Percepção escrita por Lovelace


Capítulo 1
Único, como você




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A cena à sua frente se desenrolava quase em uma tragédia cômica: Sakura tentava guardar todas as centenas de folhas caídas no chão desorganizadamente enquanto o vento do ventilador jogava-as cada vez mais longe. Em determinado momento, ela desistiu de apanhar toda aquela bagunça e fechou as mãos em punho por alguns segundos, semicerrando os olhos, como se clamasse paciência para alguma divindade.

Sasuke sabia que seria um erro ajudá-la, pois a) ela já tinha sido completamente apaixonada por ele sabe-se lá desde quando e não fizera nenhuma questão esconder, desde declarações públicas a coisas sem sentidos, como espantar as meninas com quem ele ficava. Simplesmente assustador, embora, para o crédito dela, nada assim havia acontecido desde o começo da faculdade; b) isso poderia ser interpretado errado, principalmente pelo motivo “a”, o que poderia reacender todas as infantilidades para lá de irritantes de volta; c) talvez estivesse secretamente prestando mais atenção nela do que o saudável nos últimos meses, desde a palestra apaixonada que Sakura fez sobre neurociência em uma espécie de TEDX da UNICAMP, para ser mais exato, e isso deixava-o um pouco assustado pela improvável, e nada agradável, inversão de papéis. E mesmo que fizessem parte do mesmo grupo de amigos há anos, trocavam, no máximo, duas ou três sentenças por semana, quando muito.

Nenhum desses motivos, porém, fizeram com que seus pés parassem de se mexer até chegar ao lado dela e começar a ajudá-la a empilhar os papéis. Sasuke percebeu que ela parou de se mexer assim que ficou agachado, mas fingiu concentração e continuou seu trabalho. Assim que reuniu todos os que faltavam, levantou-se e entregou nas mãos dela, que tinha os olhos um pouco esbugalhados pela surpresa. Além de achar que a tonalidade deles era adorável e ficar um tanto impressionado, Sasuke também conteve um suspiro irritado: era tão surpreendente assim fazer um favor à uma conhecida? Sua mente lhe relembrou de algumas das milhares de vezes que fez isso, mas apenas a ignorou.

— Hum… Obrigada pela ajuda, Sasuke — ela agradeceu com a voz um pouco vacilante. Os olhos tinham se tornado curiosos.

Ah, sim, ela não usava mais nenhum sufixo em seu nome. Embora tivesse dito aos amigos que odiava aquilo e achava uma idiotice de uma Otaku sem noção. Quer dizer, precisava usar só porque ele é oriental? Mesmo tendo nascido e crescido em São Paulo e nunca pisado em solo Japonês? E embora negasse, ele foi sentindo falta com o passar dos meses do terceiro ano, em que ela nem mesmo lhe dignava um olhar depois que havia a dito algumas verdades desagradáveis.

Sasuke apenas deu um curto aceno em resposta.

— Você precisa de alguma ajuda? — perguntou, percebendo a quantidade de livros que ela também precisava carregar. Parecia pesado demais para alguém tão pequena e magra.

Sakura pareceu ainda mais surpresa com o questionamento, e ele viu que ela iria negar, então continuou:

— Se você estiver indo para a sala de xerox, eu posso ajudar. Também tô indo para lá agora.

Era uma grande mentira. Ele estava indo encontrar Naruto para pegar o ônibus para ir para casa nesse final de semana, mas Sakura não tinha como saber. E nem iria deduzir que Sasuke tinha mentido, adivinhando para onde ela iria. E de qualquer modo, estava adiantado uma aula.

— Ahh, tudo bem, então. — Ela sorriu suavemente, talvez indecisa,  e passou para ele metade do material depois de alguns segundos.

