Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 3
If it’s not rough it isn’t fun.


Notas iniciais do capítulo

(quem é a rainha do pop?? a gaga então cala sua boca).
O título do capítulo vem da rainha do pop, Lady Gaga, e do hino nacional Poker Face.
Oooi! Tudo certinho? Espero que sim. Então, com muito custo chegou o terceiro capítulo dessa webnovela (esse termo é tudo pra mim e eu simplesmente quero usá-lo) e assim... Um capítulo massa também, mas um que representa um momento de ruptura pois eu decido sabe o quê??? Meter o louco kkkkkkk tem dois assim na história inteira e esse é um deles. O louco foi metido através dos seguintes fatos: eu coloquei diversas coisas aí simplesmente porque eu quis e eu não tenho explicação pra nenhuma delas kkkkkkkk Então peço aqui que vocês simplesmente sorriam e pretend to be shoked. A pergunta sem resposta desse capítulo aqui é o COMO??? E eu convido vocês a IMAGINAREM esses “como”, beleza?? (mas só pra alguns acontecimentos, os afetos e sentimentos e algumas contextualizações estão bem explicadinhos). Segue aí.
Eita, o nome desses Vitoriosos que aparecem eu tirei daquelas fotinhas que vazaram do set de algum dos filmes, aí tinha umas plaquinhas com os Vitoriosos de cada distrito.
*Trigger Warning* O capítulo contem menções a assassinato, prostituição e violência.



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As semanas seguintes trouxeram para Clove uma diversidade de descobertas.

A que abriu a temporada com chave de ouro era uma daquelas que poderiam eliciar ataques de raiva: a irmã de Cato tinha decidido que queria jogar facas.

Para Clove, a Academia era um dos seus lugares preferidos. Sempre tinha sido. Ela tinha ficado satisfeita em poder deixar sua casa apertada na Patrus pra se mudar pra lá. Na Academia, as avalanches não eram um problema. E na Academia, ela não era negligenciada, porque ela tinha um talento e aquilo valia muito.

Essa história do talento, bom, não valia para Gaia. Ela teria que aprender do modo antigo. E tentar esconder as facas – parada na estação das facas, a estação das facas que tacitamente pertenciam a Clove desde que ela tinha pisado os pés na Academia – não ia ajudar.

— Clove.

— Gaia.

A menina mais nova ergueu as sobrancelhas e sorriu sem mostrar os dentes. O fato de que ela estava tão desesperada por ter sido pega jogando facas que sentiu a necessidade de sorrir para ela não passou despercebido por Clove, que sorriu falsamente de volta.

Não era como se a garota fosse mal educada, até porque ninguém no Distrito 2 tinha sequer autorização ou tempo para esse tipo de comportamento mimado com toda a disciplina fria que os regia. Talvez eles nem soubessem bem o que configurava falta de educação e o que era pertinente num contato social que fazia vezes de frequente, se não familiar. Ela só deixava claro que não gostava muito de Clove, que honestamente não se importava. Ela mesma não gostava de muita gente e de qualquer forma só se importava em fazer as pessoas certas gostarem dela.

Gaia simplesmente não sorria muito para ela.

— O que você está fazendo aqui? Cadê o Cato?

— O Cato não é muito chegado a vim aqui.

— É, eu sei.

Mais silêncio. Clove, ainda sorrindo levemente porque Cato ia ficar tão puto se visse a irmã dele fazendo qualquer coisa que sequer vagamente o lembrasse dela, empurrou a bochecha com a língua e descruzou os braços.

— Bom, eu estou ficando entediada. Me mostra a faca pra eu poder ver se tem conserto – simples assim. Era uma ordem e ela era uma Vitoriosa. A menina obedeceu, inexpressiva como devia ser. – Vocês não tiveram nenhuma triagem ainda.

— Não.

— Vocês não vão ter. Você não vai falar pra ninguém que eu te contei. Eles vão ficar observando e se acharem você mais ou menos boa, você entra pra um nível de verdade. Se não, você fica por aqui de molho mais um tempo e depois dispensa.

— Ah.

— Seus irmãos não iam te contar sobre isso. Mas nós somos meninas e devemos ficar juntas, então eu estou te dando a oportunidade de decidir o que você quer fazer. Você pode ser uma merda com tudo, porque aí você não precisaria treinar pro resto da sua vida. Ou você pode me deixar te ensinar um pouco de decência com essas facas aí. E fazer o que seus irmãos acham que é melhor pra você.

— Eles acham melhor eu treinar – havia uma leve interrogação na frase. Gaia parecia um pouquinho com o Cato. Os olhos deles todos faziam a lembrar de água; podia ser gelo, podia ser cálida. Clove a encarou de volta por alguns segundos.

