Noite Feliz escrita por Shelley


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Vocês acharam que eu não voltaria depois da minha história sobre o peixe doido? Bom, eu voltei! E espero que você goste disso aqui.

TW: ataque de pânico.



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Em um lugar muito longe de onde quer que você esteja lendo isso, havia uma casa. Apenas uma. A única em milhares de quilômetros. Em volta dela, um deserto enorme e o céu noturno cheio de estrelas.

Ele adorava estrelas porque, assim como ele, estavam todas sozinhas, morrendo no vácuo e escuridão. E porque elas eram parecidas com pontinhos brilhantes, de onde ele estava. Isso também era meio legal. Enfim, estrelas eram bonitas, a vida não e a criatura se distraía da vida com qualquer coisa que tivesse a ver com estrelas, como o horóscopo do jornal.

Aliás, todas as manhãs, ele via um único jornal cair do céu, como se o carteiro não quisesse mais passar pela sua casa desde aquele estranho incidente envolvendo um pé de alface. Mas o correio ainda tinha esse trabalho pra fazer, então esse era o jeito. Junto com o jornal, vinham alguns envelopes com contas, propagandas, maldições milenares, etc., porque é exatamente esse tipo de coisa que se acha em envelopes. Alguns eram realmente criativos e difíceis de distinguir, por exemplo:

“Está cansado dos mosquitos?
Cansado daquele zumbido insuportável?
Cansado? Cansado da vida, cansado de tudo?
Eu preciso dormir, ligue para o número no verso do cartão.”

“Antes de amar alguém, você precisa aprender a amar a si próprio. E aos répteis que comandam o planeta, eles exigem a sua adoração.
Vote Juninho para um governo melhor.”

“Ei, você aí! Você tem um momento?
O senhor possui um pedaço físico do tempo?
Ou, sei lá, sangue do tipo O?
Então ligue para o número atrás do cartão.”

Cada dia era uma aventura diferente mas, há algum tempo, ele havia aberto um envelope de que não gostara muito: um convite. Ele recebia o mesmo convite para a mesma ocasião todo ano e, em todos eles, ia para a casa dos pais por educação, cumprimentava os parentes e amigos pelo mesmo motivo, e voltava para casa arrependido de ter se levantado.

E, sendo aquele um ano exatamente igual aos outros, ele já se preparava para sair. Ajeitou o casaco, porque o Meio do Nada pode ser um pouco frio, e pegou o saco de pano que lhe rendeu aquele apelido ridículo. “Homem do Saco”. Às vezes, se perguntava o motivo daquilo; ele nem mesmo era um homem, era uma entidade inumana. E nunca havia colocado crianças no saco, que absurdo. Ele podia torturar suas almas, mas o saco era só porque combinava com a roupa. E porque ele gostava de carregar algo que não fosse o peso dos seus problemas. Um pouco dos dois.

Assim, dentro de alguns minutos, ele já estava se sentindo desconfortável, no meio de um monte de gente que conhecia, mas não tanto assim, desejando ser engolido pelo sofá. Do outro lado da sala, estava Noel com a esposa, o Coelho da Páscoa e qualquer outro cara que tivesse o próprio feriado. Pareciam estar se divertindo, com as máscaras de carne que usavam no lugar do rosto, para não assustarem nenhuma criança, retorcidas em sorrisos.

— Ô, meu querido – sua mãe se sentou no sofá junto com ele –, não tá com fome?

— Já comi, mãe, obrigado – mentira.

— Mas tá tão magrinho, parece que não se alimenta direito. Você ainda tá falando com os amigos? Tá cuidando da saúde?

— Tô sim mãe... – mentira.

A resposta não fora muito satisfatória, mas não houve uma resposta porque, do lado de fora da casa, alguém tocou a campainha e a ela teve que atender a porta, então levantou-se, dizendo algo sobre alguma tia.

Ele olhou para os lados e quase teve tempo de apreciar a solidão outra vez, mas havia um primo, e depois outro, então uma tia, os avós... Só depois de falar com quase todos da festa, teve cinco minutos sozinho. Chegou até a pensar em ir embora, mas seria bom demais. Nunca havia saído antes de duas horas da manhã, por que dessa vez seria diferente?

— O último convidado chegou – ouviu o pai gritar, perto da porta, apontando pra um primo de terceiro grau – Façam um roda, vamos começar o amigo secreto!

Nesse momento, ele queria se estapear por comemorar antes da hora. Não que não amasse a sua família, ou tivesse se esquecido do presente. Ele só odiava ambientes cheios e dinâmicas de grupo. E as indiretas que algumas pessoas resolviam jogar no ar durante as dinâmicas. E, talvez, comida apimentada, mas isso não vem ao caso.