Sem esperá-la, Sasuke começou a andar até a sala. Céus, ele estava mesmo ficando nervoso? Se sim, era ridículo. A época de pré-adolescente tinha ficado no passado, sem contar que esperava estar sendo precipitado quanto aos próprios sentimentos. Não gostava da ideia de gostar de alguém aos 21 anos de idade. Era cedo demais e a probabilidade do casamento ser duradouro e feliz como o de seus pais era muito pequena. Sem contar assustadora.  

O seu corpo parecia não entender isso, porque sua boca coçava para abrir e começar a puxar assunto, porém não queria dar o braço a torcer. Sabia que Sakura queria conversar, pois ela abria a boca e fechava repetidas vezes, pelo que pôde perceber com o canto do olho. E ela também ficava um passo atrás, como se… Ele balançou a cabeça para desanuviar a mente.

Quando estavam na metade do caminho, um calouro, todo sujo pelo trote, quase caiu por cima dela, fez uma piada tosca e ainda lançou uma piscadela. Antes que Sasuke pudesse expressar sua indignação com ele, Sakura esbravejou de maneira tão incisiva que fez com que o menino corasse e baixasse a cabeça, envergonhado.

Assim que ele foi embora, ela se desculpou pelo rompante:

— Foi mal, Sasuke. É que certas coisas me deixam fula, sabe?

Ele olhou para ela e assentiu. Queria ter dito alguma coisa inteligente e substancial, entretanto, as palavras pareciam ter sumido, assim como a sua capacidade de raciocínio. Percebendo a brecha, Sakura continuou, como se estivesse aliviada por poder ter com quem conversar:

— Eu estou atolada de seminários e trabalhos, provas e monitoria e esse trote maldito dura uma semana quase. Quase não consegui falar com o meu orientador terça-feira. Quer dizer, não que eu queira que aquelas brincadeiras sem noção voltem, mas, Deus que perdoe, às vezes eu preferia, sabe? Esses calouros são insuportáveis! Eu não era assim! — As palavras saíram tão rápidas que ele não duvidaria se tivessem sido ditas em um só fôlego.

Sasuke poderia dizer que, sim, eles tinham sido tão insuportáveis quanto — pelo menos, Naruto, Kiba, Ino e ela. Sempre tinha sido avesso a multidões—, mas achou que seria imprudente, então assentiu outra vez e arriscou uma frase… monossílaba.

— Verdade.

Sakura olhou para ele com surpresa outra vez (Sasuke quis perguntar se ela só tinha aquela expressão agora) e depois riu com incredulidade e mordiscou o lábio inferior, como se quisesse contê-la.

— O quê? — ele questionou enquanto seu cérebro derretia ao som daquela risada estridente e… musical(?) e seus olhos capturavam a imagem sedutora.

— Hã, sabe, é que, sei lá, você parece sempre tão imperturbável, sabe? Eu não ficaria chocada se você dissesse que nem tinha notado.

Seu ego talvez não saísse ileso dessa conversa. Ela achava-o grosso e alheio? Não eram exatamente opiniões de uma garota apaixonada. Anos atrás, quando Naruto tinha dito que Sakura tinha partido para outra (s), ficara aliviado por não ser mais o objeto de sua atenção, mas, naquele momento, já não tinha certeza do que sentir sobre isso. Engraçado como a percepção muda dependendo do lado da moeda.

— É impossível não ficar incomodado com essa barulheira — ele respondeu, perplexo.  

Sakura anuiu em concordância.

— Éeee, verdade. Foi mal. — Depois de uma pausa silenciosa, ela perguntou: —  Cê não ficou chateado, não é?

Será que, somando tudo que ela já achava sobre ele, frágil e volátil também estavam na lista? Sasuke sentiu vontade de esmurrar alguma coisa.

— Não — respondeu, por fim. — Eu posso parecer meio indiferente mesmo — concordou. Apenas para que a conversa não morresse.

Mesmo que negasse para si e para o mundo, estava esperando aquela oportunidade há quase quatro meses. Não iria perdê-la, seja lá o que isso significasse ou que fosse acontecer. Ele percebeu que , de vez em quando, precisava deixar a vida tomar as rédeas.