— Sim.

— E você acha o quê melhor?

Uma leve surpresa se insinuou no rosto de Clove. Seu discursinho sobre meninas ficando juntas tinha sido só provocação, daquele tipo vago que nem intencionava nada. E ela não mexia com crianças, não mexia com Gaia, que mal a olhava desde que tomou consciência que era ela que às vezes esquentava suas mamadeiras enquanto seu irmão estava na televisão matando todo mundo. Ainda assim, Gaia estava ali querendo a opinião dela.

Mas, claro, Clove era uma Vitoriosa. E uma especialista com facas. O exemplo do sucesso.

— Não ia pegar bem pros seus irmãos você ser dispensada antes do primeiro nível. Você devia ver como ia por aqui por um tempo. Treinar é bom, te dá um propósito, te deixa pronta para qualquer casualidade.

Porque o Snow sabe jogar uns jogos esquisitos.   

De qualquer forma, o processo de receber uma dispensa na Academia não era tão fácil assim. Envolvia desonra e uma persistência dos treinadores de não te deixar ir até que você, no caso o fraco (e provavelmente desnutrido) que não tinha o que era preciso, tivesse atingido o fundo do poço. Então envolvia humilhação, tarefas impossíveis de serem cumpridas e castigos físicos surreais. Se ela já estava lá, era melhor continuar até onde desse.

A resposta de Gaia foi ajeitar o aperto de uma faca e levantar o punho na altura dos olhos de Clove, para que ela pudesse corrigi-la de novo.

— Podia ser pior.

A garota agora estava endireitada na Academia e devia ficar segura por lá até fazer uns nove anos, quando acontecia a primeira atividade prática e as coisas começavam a ficar sérias. Cato não pareceu se importar muito quando tinha sido a vez deles de assassinarem o prisioneiro da Capital, mas as coisas mudavam e Gaia parecia muito menor. Ela ainda tinha mãos de bebê, pequenas e gordinhas na parte de cima.

Se Cato quisesse a manter longe dos Jogos, com algum esforço, ela podia entender.

A segunda coisa que Clove descobriu foi que ela odiava Naevio de verdade. Ela sentia tudo; a queimação em seus olhos, o tremor em seu corpo, a pressão de seus dentes uns contra os outros. O jeito que ele falava com ela, todo sutil, paciente, como se tivesse se esquecido do dinheiro que havia pago para tê-la em sua cama a tirava do sério.

Contudo...

Não era isso exatamente que Clove sentia.

Com ainda mais raiva, ela foi obrigada a reconhecer a fonte real da sua ira; ela era destinada ao desespero que ela sentia, uma sensação de indefensa que só devia acometer animais encurralados. Daquele jeito, ela conseguia ver que estava certa; ele não estava com pressa. Ela ia ficar ali pra sempre, afinal. Ele pensava que podia fazê-la se apaixonar e se desapaixonar por ele mil vezes em todo aquele período de tempo.

— Então. Como é a vida como uma Vitoriosa? – ele perguntou, enquanto eles estavam sentados na mesa de um restaurante escuro no centro da Capital.

Naquele dia, Clove estava cheia das câmeras do lado de fora e bêbada e sem paciência para aqueles flertes ridículos. Se aquilo fosse durar muito, pra quê ela ia ser boazinha o tempo todo? Se ele queria uma experiência verdadeira sobre como uma relação com ela era, ela ia dar pra ele.

— É ocupada.

Caso encerrado. Silêncio.

Ele podia ser uma celebridade ascendente agora, mas, em Panem, as estrelas de verdade eram aquelas que conseguiam matar outras vinte e três pessoas. Naevio iria mesmo querer conseguir os detalhes. Aquela sede de sangue que a Capital tinha era quase inata. O rosto de Clove não iria se voltar para ele tão cedo.

Ele não desistiu, no entanto.

— Você viu a Katniss e o Peeta no Distrito 6? Eles fizeram uma cerimônia linda.

No dia, tinha havido um levante no Distrito 6. No meio da população desgastada, dois idiotas levantaram as mãos e fizeram a saudação do 12. Era difícil pensar que alguém, mesmo um alguém da Capital, fosse capaz de não notar o tumulto na multidão do distrito, a tensão dos Vitoriosos do 12, os cortes na transmissão. Só levemente consciente do que estava sendo realmente implicado em sua fala, Clove lentamente levantou os olhos para Naevio.

— Eles têm um problema com drogas no 6. Por isso que tudo lá é lindo.

Sorrindo, seu autoentitulado namorado continuou:

— Eles foram muito gentis. Katniss e Peeta.