De qualquer forma, a roda foi feita e, como de costume, um dos anfitriões iniciava o jogo. Sua mãe, então, foi ao centro da roda carregando uma caixa embalada em papel de embrulho roxo. Ela tirou um pedacinho de papel do bolso da saia e começou:

— O meu amigo secreto... Está nessa sala – as pessoas compartilharam uma risada constrangedora e ele sentiu uma leve vontade de morrer ali mesmo –, é famoso – ela olhou em volta –, deixa todo mundo feliz e é o melhor filho que eu poderia ter.

Noel se levantou ao som da roda batendo palmas. Enquanto seu irmão e sua mãe se abraçavam, o monstro sentiu um tapa forte nas costas e ouviu alguém perguntando “Vai deixar?”. O que ele podia fazer? Chamar o irmão para uma briga? É claro que ele iria deixar.

— Foi difícil escolher o presente – ela continuou –, você tem aqueles duendes na sua fábrica que fazem de tudo, e os presentes de agradecimento das crianças...

Ou ele poderia sair dali discretamente e chorar no banheiro. E foi o que fez, mais ou menos, porque, se não estivessem todos assistindo àquela linda cena familiar, sua retirada estratégica não teria sido nada discreta.

Era muito amor.

Nem se importou em acender a luz, apenas trancou a porta e tentou não chorar muito alto.

Ele queria ser amado também.

Suas costas estavam doendo, seus sentimentos estavam feridos e seus pulmões pareciam prestes a explodir. O ar estava indo embora, ele precisava de mais. De repente, a temperatura pareceu subir e, ao mesmo tempo que suava, ele queria um cobertor. Queria um abraço, um pedaço de pano, qualquer coisa que conseguisse escondê-lo. Ele se encolheu no chão do banheiro, o coração acelerado, tentava se agarrar ao casaco, tentava fazer aquela sensação ir embora.

Todos ali se amavam e ninguém o amava.

O silêncio estava começando a ficar assustador, quando ele ouviu batidas. A porta. Ele havia trancado a porta certo?

— Só um segundo – sua voz estava estranha, era melhor não ter dito nada.

Mais batidas. Dessa vez, ele realmente não respondeu. Apenas alcançou o interruptor e encarou o espelho. Jogou um pouco de água no rosto, secou e respirou fundo, então abriu a porta.

— Você tá legal? – ele respirou aliviado ao ver um rosto amigo – Precisa de alguma coisa? Um abraço?

Sim, um abraço. Ele precisava de um abraço. E nem precisou responder, apenas sentiu os seis braços do Monstro do Armário apertando o seu corpo.

— Quer falar sobre isso?

— Vamos só... voltar pra sala, ok?

De volta ao sofá. Noel havia ganhado uma lâmpada mágica e dado um carro para a Fada dos Dentes, que deu um baú para um leprechaun, que entregou um espelho decorado com joias para a Loira do Banheiro, que presenteou o Coelho da Páscoa com uma tarde grátis em um SPA.

— O meu amigo secreto – dizia o coelho – é um cara legal. Meio quieto, mas legal.

“Meio quieto”, a criatura repetiu as palavras mentalmente. Eram palavras que costumavam usar para descrevê-lo, além de “meio na dele”, “meio dark", "meio alternativo". A lista era imensa, então ele decidiu se levantar e ir até o centro da roda. Era melhor acabar com isso de uma vez.

— Aqui – o coelho o entregou um pequeno embrulho – é um dos melhores chocolates do mundo, eu sei do que tô falando – e saiu com uma piscadela.

Ele estava começando a se sentir mal de novo. Eram muitos presentes bons, muitos olhares à sua volta.

— Meu amigo secreto – começou baixinho, tentando não fugir de novo – meu amigo secreto é alguém muito especial e... Eu não sei, me viu crescer?

Mal acabou de dizer isso, e seu pai já vinha passando pelas pessoas, até chegar ao centro da roda, onde o abraçou com um grande sorriso, do tipo que ia de orelha a orelha. Na verdade, olhando bem, até passava um pouquinho das orelhas, mas isso não é algo para ser discutido agora.

— Eu... – a criatura disse, procurando o presente no saco, enquanto sorria de volta para o pai – o meu presente não é tão legal quanto o dos outros, é só... – puxou um cartão – é só esse cartão besta, desculpa não ter feito mais.

Seu pai pegou o papel dobrado com cuidado e leu: “Você me faz querer morrer...”. Era um cartão estranho mas, ao invés de questionar, limitou-se a abri-lo e ler o interior: “... De rir! Te amo, pai.”.

— Eu também te amo, filhão – disse rindo com a piada ruim. Ele adorava esse tipo de coisa.

Os dois se abraçaram e o jogo seguiu em frente. As coisas não pareciam tão ruins agora, o sofá estava mais confortável e um peso enorme havia sido tirado das costas da criatura. Não literalmente, o cartão era bem leve, mas acho que deu pra entender.


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Notas finais do capítulo

É, eu devia ter postado isso no natal, mas é aquilo: eu escrevi isso movida pela força do ódio e por ter que estudar. Eu claramente não tô sã aqui, então é isso.
Pode deixar um comentário, se quiser. Vai me fazer feliz :)