Não conseguia parar de pensar em Sakura desde o dia em que foi arrastado àquela conferência por Naruto. Dizer que tinha ficado surpreso com a eloquência dela era eufemismo. Sasuke sempre soube que Sakura era extremamente inteligente e assertiva, mas tais características sumiam perante a óbvia carência da garota, e ele só conseguia pensar em um adjetivo quando pensava nela: irritante; advérbios de intensidade para ele saíam aos montes também. Mas, naquele dia, notou um brilho de perspicácia e brilhantismo incapaz de ser usurpado por qualquer outro sentimento que não o de admiração ou o de reverência, o que fosse mais claro.

Com isso, começou a reparar em coisas que deveriam passar batidas: a sensatez dela nos períodos de estresse, nos conselhos que ela dava para as amigas não desistirem dos próprios cursos,  na perseverança e no interesse em ser uma pessoa útil para sociedade como médica. Até nas coisas mais ridículas também, tipo que verde deixava os olhos dela mais vibrantes e rosa ou vermelho acentuava as bochechas coradas. Conseguia perceber que, nos períodos de provas, ela emagrecia quase imperceptivelmente e voltava a engordar logo depois. De repente, tinha começado a pensar no que Sakura aconselharia a ele se estivesse presente em circunstâncias maçantes e previsíveis. Até Itachi já notara seu olhar demorado nela, para sua vergonha. A situação estava burlesca, mas, ainda sim, não era tão grave para ficar em pânico... certo?  

— O curso de medicina não teve recesso, né? — ele continuou, tentando não deixar o assunto morrer. Seus olhos estavam fixo na imensidão do corredor externo.

As árvores exalavam um cheiro gostoso depois do leve chuvisco de mais cedo e ele tentou se concentrar nisso para acalmar as batidas do coração.

— Não — Sakura respondeu, chateada. — Não pude sair esse final de ano e só tive tempo de digitar que iria assistir aos fogos na globo quando caí no sono e acordei no outro dia. Sério, não tenho tempo para mais nada, nem para pentear o cabelo.  

Sasuke tinha percebido que o cabelo dela estava um pouco descuidado: os fios sempre em um rosa vibrante estavam mais claro que algodão-doce e algumas partes pareciam cinza, pareciam um pouco espigados também. E como ele era bem curto, o pequeno rabo-de-cavalo apontava em todas as direções, formando um tipo de abacaxi. Sentiu uma vontade absurda de de rir e soltou um pequeno resfôlego.

Rapidamente, ele fingiu um engasgo.

— Deve ser muito difícil mesmo. Eu tive duas semanas e quase pensei em desistir do semestre, imagino você — comentou com a voz um pouco mais alta do que de costume, engolindo um xingamento por não conseguir mascarar seu nervosismo.

A coisa ruim de ser introspectivo é não conseguir lidar com leveza em situações que fogem do comum. Sasuke quase nunca invejava ninguém, mas desejou ter a mesma desenvoltura que o usuratonkachi naquele momento. Se tivesse, poderia ter criado um clima de aconchego e convidá-la para sair sem parecer minimamente estúpido. Só que seu perfil era chato demais e preferia fazer as coisas seguindo passos meticulosos, então foi um choque quando as palavras saíram de sua boca:

— Você parece estar com fome. — Fez uma pausa um pouco longa, antes de retomar com um fôlego longo.  — Abriu um novo restaurante essa semana, não quer ir lá?

— Hummm? Ah, eu ouvi falar — Sakura respondeu no mesmo tom de antes, como se a pergunta fosse completamente normal.

Com isso, Sasuke voltou os olhos para ela, que parecia estar tentando equilibrar os livros que insistiam em inclinar para direita. Sakura não respondeu sua pergunta, percebeu. Com um suspiro contido, sugeriu:

— Coloque mais livros aqui. — Ele apontou para os próprios braços. — Esse peso é indiferente para mim.