— Gentis que nem eles foram na arena? – Clove perguntou sem nenhum interesse, sem sequer reparar sua rispidez amargurada, olhando ao redor preguiçosamente. Uma pessoa com a qual ela já havia sido arranjada estava jantando na mesa à sua frente.

(Ela conseguia ver tudo. Paredes escuras, uma pele escamosa encostando na dela, o vômito queimando suas entranhas nas horas seguintes).

— Clove. Ei. Olha pra mim – foi Naevio colocando suas mãos em cima das dela que a trouxe de volta para uma realidade que não era muito melhor.

A garota sustentou o olhar intenso do homem à sua frente. Ela reparou nos seus olhos alterados, pequenos e escuros como os de um urso, viajando por seu rosto. Como ele se atrevia a olhar pra ela daquele jeito, com afeição, sorrindo como se não pudesse acreditar que ela existia? Clove sentiu um impulso violento de se afastar. Mas as mãos dele não apenas repousavam em cima das suas; elas as prendiam firmemente contra a superfície da mesa, também.

Sentindo uma pontada súbita na cabeça, Clove pulou uma respiração.

Para ela, aquele foi um gesto simbólico. Para ela, aquilo era ele tentando equilibrar seus bons modos com seu desejo de exercer poder sobre ela que não devia ser subestimado. Era ele balanceando com maestria a parte dele que queria a “experiência verdadeira sobre como uma relação com ela era” com a parte dele que a queria muito consciente sobre o processo que deu início àquilo e a relação estreita dele com o dinheiro trocando de mãos. 

Ela segurou o olhar dele por mais um tempo, o estudando com cuidado. Aquele ato, suas mãos presas, seus olhos sustentando os seus com um brilho muito específico... Tudo pareceu familiar. Eram atitudes advindas de jogos de poder que ela conhecia muito bem, de tipos de violência que podiam ser muito silenciosas.

Naevio parecia muito calculado, muito focado em sua tarefa de exercer poder na medida certa, dominá-la sem sequer dá-la chance de protesto. Todo empenhado em construir um campo de força perfeitamente invisível, mas impossível de ser ignorado.

Clove não podia deixar de pensar que Naevio sabia mais do que estava revelando. E o mais de Clove era um mais riquíssimo.

Ele devia era saber que ela odiava que sequer encostassem nos seus pulsos porque como as facas dela ficariam se alguém estragasse eles? Mesmo assim, àquela altura, essa coisa ganhava características de um hábito; ele estava sempre apertando suas mãos e seus pulsos e Clove fingia não reparar, mas sempre conseguia se soltar delicadamente. 

Mas, daquela vez, naquela posição as mãos dele ficaram. Clove ficou presa lá a noite toda. Graças a Deus, ela sabia fingir muito bem e Naevio fazia que acreditava em toda palavra que saía da boca dela, então o novo casal do Snow era perfeito. Todo mundo estava nas alturas porque aquilo ali era o que era certo. Vitoriosos deviam apoiar Panem. E Clove apoiava exemplarmente tudo que seu namorado representava naquele mundo.

Depois, confinada no seu apartamento insuportavelmente colorido, ela podia ser encontrada rasgando todas as revistas que mostravam fotos dela e de Naevio juntos. Havia um barulhinho agudo e persistente no fundo da sua mente. Quando ela se lembrou de fechar os lábios, reparou que os gritos estavam sendo emitidos por ela.

— Se recomponha – ela sussurrou, enquanto batia outro copo vazio de conhaque na mesa da sala e massageava os pulsos doloridos.

A cabeça dela não estava clara, devia ser aquilo o problema. No entanto, ela havia se acostumado a passar o menor período de tempo possível com a mente clara. Sua mente estava acostumada a funcionar naquelas condições, pro próprio bem dela. Ela ainda conseguia maquinar seus passos. Não havia nada demais.

Clove respirou longamente por alguns segundos.

Primeiro, ela ia precisar limpar os papéis picados no tapete. Agora ela tinha ficado entediada.

Entediada.

A palavra ecoou um pouco, como sempre fazia, parecendo seguir Clove não importava onde. Ela estava em todo lugar, manchando sua existência, cobrindo tudo como uma sombra que te segue, mas não pertence a você.

Clove atribuía sua vontade de destruir a Capital ao fato de que ela estava entediada. Sempre tinha sido assim. Quando ela fazia alguma coisa inapropriada e perguntavam “por que você fez isso?” ela sempre respondia “porque eu estava entediada”. Cato preferia ficar com o queixo abaixado e murmurar que não sabia o porquê, mas ela sempre sabia.

