Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 17
All cause you love.


Notas iniciais do capítulo

Oi oi! Retorno oferecendo a vocês um dos capítulos que eu acho mais brabos... Ele é grandinho, etc, mas é tudo para minha carreiraaaaaa!! O título vem de uma musiquinha muito bonitinha chamada Love Love Love do Of Monsters and Men (fun fact: eu tive uma fase indie em meados de 2014 em que me meti com todo tipo de coisa que era COOL TM e até hoje sou apegada a esta bandinha ainda que no geral eu só escute pop marromeno). Escrevi este aqui com todo meu amor (como sempre) e espero que cês gostem!



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Amor. Essa era uma palavra estrangeira para o Distrito 2.

Você poderia perguntar para uma centena de crianças o significado dela e, confiantemente, menos da metade delas saberia como te responder.

Cato precisou viajar muito por Panem e pela Capital – que podia bancar todos os tipos de sentimentos para seus habitantes – para resgatar a palavra do fundo da sua mente, porque em casa, ela era meramente o espaço em branco que ninguém podia preencher.

Ele conhecia a preocupação, o cuidado, conhecia a paixão, a luxúria. Não o amor. Ele não sabia onde achar isso, ele nunca havia sabido. Cores levemente borradas e pontos de interrogação surgiriam após a palavra toda vez que ela fosse usada na frente dele.

Contudo, ele sabia o que o amor não era, sabia onde o amor não podia ser encontrado. Ele não era seu pai rosnando perguntas sobre seu treino na porta do seu quarto e não poderia ser encontrado na casa grande e branca que eles moravam. Ele não era os olhos obcecados de Wade observando Clove e não podia ser encontrado nas salas de treinamento Academia. Ele não era os sussurros delirantes de seus clientes e certamente não poderia ser encontrado em suas camas.

Conforme Cato crescia, ele percebeu que suas reflexões concluíam que aquela invenção, o amor, não tinha sido feita para pessoas como ele.

E mesmo assim...

Só podia ser um castigo, como tudo em sua vida.

Porque talvez o amor pudesse ser encontrado na floresta atrás da Nêmeses e nas salas abandonadas na Academia, afinal. Talvez o amor aparecesse em formas estranhas e sobrevivesse à quase tudo. Talvez o amor fosse o que sustentava lealdades estranhas entre eles. Talvez o amor fosse feito de ferro.

Só podia ser um castigo.

— Eu estou pensando em começar o revezamento só a partir de amanhã – Clove disse, sentada do outro lado da mesa no café da manhã, depois da partida dos tributos. Ele, olhos vagamente borrados, acenou com a cabeça:

— Claro, pode ser.

— A gente vai junto hoje. O que você acha?

— Pode ser.

— Talvez a gente cancele essa história de revezamento de vez. Não funciona. A gente pode ir junto toda vez.

— Por mim, pode ser. Você que sabe.

— Eu estou pensando em meter um soco na sua garganta. Pode ser, também?

Cato finalmente foi obrigado a abandonar suas reflexões depreciativas e rir relutantemente.

Se ele amasse Clove de verdade, ele poderia dizer com certeza que ela não amava ele de volta. Não havia sequer uma possibilidade. Ela sempre tinha sido melhor que ele e, no fundo, ele sempre tinha sabido disso.

O que ele pensava ser ele sendo o cachorrinho fiel dela era ele estando apaixonado por Clove. Mas ele e só ele. Clove ainda se sentava em seu trono de ouro e o observava com uma distância fria, como sempre.

Então ela não enganava ninguém rindo de volta pra ele ou forçando uma conversa e perguntando se tinha alguma coisa errada quase suavemente porque ele sabia que ela era mais forte e que ela tinha realmente ouvido os sermões dos seus treinadores e de Enobaria e de todo o resto.

— Se o Brutus e a Enobaria conseguirem animar o pessoal daqui, eles vão precisar de supervisão vinte e quatro horas. Aí eu não vou precisar sair – Clove continuou depois de alguns minutos em silêncio, num tom de voz que poderia ser descrito como esperançoso, se Clove fosse capaz de emitir qualquer palavra nesse tom.

Que Deus não permitisse que ela estivesse esperando que ele fosse poder protegê-la ali.

— Cansa, sabia? Ficar supervisionando pessoas vinte e quatro horas, ficar acordado vinte e quatro, ficar sóbrio vinte e quatro horas. Ainda mais com o pessoal daqui – Cato respondeu, terminando seu prato de cereais, dando pouca consideração àqueles planos extravagantes que certamente seriam desfeitos nas primeiras quatro horas em que ela se lembrasse como as coisas eram. Cato estava preocupado demais com as verdades amargas que rondavam em sua cabeça.

— O revezamento foi o que fodeu com a gente ano passado, é melhor evitar. Aí todo mundo pode ver que esse ano...

Clove se interrompeu, mordendo os lábios por um segundo.