— Ah, não. Tá tudo bem. — Ela sorriu e soprou alguns fios da franja que caíam nos olhos.

Não, não estava. Alguns locais do antebraço dela estavam ficando avermelhados e poderiam ficar doídos se ela continuasse com aquela sandice. Sasuke sabia que não poderia ser ríspido como de costume, então contou até três antes de falar calmamente:

— Sakura…, eu estou vendo seus braços machucados. Me passa esses livros antes que você não consiga fazer nada o resto da semana.

Envergonhada e a contragosto, Sakura fez o que ele pedia, sacudindo as mãos logo em seguida, como se estivesse aliviada.

— Obrigada, Sasuke. Cê tá me salvando.

Sasuke balançou a cabeça em um gesto mudo. Queria perguntar outra vez sobre o restaurante, mas seu orgulho gritava para que ficasse calado e desistisse de vez. Pela segunda vez no dia, ignorou-o. Talvez ela não tivesse entendido, afinal.

— Então, você não vai comer?

Sakura olhou para ele, como se estivesse confusa com a insistência para que comesse.

— Eu tenho muita coisa para fazer, talvez mais tarde.

Ele balançou a cabeça em um gesto frustrado.

— Você precisa comer, Sakura. Você viu o que quase aconteceu com a Hinata ano passado.

Hinata Hyuuga era uma grande amiga deles desde a infância. O seu temperamento era bem parecido com o dele, para falar a verdade; então sempre tinha preferido a tranquilidade dela à extravagância da maioria dos amigos, principalmente a da pessoa ao seu lado. Ano passado, Hinata ficara tão estressada com o curso de direito que precisou ser internada com anemia e desidratação, além de ter desencadeado a doença celíaca.

— Ah! — Sakura riu de leve. — Eu me alimento bem. Isso não vai acontecer.

— Nunca vai acontecer até acontecer — ele rebateu, surpreso com a frustração que tinha tomado seu corpo. Desde quando se importava tanto com ela?

— É um bom argumento. Preciso xerocar esse livro, aí vou — Sakura cedeu.  

— Eu vou te esperar, então. — Só precisava avisar a Naruto que iria atrasar um pouco antes.

— Você vai comigo? — ela ecoou, cética.

— Sim.

Sasuke sabia que isso era estranho para cacete, principalmente porque a única pessoa com quem saía a sós era Naruto. Nem mesmo com Neji ou Gaara faria esse tipo de convite, salvo uma ocorrência muito grave.

Sakura fez um som com a parte detrás da garganta.

— Eu, por acaso, pareço doente?

— Hã? Não. De onde você tirou essa ideia?

— É que não é muito... — Ela fez uma expressão de desarranjo e desconversou. — Deixa pra lá. Eu vou pedir para a mulher fazer as xeroques pra gente ir indo.

Antes que Sasuke pudesse dizer alguma coisa, foi a vez dela ir na frente sem esperar. Precisaram aguardar cinco minutos para que a funcionária preenchesse uma série de coisas no computador, então estavam liberados.

Sakura não falou nada durante o caminho para a lanchonete, e ele preferiu ficar em silêncio para não demonstrar a inquietação que sentia.

O lugar era até agradável para os padrões universitários e parecia limpo, um bônus. Alguns professores estavam lá também, por isso não estava muito barulhento. Ele avistou seu tio e deu um breve aceno de reconhecimento antes de seguir Sakura até perto do balcão.

— Você quer o quê? — ela perguntou, olhando o cardápio.

— Um açaí. Tem?

— Pequeno, médio e grande — falou o atendente, mostrando copos de diversos tamanhos.

— Um médio, por favor. E sem nada, só a fruta.

— Vou querer um bolo de chocolate e um latte de leite de amêndoas. — Sakura deu um grande sorriso para o garoto.

Sasuke fez uma careta ao imaginar o quão doce aquela combinação ficaria. Fracamente, não entendia a fixação das pessoas por coisas doces; elas enjoavam fácil e ainda davam sede e até uma compulsão por algo salgado. Não tinha lógica.