Ela sabia que tinha ficado entediada com os garotos com os quais ela costumava andar na Academia depois do dia que todos eles foram derrotados por Cato no ringue. Por causa disso, ela tinha decidido passar seu tempo com ele. Ela sabia que tinha ficado entediada com toda aquela situação ridícula dos seus pais patéticos não falando uma palavra com ela. Por causa disso, ela tinha decidido fingir que nada daquilo havia acontecido e fingir que nunca tinha vivido na Patrus, que acontecia de ser uma das vilas mais pobres do distrito. Ela tinha ficado entediada de treinar e treinar e não ter nada. Por causa disso, ela tinha decidido ir pros Jogos.

Toda sua imersão naquilo não tinha nada a ver com aquelas baboseiras de honra e orgulho que os ricos do distrito enfiavam goela abaixo nas suas crianças. Clove tinha muita consciência que estava cansada de ser pobre e que ela queria mais que tudo saber até onde conseguia ir. Ela sabia que não pertencia nas pedreiras com sua estrutura física, seus ossos delicados. Ela sabia que não pertencia naquela casa na beira do Gladiador, sendo negligenciada e tomada como nada além de desperdício de ar. Ela sabia que odiava os olhos desdenhosos da sua sempre silenciosa mãe porque eram os mesmos dela. Ela sabia que odiava o cabelo perfeito e escuro do seu sempre silencioso pai porque era o mesmo dela. E coisas como aquelas, coisas que eram dela, não deviam ser divididas com eles.  

Quando ela passou por todos os níveis da Academia com excelência e se tornou a melhor, Clove soube que nunca teria passado por tudo aquilo só para voltar pra Patrus ou virar uma Pacificadora. Ela tinha pago caro demais, trabalhado duro demais, matado prisioneiros demais para não atingir o mais absoluto ápice.

Seu telefone tocou e Clove continuou submersa na banheira por uns segundos antes de atender.

— Oi, bebê.

Bebê. Ela nem ficou com raiva. Era um apelido que só ele usava. 

Por mais que ela quisesse parar de ouvir seu nome saindo dos lábios de Naevio, ele ainda não tinha decidido agraciá-la com um apelido ainda, que nem ela manipulava todos seus clientes a fazer.

— Oi, Cato.

— Oi, Clove. O que você está fazendo?

— Ficando bêbada e destruindo meu corpo. Você?

Ela ouviu a risada abafada dele do outro lado.

— Nada. Você está ficando bêbada e destruindo seu corpo no seu apartamento?

(Ninguém nunca usava a palavra casa. Ali não era a casa de ninguém).

— Sim. Mas você não pode vim pra cá. A gente não pode se encontrar. Você não pode me ligar, também.

— Uau. Não acredito que estou recebendo um gelo a essa altura.

Ela nem respondeu. Ficou lá, ouvindo ele respirar um riso leve por um tempo.

— Eu tenho novidades.

Clove escorregou um pouco na banheira. Seu tom era alguma coisa que pairava num nível acima do que era definido pela palavra “sugestivo”. Com certeza alguém controlava as ligações ali na Capital e era pouco provável que esse alguém fosse ser burro o bastante para deixar uma insinuação daquela passar em branco.

Se ao menos eles se importassem de verdade.

Clove deixou uma risada suspirada escapar, no final.

— Por que você é burro desse jeito?

— O quê?!

Ele estava rindo de novo. Cato e suas atitudes cheias de tendências suicidas era uma coisa a se prestar atenção.

— Cala a porra da boca, Cato.

Uma pausa bem pequenininha aconteceu. Cato então perguntou:

— Quando você volta pra casa?

— Eu não sei, a Iovita só me largou aqui. Essa merda é complicada. Eu posso voltar pra casa? Eu tenho que ficar por aqui até o próximo “encontro”? O que você acha?

— Vai pra casa. Ele vai ligar se achar alguma coisa ruim. 

— Amanhã cedo eu vou sumir daqui.

— É assim que eu gosto. A Iovita cancelou o último esquema, então eu estou indo agora. Te vejo amanhã. Certo?

— Até amanhã.

— Fica viva.

— Você é quem tem uma coisinha por suicídio, Cato.

— Vai se foder.

Assim que desligou, Clove ignorou a pontada estranha em seu peito se postou na tarefa de imaginar que tipo de novidade Cato tinha. Havia uma chance, não muito pequena, que não houvesse novidade nenhuma e que ele só quisesse que ela voltasse pro Distrito 2. Havia uma chance bem menor de que ele de alguma forma tivesse dado um jeito de falar um pouquinho mais com alguém e descoberto alguma coisa realmente relevante.

