora.
Os olhos raivosos da dama da caixa de madeira encontram os meus. Observo escondendo qualquer remorso. Calmamente, solto o gato no chão. Seu rostinho felino encara-me com ódio.
Mesmo com a chance de atacar-me, Holt simplesmente me dá as costas, corre e atira-se no fogo, juntamente com sua dona.
O que parece durar uma eternidade chega ao fim. O que resta da pira é o cheiro de carvão e carne queimados. No ar dançam ao vento pequenos restos de roupas, fios de cabelo e palha carbonizados.
Aos poucos as pessoas deixam o local, vozes alegres comentam a noite de hoje. Várias pessoas rodeiam Matthew, chamando-o para uma comemoração. Claro que, enquanto o vangloriarem, meu dono nunca resiste ao convite. Seu ego nunca deixaria passar uma dose extra de mimo e atenção, algo que sempre lhe faltou.
Matthew faz seu caminho para a Taverna mais próxima, acompanhado por seus ajudantes dessa noite. Uma construção erguida na vertical, com paredes de pedras cinzas amparadas por tábuas de madeiras davam certa beleza ao edifício. O som de risadas, músicas e comemorações enche o ar. Matthew e seus companheiros adentram o local, e eu sento de frente para a porta, esperando minha recompensa.
— Whisper foi ótima novamente! — Ouço gritarem do lado de dentro. Uma galinha inteira é arremessada para fora.
Encaro a galinha assada à minha frente. Parte de sua carne está queimada, o que me fez refletir que o fogo deveria estar forte demais na hora que a assaram.
— Depois de todos esses anos fazendo as mesmas coisas — Com um rasante, Laima pousa à minha frente. —, já era para ter se acostumado.
Nunca me canso de sua beleza. Ele é um Quetzal-Resplandecente, não é muito grande, talvez uns trinte e seis centímetros, noventa e sete se somarmos a cauda. Uma pequena crista de penas decora sua cabeça, seu bico é curvo, largo e com cerdas na base. Suas penas são esverdeadas da cabeça até as costas e as asas, e seu abdômen é avermelhado.
— Ele provavelmente sairá bêbado e quem o carregará até em casa será você. — Não posso discordar de suas palavras, apenas o encaro. — Por que você o ajuda, afinal?
— Sinceramente? Ele é um abestado que só liga para fama e dinheiro... Mas ele se importa comigo.
Laima suspira, abre as asas e levanta voo, deixando-me sozinha com a ave assada.
O olhar da menina do baú invade minha mente. Mordisco uma das coxas da galinha na tentativa de reprimir o remorso o que foi totalmente em vão. Abandono o banquete dado a mim, enrolo meu corpo e fecho os olhos. Matthew ainda vai demorar a sair, e a noite é longa.

 


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Notas finais do capítulo

A curiosidade desse capítulo foi como dei o nome a personagem, foram dois motivos: 1 - estava assistindo um documentário sobre umas casas assombradas e umas das entrevistadas se chamava "Alma", me interessei por esse nome.

2 - estava super interessada no nome "Alma", então pesquisei na internet e surgiu um videozinho, depois que o assisti, tive a certeza que Alma era o nome perfeito para essa personagem!

Para quem nunca viu o videozinho, deixo o link: https://www.youtube.com/watch?v=irbFBgI0jhM

Espero que tenham gostado! Aguardem o próximo!



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