Eles escolheram — Sakura que escolheu, na verdade —, uma mesa mais afastada, que não ficava perto do balcão ou da entrada. Assim que sentaram, ela logo foi tirando as sapatilhas, resmungando algo sobre “dinheiro perdido” ou algo do tipo, ele não estava conseguindo prestar atenção.

Sasuke ficou observando-a silenciosamente por alguns segundos antes de perceber que aquilo era muito estranho e pegar o celular para falar com os amigos. A cada poucos segundos, todavia, entreolhava por seus cílios a movimentação dela. Nunca tinha percebido como era fascinante descobrir pequenos tiques e expressões faciais de outrem; só aí estava começando a entender a coisa de musa inspiradora, pois estava com vontade de desenhá-la naquele instante e, quando chegasse em casa, provavelmente faria.

Olhando de primeira, Sakura chamava certa atenção (não do tipo bom) por ter um visual tão alternativo, mas, olhando de perto, ela não tinha nenhuma característica muito bela. Tinha uma estatura média, um peso médio, uma beleza média e, até pouco tempo atrás, uma inteligência grande, mas incapaz de grandes feitos, em sua opinião, e uma capacidade de conversação alta demais. Não à toa que não tinha resignado nenhum olhar demorado para ela.

Sasuke sempre gostou do melhor: do mais bonito, do mais difícil, do mais desafiante, do mais, do mais, do mais…, então tinha presumido que iria se apaixonar por uma garota deslumbrante, de inteligência inquestionável e de um temperamento sereno. Alguém que era um exato reflexo de si. Cogitar a possibilidade de gostar dela desafiava tudo que era.

Talvez tenha chamado Sakura ali para decifrar, desvendar, desmembrar cada uma das nuances que faziam com que estivesse obcecado por tudo que era de menção a ela. Com sorte, a sensatez faria sua mente voltar a ficar sã.

Ainda assim, não estava acontecendo isso. Pelo contrário, seu corpo parecia borbulhar em algum tipo de agitação tão desconhecida que ele sentia vontade arranhar a própria pele para que aquilo passasse. Não queria paixão, queria amor. Amor era segurança, paz, estabilidade; paixão era desarmonia e precipitação, inquietação.

— E aí…, Sasuke, você está me ouvindo?

Sasuke piscou fortemente e voltou os olhos para Sakura, que lhe olhava com um pouco de apreensão. Ela estava chamando-o há um tempo, percebeu. A voz distante era a dela.

— Desculpe, o quê? — perguntou com a voz estrangulada. — É que eu, humm, lembrei que esqueci de fazer um trabalho que vale quase um terço da nota do semestre — mentiu, torcendo para que parecesse verdade.

— Ahhhh. Por um segundo, achei que você iria passar mal.

Ele ainda não estava certo de que isso não iria acontecer. Nunca tinha parado para conversar com Sakura direito, era impossível gostar dela a ponto de ser paixão. Paixões platônicas são coisas de pessoas imbecis. Será que, se gritasse, sentiria-se melhor?

Com uma risada curta, ele fez um gesto negativo.

— É que é muito importante pra eu simplesmente ter esquecido.

— Puft, isso vive acontecendo comigo... e olha que eu sou organizada. Fico imaginando como Kiba, Shikamaru e Naruto conseguem passar tão tranquilamente em todas as cadeiras.

— Sim. — Ele soltou uma risada um tanto incrédula. — Como é aquele ditado? “Deus protege os desavisados…”?

Sakura soltou uma risada alta, chamando à atenção de algumas pessoas que estavam por perto. Há um tempo, Sasuke teria ficado irritado com aquele comportamento extravagante, mas tudo que conseguiu sentir foi encanto.

— Não seria “Deus protege os seus”? Ou, talvez, “Deus protege os bêbados”?