O que era interessante sobre Cato era que todo mundo achava que ele era ou muito burro ou muito louco. Por causa disso, as pessoas tinham reações peculiares à sua presença. Depois de sua decisão de apoiar publicamente a vitória recente do 12, algumas dinâmicas de relacionamento haviam sido alteradas. A nova carta embaixo da manga deles era a certeza firme de que as pessoas estariam dispostas a compartilhar conhecimento com ele fiadas na necessidade de arranjar mão de obra, se fiando na crença de que ele toparia tudo. Porque, afinal, ele era louco e simplório, e um daqueles que talvez fizesse outros tipos de serviço para a Capital.

Uma vez que eles haviam muito tacitamente decidido que deveriam se limitar a discutir aqueles assuntos com os seus colegas Vitoriosos devido a natureza leal daqueles que habitavam seu distrito, tudo repousava sobre as mãos de Cato, sua instabilidade pulsante,  e sua disponibilidade de falar com os outros Vitoriosos.  

Clove não estava exatamente confortável com isso.

Ultimamente, ela tinha odiado Cato com um pouquinho mais de intensidade que antes. A ideia dele, naqueles tempos, era composta basicamente por ele enquanto competição. O placar estava um pouco torto desde a vitória dos 12 e Clove ainda estava sofregamente recuperando seus pontos. O último golpe, afinal, tinha sido traiçoeiro; ela não estava acostumada a falhar e ele tinha desenhado um cenário perfeito para que ela o fizesse enquanto estava sendo mentora. Ele já tinha trago um tributo vivo, o que era uma espécie de vitória. Ela, num ano em que eles autorizaram dois tributos a sair – talvez se eles fossem do 2, os problemas fossem menores— tinha fracassado.

Eles tinham sido obrigados a ficar naquele ridículo Centro de Treinamento, monitorando os Jogos numa sala sofisticada com todos os outros mentores e as pessoas mais ricas da Capital. Tinha sido ruim e já era a segunda vez dele fazendo aquilo.

A coisa toda já estava fadada a desandar no momento que Clove ficou sabendo que Bac Sevina estava sendo cogitado para se voluntariar. E Bac Sevina tinha passado por todos os níveis da Academia com Cato Hadley e eles tinham decidido que seriam inimigos depois que um incidente em uma competição de luta havia acontecido. Clove torceu para que Cato ainda tivesse um restinho daquelas ideias sobre orgulho para o distrito intactas na sua cabeça e que, por isso, se empenhasse em ao menos não foder tudo para Bac. Aconteceu que ele não tinha, ele tinha voltado da arena todo desiludido e amargurado, o coitadinho. Quando Clove o encontrou antes da Colheita e o contou sobre Bac, ele riu.

— Eu lido com ele, você pega a Diana. Eu só estou pedindo para você se comportar, Cato, não é muita coisa.

Ele não se comportou e todo mundo odiou a equipe do 2 daquele ano porque nada funcionava. Cato e Bac só sabiam ser ridículos e Diana era muito arrogante para ouvir conselhos, então as esperanças não estavam nas alturas. No meio tempo, Clove estava se acostumando à vida de Vitoriosa e conciliar Snow com seus clientes e o inferno que era seu andar no Centro de Treinamento tinha sido uma tarefa complexa.

E ainda havia Katniss e Peeta, roubando a atenção dos seus tributos, como se tudo não estivesse bom o bastante. Mas ainda havia uma chance. Eles eram carreiristas, no final. Não tivesse Cato gastado todo o dinheiro do patrocínio mandando um analgésico para Bac em vez do antibiótico que ele precisava, talvez ele não tivesse ficado doente demais e Diana não teria ido sozinha pro Ágape. Não tinha nada que eles pudessem fazer sobre a covardia dele, que decidiu ignorar a cena toda que se desenrolou na sua frente enquanto o garoto do 11 matava Diana, mas, para Clove, tudo foi desencadeado com Cato sabotando uma pessoa do próprio distrito e ainda alegando ter cometido um erro honesto para ela, que tinha o visto tirar nota máxima nas provas da Academia sobre o assunto mais vezes do que poderia contar.

Para fechar a situação à altura, no último dia, Cato encontrou Clove beijando o homem da Capital que posteriormente viria a ser apresentado como seu namorado na porta do Centro e claro que aquilo demandava uma cena. Quando ela voltou para a sala, encontrou Cato confraternizando com Haymitch Abernathy, a despeito do fato de que seu tributo tinha acabado de ser comido vivo por mutações e todo mundo tinha visto.