Naquele ano, dois de seus mais entusiasmados treinadores morreriam porque ninguém havia lhes dado o benefício da dúvida. Eles morreriam porque Lyme não acreditava que eles fossem apoiar qualquer coisa que tirasse o benevolente Snow do poder.

E seus pupilos estavam bem ali, casualmente os traindo.

Cato ergueu as sobrancelhas e empurrou a bochecha com a língua, surpreso com aquela expressão perturbada no rosto dela.

— A gente só está obedecendo às ordens. Obedecendo aos superiores, que nem o Brutus sempre mandou – foi seu vago consolo. Eles tinham que obedecer às ordens da Lyme, claro, mas Brutus provavelmente revogaria essa instrução se Lyme virasse a líder rebelde que viesse a decidir seu direito de viver ou não.

Clove não respondeu. Toda aquela falação de Cato e aquela coisa em seus olhos tinham feito uns estragos nela. As coisas não pareciam mais tão simples, no final das contas. Talvez ela não entendesse as coisas na mesma magnitude que ele, mas o pouco que ela entendia a fazia... desconfortável.  

Ela quase queria rir. Clove Kentwell. Hesitando frente à uma traição.

Cato apertou os olhos para ela e ela viu a descrença em seu rosto.

— Não sabota ninguém esse ano, ok? – ela suspirou, se levantando da mesa.

— Prometo – Cato respondeu, uma risada irônica transparecendo pela sua simples e única palavra. Mas Clove ficou lá parada em sua frente, de braços cruzados enquanto arrependimento começava a inundar seus olhos. Cato mal pôde acreditar. Que porra era aquela? — Eu não vou mexer com ninguém. É sério.

Como sempre, ela acreditou no que ele a dizia, se ele falava naquele tom.  

— Beleza. Eu vou me arrumar e a gente desce daqui a pouco.

— Claro.

— Pode ser?

— Pode.

Cato sorriu de leve enquanto ela se afastava rindo, sacudindo a cabeça.

Mas ela não te ama, a voz disse. Ela é muito divina para isso.

Cato tomou a primeira dose do dia e ficou horas fixando seu olhar na outra ponta da mesa, preenchendo sua mente com nada além da decoração sofisticada e o mogno e a ponta levemente afiada do móvel.

Clove apareceu um tempo depois, vestida em uma das roupas preparadas por seu estilista. Ela estava estranha, movendo os lábios de um lado para o outro como se ponderasse intensamente sobre algo. E Cato infelizmente sabia o que esse algo era, ele tinha visto a sugestão em sua mente nas noites em que a culpa quase o sufocava.

— Você quer ter compromisso total com eles – ele atestou relutantemente, cruzando os braços.  

Compromisso total. Era a expressão deles. A única vez que ele tinha tido isso havia sido no ano em que a Capital fora agraciada com uma garota que parecia ser feita de porcelana e de um talento exótico com facas.

Normalmente, os mentores só faziam isso em seus primeiros anos, quando se importavam mais do que deviam com seus tributos. Compromisso total, naquela circunstância, significava que tudo valia; clientes iriam ser adicionados em listas, favores seriam prometidos, transgressões seriam combinadas. Vigílias de vinte e quatro horas realmente seriam cumpridas.

Depois que Clove havia ganhado, Cato sentiu que preferia morrer a ter compromisso total outra vez. No ano depois do dela, então, ele não teve nenhum. Seus tributos morreram. Tudo foi por água abaixo com os 12. Ele se colocou naquela bagunça.

— Você quer? – ela perguntou de volta, cruzando os braços.

— Não gosto deles desse tanto – ele cuspiu, automaticamente, sacudindo a cabeça. Mas eles tinham deixado Enobaria e Brutus morrer sem sequer ponderar, tinham escolhido a traição, virado as costas para quem os tinham construído. O compromisso total talvez expurgasse seus pecados, talvez fizesse a morte deles mais aceitável. Certo?— Eu sei lá. Depende.

— Do quê?

— Do tanto de culpa que dá pra ficar.

Clove distraidamente passou a línguas pelos dentes.

— Opções abertas, então – ela concluiu.

A coisa só atingiu Cato quando eles se acomodavam em um sofá redondo rodeado por incontáveis telas, prontas para mostrarem as várias faces da arena. Depois de suas chegadas, o sofá foi cercado por patrocinadores famintos por eles, também. Então, do meio deles Naevio emergiu. Foi o que Cato precisou para entender que o compromisso total de Clove também era o que poderia lhe dar alguma liberdade ali.

Infelizmente, a existência do homem em sua narrativa era algo a que Cato estava começando a se acostumar. O conforto que seus planos elaborados o traziam era bom o suficiente para que Cato não se preocupasse muito. Ele apareceria, apertaria ela de uma forma perturbadora, jogaria alguns olhares supostamente intimidadores e Clove e ele ainda assim dormiriam no mesmo quarto toda noite. Cato se concentrava tanto em não aparentar dedicar atenção a Naevio que ele quase podia esquecer que aquele era o homem que estava lenta e majestosamente quebrando quem era a pessoa mais (inquietantemente) forte que ele conhecia.