Ela ainda estava dando um sorriso brilhante. Então aí foi demais

— Deve ser. Hummm, Sakura, eu vou ao banheiro rapidinho, tá? — murmurou enquanto levantava, e não esperou uma resposta, quase correndo dali.

Sasuke jogou água no rosto para tentar acalmar seus pensamentos. Suas mãos estavam trêmulas e seu peito parecia estar sendo esmagado por pura diversão. A percepção que estava irrevogavelmente apaixonado por Sakura foi tão suave quanto uma sucessão de socos no cara.

Ele ficou ansioso, pensando em todas as possibilidades possíveis e o que cada uma delas acarretaria. O que seria o melhor a fazer? E se falasse sobre isso, iria se arrepender depois? Existia alguma possibilidade de ainda ser correspondido? Aquelas perguntas ficariam rondando seus pensamentos por algum tempo. Oh, céus, iria ficar com diarreia ou, no mínimo, uma indigestão.

Depois de mais tempo que o necessário, Sasuke tentou se recompor o melhor que pôde e voltou andando lentamente para a mesa. E ele percebeu outra coisa: mesmo continuando tudo exatamente igual, estava tudo diferente. Sua vontade de apenas observar cada gesto dela tinha sido multiplicada por mil.

— Está tudo bem? — Sakura perguntou.

— Sim, é que eu, bem, estava com uma dor na barriga.

Sasuke  sentiu uma onda de horror depois que as palavras saíram de sua boca, e deu um sorriso duro.

— Ahhhh!

Ele conseguia ver que ela estava tentando prender a risada com todo esforço que tinha e depois ficando preocupada.

— Você está bem? Será que foi comida da cantina?

— Dor NA barriga — repetiu em tom de justificativa, tolamente.

Sakura apenas acenou um “entendi” mudo, voltando seus olhos para a bandeja vazia.

— Você já terminou? — Sasuke perguntou, querendo escapar o mais rápido possível.

Sakura assentiu.

— Só falta o suco, mas eu tomo no caminho.

— Eu posso te esperar.

— Nah, preciso pegar os livros antes que feche lá.

— Ah, tudo bem.

Sasuke chamou o garçom, que logo chegou com a conta. Ele iria pagar tudo, mas Sakura foi incisiva quanto a pagar a própria parte, então não havia muito o que discutir.

Eles caminharam em silêncio durante todo o percurso. Sasuke ainda estava com os pensamentos desconexos demais para iniciar uma conversa e ela parecia perdida em pensamentos.

Quando chegaram perto de onde se esbarraram, Sakura se virou e disse:

— Já está bom aqui pra mim, Sasuke. Obrigada pela ajuda e pela conversa.

Era ela que sempre achava engraçado a formalidade com que Sasuke falava, porém ali estava: fazendo a mesma coisa de um modo incomensuravelmente menos gracioso.

— Não por isso — ele respondeu, maneando a cabeça levemente. — Tem certeza que não precisa de ajuda?

— Ino vai vir me pegar daqui uns dez minutos.

Sasuke entendeu aquilo como se Sakura estivesse insinuando que preferia ficar só à sua companhia. Ele sentiu um peso ácido na base do estômago. Bem, precisava alcançar Naruto, de qualquer jeito.

— Tudo bem — ele falou em um fio de voz, clareando a garganta, e murmurando qualquer coisa. — Eu preciso pegar o último ônibus.

— Humm? Ah, é verdade. Você prefere andar de ônibus.

Sim, por mais que odiasse a companhia de pessoas no geral, ele achava mais cômodo pegar ônibus que não estivessem em horário de pique do que dirigir e queimar o rosto, e lidar com certos motoristas que aparentemente tinham comprado o CNH.

— Sim, menos estresse.

Sakura riu, parecendo relaxada outra vez.

— Já eu daria tudo para não depender de transporte e carona! Que injusto!

Sasuke soltou uma risada leve, o coração acelerando absurdamente.

— Pois é. Itachi fala sempre a mesma coisa.