No final do truque com as amoras, Cato nem sequer deu as honras a Haymitch: rindo, ele bateu as mãos na bancada e caminhou até um dos Pacificadores que ficavam na sala.

— Foda-se essa porra! Dois vencedores! Isso é contra as regras, não é? O que você está fazendo aqui, por que você não foi contar pro Snow? Cacete, ele acabou de ser lesado, o filho da puta! A gente tem dois, porra! Dois!

A gente.

Todos os Vitoriosos e todos os distritos esperançosos com a bravata de Katniss Everdeen cabiam nesse “a gente”.  O 2, a Capital, não cabiam bem.

Clove nem sequer se mexeu, sabendo que pioraria tudo, mas os outros Vitoriosos o fizeram e o tiraram de lá, numa camaradagem perigosa. A aliançinha estava feita.

E foi assim que Clove acabou tendo que se encontrar com ele só em locais discretos, para que Snow não pudesse ver sua cachorrinha fiel andando muito com o carreirista que tinha comemorado o fato de que os amantes do 12, com a saudação do distrito e os tordos e a porra do truque com as amoras, tinham saído vivos no lugar de quaisquer outros tributos.

Na Capital, Cato, o Garoto de Ouro, tinha acabado de receber o título de pária.

E Clove ainda odiava ele quando o mordeu no meio de um beijo, já na sua casa no 2.

— É assim que você fala oi, Clove? Que porra é essa? – ele rosnou, pressionando os lábios.

— Você não sente falta? A gente fazia isso o tempo todo – ela respondeu com falsa casualidade, fechando a porta e se sentando ao seu lado nos degraus dos fundos da casa porque era onde Cato sempre estava no inverno e as chances de alguém ouvi-los lá enquanto a casa era sobrecarregada por músicas no volume mais alto eram menores.

— A gente meio que ainda faz, mas eu pensei que era só um oi. Deixa pra arrancar minha boca fora quando você for embora – Cato continuou reclamando, mas não estava falando muito sério. Todo mundo tinha autorização para ser estranho, agora. Apesar de que eles nem deviam se beijar com essa frequência toda, afinal, Clove tinha jurado que iria matá-lo se algum dia eles se cumprimentassem com aqueles beijos estalados.

(Ainda assim, algumas vezes aquele tipo de beijo acontecia. Mas só por reflexo.)

— Supera, Cato. Me fala sobre suas novidades logo.

Cato olhando pra ela daquele mesmo jeito que Naevio tinha feito parecia mais certo, mas ainda assim a deixava desconfortável. Os olhos dele deviam ficar cheios com ódio ou paixão, raiva ou desejo, não com aquela coisa estranha que ela não conseguia nomear, cheios de um desfoque de adoração sem que ela houvesse sequer falado alguma coisa interessante de verdade.

— Gostou da minha cara? Eu consegui um preço ótimo nesse nariz novo.

Isso meio que colocou ele no lugar. Ele se concentrou em agarrar seu rosto com uma mão, o virando pra cima e pra baixo como se para realmente avaliar o suposto nariz novo. Ele nem estava apertando, mas doía um pouco. Era melhor.

— Eu consegui umas fontes.

Ela se limitou a erguer as sobrancelhas, desacreditada e condescendente, como se para ver até onde ele ia. Com uma expressão parecida, ele soltou seu rosto.

— Com quem você falou?

Cato hesitou por um minuto. Ela apertou os olhos. Quando ele finalmente começou a falar, Clove até se esqueceu de refletir sobre o porquê daquela ideia breve de Cato de esconder informações dela, ainda que elas fossem obviamente erradas.  

— Eu recebi sua mensagem sobre o pessoal do 8 estar animadinho pelo que aconteceu com os 12. Eu estava por lá e encontrei aquele cara do 8, o Indigo, num dia que ele estava lá em alguma reunião, e ele está envolvido com isso. Então eu posso falar com ele.

Ok, mas...?

Aquilo era tão ridiculamente simples que nem fazia sentido.

O fato de que outras pessoas realmente tinham cogitado a ideia de uma revolta e levado isso a frente em Panem era extraordinária. Não era possível que tudo fosse tão fácil assim, nem mesmo para Cato. Sua linha de pensamento não era tão limitada assim. Tinha alguma coisa errada. Aquela tinha que ser uma versão muito simplória da coisa.

Clove ficou parada o encarando em silêncio. Ele ficou todo estranho, sacudindo a cabeça e tentando sorrir para fazer a balança de poder pender pro seu lado. Mas ele não conseguia esconder nenhuma mentira dela, não dela, não da rainha das mentiras. Ninguém conseguia.  

— Quão bêbado ele estava? Pra estar se soltando desse jeito com você – ela sibilou, ainda prendendo seu olhar.

