Devaneios escrita por slytherina


Capítulo 2
Bolo e sangue




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Era um dia comum de outono, e aquela cerimônia parecia estranha, quase lúgubre em meio a árvores desfolhadas e um vento frio de arrepiar a alma. Comentara isso com pastor Jim, que dissera-lhe para parar de imaginar coisas, pois qualquer momento e qualquer lugar seria abençoado por Deus se houvesse amor entre as pessoas. Por mais que lhe parecesse piegas e clichê ela aceitara a explicação. Portanto, tinha que ficar quietinha, segurando uma caixinha com alianças, vestida com um horroroso vestido escuro, que apenas salientava sua magreza e desproporçao.

O fato daquele casamento ser celebrado em um celeiro, com a noiva vestindo um velho vestido de casamento, emprestado de outra pessoa, e o noivo vestindo sua melhor roupa de domingo, o que não significava que aquela roupa fosse melhor do que qualquer outra, apenas dava a tudo aquilo uma aparência de festa a fantasia ou peça teatral, tendo tudo a ver com halloween e não com núpcias.

Um fazendeiro conhecido pôs-se a dedilhar um violão, cantando uma música popular e lamuriosa, a preferida da noiva, o que não melhorava a estranheza daquilo tudo, pois uma canção de infidelidade não é um bom augúrio para um casamento. Pastor Jim iniciou a celebração e deu o sinal para Sam se aproximar. Ela abriu a caixinha e a apresentou ao noivo que retirou as alianças douradas. Sam nunca saberia que metal era aquele, mas tinha certeza que não era ouro, pois tal demonstração de riqueza não combinava com aquela cerimônia despojada. Ao fim de tudo os noivos se beijaram e todos bateram palmas. Foi um alívio para Sam.

Logo mais a verdadeira festa começava, com cervejas e refrigerantes sendo servidos e um bolo de casamento sendo feito em pedaços. Sam ficava comparando mentalmente esta simples cerimônia com as que via nos filmes da TV. Decerto que as da TV eram mais emocionantes e belas. Ela procurou os noivos na multidão, e os achou meio afastados, beijando-se apaixonadamente, até que um dos convidados viesse estragar o momento, levando-os para o meio da bebedeira.

Seu pai era um dos que tinha uma garrafa na mão e ajudava o coro a desafinar uma música country acompanhados pelo solitário violão. Dean estava como sempre rodeado de garotas. Era como o sol com os planetas girando em sua órbita, tal qual a maquete que fizera para a aula de ciências da escola. "Oh, céus! Que comparação mais brega!" Sam irritou-se sem nem saber o motivo.

Ah, o motivo ela sabia: Dean. Aos 17 anos seu irmão era um Davi de Michelângelo. Um Adonis. Um Brad Pitt. O garoto mais bonito das redondezas. O mais bonito que já conhecera em toda sua vida. Sentiu dor no estômago. Maldito bolo de casamento feito na véspera. Sam procurou um banco para encolher-se sem encontrar. Optou por uma raiz protuberante sob uma velha árvore. Arriou-se ali e abraçou os joelhos.

— Tudo bem, Sammy?

De repente Dean estava ali a seu lado, com preocupação e ternura na voz, deixando claro que a estava vigiando e protegendo.

— Dean … é só dor no estômago. Acho que o bolo não estava muito bom.

— Não deixe pastor Jim te escutar, ele que fez o bolo. — Dean se agachou até ficar na sua altura no chão. — Qualquer coisa estou bem aqui, a um grito de distância, ok?

Sam fez que sim com a cabeça. Dean então se foi.

Devia ter um mandamento na Bíblia dizendo que era pecado querer se casar com o próprio irmão. Sam tinha certeza de que se folheasse bem ela encontraria tal informação. Ela até o achava irritante e cheio de si às vezes. Além do péssimo hábito que ele tinha de lhe dar cascudos e arrastá-la pelo pescoço, como se fosse uma mula turrona. Ah, mas ela não deixava barato, chutando-o e mordendo suas mãos. Não tão forte para não sangrar.

Já tinha tido sua cota de cenas sangrentas, o suficiente para o resto da vida. Seu pai ensinou-a costurar carne retalhada. A dele mesmo. E Dean … seu irmão era tão popular com as garotas quanto era um alvo para a pancadaria dos garotos. Nenhum deles era páreo para Dean, ela tinha orgulho de dizer. Seu irmão lutava como um profissional desde criança. Mesmo assim, às vezes aparecia em casa sangrando. E era Sam quem tinha que cuidar de seus machucados.

Quando foi a vez de Sam sangrar, Dean entrou em pânico e sumiu de casa. Seu pai também não fez melhor. Mandou Sam tomar banho e trocar de roupa enquanto ia na farmácia. Sam ficou em casa sozinha, sem saber se iria sangrar até morrer, ou se um dos adultos finalmente a levaria ao hospital para costurar seu ferimento interno. O pai voltou depois e lhe entregou pacotes de absorventes sem nada dizer. Ela teve que pesquisar sobre sua condição em revistas femininas.

— Um dólar por seus pensamentos. — Dean a tirou de suas lembranças enquanto dirigia o Impala na rota 66.

— Estava lembrando do dia em que menstruei pela primeira vez. — Sam respondeu bem-humorada, com o vento frio do outono despenteando seus cabelos curtos, mas rebeldes.

— Hum-hum. Foi algo … assustador. Quero dizer … eu sabia que as garotas passam por isso, mas é diferente quando você vê acontecendo com sua irmãzinha. Por que lembrou disso agora? — Ele a olhou de soslaio, genuinamente curioso e temeroso que isso despertasse antigas mágoas.

— Estava lembrando do casamento dos Swift. Aquele que pastor Jim celebrou no celeiro, lembra? Eu tinha 13 anos e passei mal com dor no estômago. No dia seguinte tive minha primeira menstruação. Você simplesmente se escafedeu, Dean. Pensei que iria sangrar até morrer. — Sam riu ante as próprias palavras.

Dean a olhou consternado.

— Desculpe! — ele falou sentido.

— Tudo bem! Papai não foi muito melhor. Ele apenas me entregou os absorventes, como se dissesse "te vira". — Sam riu novamente dessa vez acompanhada por Dean.

Ele pôs mais um cassete para tocar, em um volume alto, pra abafar a própria culpa de uma vez na vida ter falhado em apoiar sua irmãzinha do coração.

 


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