— Seu irmão sempre foi sábio.

O silêncio constrangedor voltou outra vez. Mas Sasuke não tardou em quebrá-lo:

— O Sai também aperreou vocês para irem ao show do… como é o nome mesmo?

— Ney Matogrosso. Não acredito que ele chamou vocês!

— Não foi bem um pedido, já que ele disse que sairia do time se a gente não fosse.

Sasuke não economizou a careta que fez ao lembrar de Sai se recusando a treinar apenas porque os meninos e ele se recusaram a ir para os locais esquisitos que o branquelo costumava frequentar.

— Então vocês vão?!  — Sakura perguntou com a boca aberta em choque e cuspindo uma risada.

— Não é como se tivéssemos alguma escolha.

— Poxa, vai ser engraçado. — Sasuke enviou-lhe um olhar indignado. — Vai muito!

— Pra você, com certeza.

Ele tentou fazer uma expressão de nojo, mas seu cérebro parecia ter ficado imbecil, pois riu outra vez. Quantas vezes será que tinha rido naquele curto espaço de tempo? Fazia muito tempo que aquilo tinha acontecido com uma pessoa que não o Naruto — alguém que conhecia desde sempre e tinha uma conexão tão profunda quanto com Itachi.

Sasuke não entendia como conseguia se sentir assim em apenas uma conversa: em um estado de relaxamento tão intenso que poderia encostar a cabeça no ombro dela e simplesmente dormir.  

O pensamento fez com que enrubesce.

— Oh, Sasuke, você está corado! — A voz de Sakura soou maravilhada.

Ele virou a cabeça para o outro lado, como uma criança birrenta, e ficou ainda mais vermelho, quase roxo. Também não respondeu e dignou-se apenas a resmungar uma maldição e dar de ombros.

— Ir a um show com pessoas alternativas é tão ruim assim? — ela questionou. O tom um pouco mais duro que o normal atraiu o interesse de Sasuke, que não tardou em olhá-la.

Ele não conseguiu entender por que Sakura estava com os lábios um pouco crispados.

— Hã…

— Sim?

A voz dela estava irônica, definitivamente.

— É só que, então — Então foi aí que ele percebeu que uma garota que usava cabelos coloridos desde os doze, fazia cosplay todos os meses e usava meias pouco abaixo dos joelhos (naquele calor infernal) e roupas de cores vibrantes não era exatamente tão padrãozinho assim. Levantou as mão em um gesto de rendição —, nada contra, mas eu me sinto ainda mais deslocado que de costume.

— Você sempre parece à vontade.

Sasuke lançou-lhe um olhar penetrante. Se existia uma coisa que não era, isso seria à vontade. Salvo a segurança de seu quarto, pintado em uma coloração sóbria, pois não era chegado a cores, e o colo de seus avós, apenas fingia estar enturmado. Certas vezes, até dentro de casa sentia-se um intruso.

— Aham.

— Okay, não à vontade, mas imperturbável? Inabalável? Enfim, até no fogo do inferno você seria blasé.

Sasuke abriu a boca para replicar, indignado, mas Ino chegou no mesmo instante. Dando um grito tão estridente que fez seus ouvidos praticamente sangrarem.

— Testuda, você não acredita em quem eu vi no centro!  E blá, blá, blá… — Depois de dois minutos inteiros, ela percebeu a presença dele e parou de falar, com um olhar estranho no rosto. — Sasuke, o que faz aqui? — perguntou depois de um tempo em um silêncio estranho e sarcástico.

— Ele me ajudou a levar os livros para biblioteca — Sakura apressou-se, falando no lugar dele.

Sasuke apenas olhou para o espaço aberto do seu lado esquerdo, como se a presença dela fosse apenas um grande incômodo (e era, mesmo) e deu um quase imperceptível aceno de reconhecimento, ganhando uma careta dela.

Ele já não se sentia confortável para ficar falando com Sakura com Ino ali, então aproveitou a deixa para se despedir.