— Muito bêbado.

— Sério? Não foi ele que venceu porque os tributos estavam contando os canhões errado e pensaram que ele estava morto? Ele sumiu num campo de lavanda, fez todo mundo pensar que ele estava morto e contou um segredo desse para uma pessoa do 2?

Cato riu. Sem conseguir fingir escárnio direito. Nervosamente. Entregou o jogo todo.

— Cato, não faz papel de ridículo. Me fala o que aconteceu de verdade.

— Você tem noção de que vai ser alvejada dos dois lados se isso tudo der errado? Porque todo mundo sabe que o Snow é muito chegado em você – era uma espécie de aviso. Ele tinha decidido olhar pra ela de verdade agora, pra ver se conseguia incutir algum peso nas suas palavras, mudar de uma vez o tom da conversa.

Mas ela deu de ombros. Porque não tinha mais o que fazer, ele imitou o gesto.

— Eu não sei muita coisa.

— Você sabe mais que eu, aparentemente. Se lembra que a gente precisa compartilhar — era uma tentativa de intimidação daquelas tão frias que arrepiavam o pescoço dele. Clove era especialista nelas. Cato sorriu pra ela, um pouquinho hipnotizado, decidindo a contar só porque ela era engraçadinha com aquelas coisas dela.  

— Eu encontrei o Indigo na Capital, mas não foi casualmente.

— Como assim?

— O que o Indigo estava fazendo na Capital? Ele está velho demais pra ficar impressionado com o casalzinho do 12 e o velho barrou todo mundo da festa na Mansão. Acabou que ele ficou num hotel em uma daquelas avenidas estranhas que eles têm lá e eu parei nesse bar que fica de frente e esperei para ver o que ia dar.

— Você seguiu ele? – tinha um riso exasperado não muito bem escondido na fala dela.

— Você sabe que não tem nada que eu odeie mais do que essas coisinhas de seguir e se esgueirar e tudo mais. Mas eu segui ele. Você acredita que ele ainda tem cliente? – Clove fez um gesto que dizia “e eu com isso?”, então ele tentou sem sucesso esconder sua exasperação levemente infantil. – Eu vi ele com o Haymitch.

Havia um indiscutível ar de triunfo na fala final de Cato. E mesmo assim, havia também uma hesitação quase temerosa. Como se ele estivesse preocupado com a reação de Clove à suas palavras.

Acabou que ele estava certo. Ela meramente ergueu as sobrancelhas e disse:

— Hum. E aí?

— Como assim?

— O Indigo é um rebelde porque se encontrou com o Haymitch? Eu te falei pra não aceitar nada que o pessoal do 6 te oferece.

Ele deu de ombros e riu.

— Cato, por favor. Me poupa – Clove sibilou, olhando pra ele com desgosto. Mesmo assim, ainda havia uma persistência confiante nos olhos dele. 

— É o tipo de coisa que você tem que ver pra crer. Eles não estavam só conversando que nem amiguinhos. Eles estavam conspirando, você vai ter que confiar em mim nessa. Quantas mil vezes o velho não te contou a historinha do Haymitch pra te mandar ficar na linha? Ele é todo fodido e ainda foi o mentor da Everdeen. Se ele não estiver envolvido com isso, nem tem nada pra se envolver.

Ainda assim, era tudo muito ordinário, muito simplório. Clove ia perder a confiança nessa rebelião se Cato conseguisse arranjar uma informação dessa seguindo alguém e aparecendo vivinho para espalhá-la. A coisa toda não parecia tão elaborada quanto deveria ser.

— Você me faz uns pedidos complicados.

— Eu te vi a minha vida toda. Eu sei como uma pessoa fica quando está conspirando.

Cato estava ficando magoadinho, todo cheio de olhares persistentes, tom de voz firme e tudo. Clove decidiu ignorar, porque era complicado demais deixar ele sair com aquele tipo perigoso de ilusão narcisista. Ela suspirou com desdém e olhou para frente, com raiva de que ele fosse capaz de acreditar nas historinhas que se contava.

— Que seja.

Mas mesmo assim ele voltou atrás, suspirando, quase ressentido com a necessidade que sentia de receber a aprovação dela:

— O Indigo comemorou comigo quando os 12 saíram. O distrito dele é todo fodido. Talvez ele não esteja metido com isso, talvez o Haymitch não esteja, mas eu duvido. Se eles não estão, quem está?

Clove, em uma espécie de desafio implicante, se virou pra ele para meramente dar de ombros.

— Desenharam um tordo na entrada da Nêmeses. Alguém está metido com isso. Te garanto – Cato pacientemente sussurrou, ainda em sua missão de convencê-la. Então, encarando a expressão de superioridade de Clove, uma pontinha de raiva finalmente se insinuou. Graças a Deus.— E você? Qual é a sua contribuição no nosso compartilhamento?

— Ficar amarrada com um cantorzinho dominador não me dá muita vantagem. Eu fico pouco criativa.

Para Cato era perfeitamente claro que Clove estava com ciúmes de não ser quem sabia mais, quem estava acima naquela pirâmide disfuncional na qual eles operavam. Por isso, ela ia basicamente desvalorizar qualquer coisa que ele fizesse ou falasse, mesmo que soubesse que era verdade.  Então ele foi simples e claro:

— Foda-se, Clove, eu não estou mentindo pra você.

Ela assentiu com descaso enquanto se levantava e voltava para dentro. Ele ficou lá mesmo, esvaziando a mente antes de segui-la pro segundo round. Era inclusive uma tarefa muito rápida. Não tinha havido muita coisa na sua mente ultimamente. Ele nem deixava.

Cato tinha feito umas descobertas interessantes, descobertas que podiam transformar suas fantasias de vingança em realidade. Esse era seu novo propósito, importante porque Cato às vezes se sentia sem propósito. Não entediado, que nem Clove ficava às vezes, porque isso era muito fácil de resolver. Ela, por exemplo, tendia a ter ideias péssimas quando ficava “entediada”. Ele podia chamar ela para treinar, se fosse tédio, eles podiam ir pra cama. O que ele sentia não era tédio. O problema exatamente é que ele quase nunca sentia nada. Então quando uma animação de leve se insinuou em sua mente e Clove decidiu destruí-la em segundos, Deus. Se ele conseguisse sacudir ela só uns segundos e pedir pra ela parar de ser uma vadia daquelas, ia ser perfeito.

A música tinha cessado e ela não estava mais lá quando ele decidiu entrar. As chances eram de que ela tivesse ido para Academia, ajudar Enobaria e Brutus a mandar outro grupo de crianças de nove anos pras montanhas afastadas pra que elas pudessem então assassinar os prisioneiros da Capital. Era assim que ela passava a maior parte do seu tempo disponível no 2 e Cato tinha dificuldade em conciliar essa Clove que gostava tanto da Academia com a Clove que queria se envolver em uma rebelião. Pra quê? Qual era o interesse dela?

Ela passava noites em claro e tinha crises de choro e vivia jogando facas do nada em pessoas que tinham a infelicidade de meramente dirigir a palavra a ela e, mesmo assim, dia após dia, ela voltava para a Academia, sentenciando mais gente a ter o mesmo destino que o dela.

Cato podia se enganar por muito tempo, ele era muito bom nisso. Mas, às vezes, ele pensava que era melhor desistir logo. Talvez ele precisasse aceitar que na maior parte do tempo ele não ia conseguir odiá-la. Era complicado ver os mesmos motivos que faziam ele a odiar na Academia agora o fazerem gostar um pouquinho mais dela. E o que ele devia gostar, era justamente o que o fazia querer odiá-la.

E aquela coisa tomava energia. Decidir se odiava ela ou não, se era inteligente tê-la perto ou não. Tomava energia dele e ele odiava isso porque antes tudo era muito claro. Antes, nada tomava energia dele, nada o incomodava.

Ele querendo que Clove vivesse ou morresse era uma questão natural, uma estratégia em um jogo que precisava ser jogado. Agora ele precisava refletir sobre elas porque nada mais embasava suas decisões, ele tinha que as tomar sozinho.

Era o cúmulo.

Ele então pensou que aquela guerra devia começar logo. Dessa forma, ele teria alguma coisa que pudesse compreender de verdade, coisas que pudessem ser destruídas com facilidade, longe daqueles processos longos de pensamento que ele fazia agora.

Cato, no final, gostava mais de ver coisas sendo destruídas do que vê-las crescendo.


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Notas finais do capítulo

Fuleiragens são tudo pra mimmm e é muito bom escrever um capítulo cheio delas. Escrevi esse trem no fim do semestre retrasado no meio de um SURTO com a franja recém-cortada no meio da testa às três da manhã, então ele tem aquele traço de loucura muito presente. Enfim. Tomara que vocês tenham gostado (eu gostei porque eu AMO eles e se alguém escrever A num arquivo e falar que tá falando sobre Cato e Clove eu provavelmente vou gritar que é ARTE. Mas, sério, esse aqui tem Informações Importantes pra trama e fala muita coisa sobre meus bebês), que a semana seja muito tudo e.... BEIJÃO ♥



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