— Meu ônibus já deve estar passando, e preciso me apressar. Até mais, Sakura… Ino — falou ele com polidez.

Esperou até que elas dessem uma resposta. Sakura acenou com um sorriso que deixou seus olhos pequeninos e com um gesto efusivo com as mãos (embora tenha colocado o cabelo para trás rapidamente…, pois é, Sasuke notou), e Ino apenas fez um gesto meio desprezível com os cabelos.

Loirinha intragável. Muito provavelmente iria falar mal dele assim que desse as costas.

Sasuke foi embora, tentado andar corretamente, o que parecia meio difícil ali, como se tivesse desaprendido a andar sob o olhar constante dela. Quando ele chegou mais na frente, pôde fazer uma curva, de modo que conseguiu vê-las em seu campo de visão e  ainda ficar escondido pelos arbustos.

Então observou-as: Sakura sorrindo largamente; Sakura dando um sorrisinho envergonhado; Sakura franzindo a testa e crispando a boca, dando um leve tapa na amiga, parecendo indignada; Sakura virando de costas e escondendo o rosto. Sakura voltando-se e balançando as mãos como se fosse uma líder de torcida.

Em algum lugar de sua mente, ele sabia que deveria achar aquela cena estúpida e repugnante. Elas estavam falando dele, claramente. Sua razão deveria estar processando a informação com indignação, mas tudo que conseguiu pensar foi que queria muito chamá-la para sair.

Diabos, estava até criando diálogos internos mentais sobre como faria isso. Talvez, ele chegasse ao ápice do fundo do poço e treinasse no espelho e comprasse aquelas flores bregas. Neh, não, isso seria demais. No show? Ou, quem sabe… Estava mesmo pensando em chamá-la para um encontro, depois de tudo?

De tão distraído que estava, Sasuke não notou que  havia um poste de energia e bateu a testa nele com tudo, quase tropeçando em seguida. Escutou a voz estridente de Naruto do outro lado da rua — que ficava o maldito ponto de ônibus — e uma vaia “IEEEEEEE, TEME”. Algumas pessoas que passavam ali precisaram reprimir um riso.

Constrangido, atravessou a rua e deu um leve tapa no ombro dele. Era uma advertência que costumava dar desde pequeno e que significava: você está torrando minha paciência, então acho que vou revelar à Kushina pequenas coisas interessantes.

— Nossa, cara, não precisa ser tão agressivo. E por que tava sorrindo?

— Eu estava sorrindo?

— Como um idiota, o que é muito estranho. Achou dinheiro, por acaso?

— Apenas pensando que vou tirar o primeiro lugar na prova de cálculo III.

Sasuke pensou em perguntar sobre qual o melhor lugar para levar uma garota para o primeiro encontro e várias outras dúvidas, porém não queria ser alvo de gozação de toda a sua família, já que Naruto, com certeza, iria espalhar para quem tivesse ouvidos. Faria isso na segurança de seu lar, preparado para todas as perguntas inconvenientes que viriam em sequência.  

— Vai sonhando. Esse lugar é meu.

— Acho que você disse isso  em uma de física do semestre passado. Tcs, Tcs.

— E você em três — Naruto devolveu, rindo alto.

Sasuke recomeçou a implicar, enumerando todas as outras vezes que isso aconteceu, sendo seguido por ele. Continuaram ali, naquele jogo, por mais alguns minutos, esperando o ônibus chegar.

E já dentro dele, pesquisou, enquanto Naruto babava, coisas embaraçosas demais sobre o sentimento da paixão, algo que jamais iria admitir ter feito. Mal sabia ele que iria ficar nesse frenesi até a primeira quarta-feira do outro mês, onde tornaria seus anseios algo oficial e público.

Permitindo-se cochilar, Sasuke sonhou com um campo na exata cor de esmeralda.


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Notas finais do capítulo

♠ Oneshot betada pela incrível Zusaky.



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