Infelizmente, é quando você abaixa a guarda que o inimigo ataca.

Clove alcançou o bar e seu namorado se arrastou pelo sofá até estar imediatamente ao lado do seu... parceiro de treino.

— Eu tenho uma fita da sua edição dos Jogos – foi como Naevio começou, suavemente, um sorriso cortês em suas palavras. Cato nunca soube nada certo sobre cortesia, mas ele desviou os olhos de um ponto vazio e os pousou no homem ao seu lado, todo produzido nos ternos vermelhos e nos olhos estranhos de sempre.

— Bom pra você, cara – ele arrastou, levemente impressionado com a cegueira das pessoas da Capital. Você sabe, o primeiro pensamento de Cato sobre a situação foi que toda aquela cortesia na fala de Naevio, no seu ato de puxar assunto com ele, se tratava da inocência dele acerca da natureza de seu relacionamento com Clove. Então, ele sentiu uma raiva exasperada, porque como uma pessoa daquela ficava no caminho de Clove? Era mais um dos motivos pelos quais a Capital precisava cair.

— Aquela hora que você acabou com aquela menina do 3... Cara. Impagável.

Ele esperou sua reação avidamente e aquela foi a primeira dica. Cato só mudou sua postura relaxada naquele momento. Ninguém certo podia se acostumar com aquele tom artificial na voz dele, a estranheza em seus olhos pequenos. Ninguém devia.

— Valeu.

— Eu assisti isso ontem, então... Cabelo preto, sardas, um corpo bem pequenininho... Ela parecia a Clove – Naevio miou lentamente, olhos pregados na figura irrequieta de Cato o tempo inteiro. – Então é engraçado que...

— Ela não parecia a Clove. – Cato o cortou, sem perceber as palavras deixando seus lábios. Naevio igualmente o atropelou para proferir sua próxima sentença:

— Então é engraçado que você esteja apaixonado por uma pessoa igualzinha outra que você matou.

Há esses momentos na vida em que as coisas parecem se mover muito vagarosamente, como se o tempo deixasse de existir por uns segundos. Meticulosamente, as conversas ao redor dele perderam o ritmo animado, os mentores apressados não pareciam mais tão preocupados com seus tributos, os Avoxes pararam de se movimentar de uma vez. Os olhos de Naevio, no entanto, continuavam se movendo muito rápido. Procurando por qualquer brecha, qualquer mudança em sua expressão. 

Para a sorte de Cato, sua mente também se movia muito rápido. Seus músculos faciais igualmente. Ele sorriu.

— Eu estou apaixonado pela Clove, agora? O que seria de vocês daqui sem o drama, hein? – ele riu, cruzando os braços. Mas nenhum esforço parecia estar sendo feito. Naevio continuava na mesma posição de ataque, continuava com seu olhar examinador. Bem ali, em Panem, o Vitorioso do Distrito 2 estava sendo interrogado por um cidadão da Capital que cantava para fazer dinheiro.

Para Cato, aquilo era uma perfeita inversão de valores.

— Eu não quero ofender, parceiro, mas você está superestimando seu produto. Eu fui o mentor dela, eu sei que a última coisa que eu preciso é de mais tempo que o necessário perto dela. Você deve saber do que eu estou falando, ela...

— Você também não era seu parceiro de treino?

— É, infelizmente, só por uns anos. Não me leve a mal, eu gosto dela, ela é minha amiga. Ela é muito legal quando está bêbada e ela meio que te cativa depois de um tempo, mas...

— Você fode ela.

Isso contava como a terceira vez que Cato estava sendo interrompido por Naevio. Com uma sentença que ele não tinha exatamente como rebater. Com seus nervos lentamente indo por água abaixo. Ele ficou lá, sustentando o olhar do homem com sua própria versão intimidante, debochada. Naevio era exatamente igual dezenas de colegas de treino que ele havia conhecido com o passar dos anos no 2. Era assim que ele sabia que dava conta de resolver o que quer que fosse com ele, não fosse o homem em questão um cidadão da Capital que passava tempo demais sozinho com Clove.

— Você acredita no que quiser. Eu não encosto na Clove – Cato resmungou, espalmando as mãos para cima como um homem que não devia nada a ninguém.

— É meio triste, sabia? Ver você olhar pra ela daquele jeito. Eu pensei que vocês tinham algum treinamento pra isso, pra esconder essas coisas. Um Vitorioso tão talentoso, tão cheio de potencial, apaixonado. Pela Clove.

A entonação em sua frase obrigou Cato a voltar a encará-lo no meio do ato de pegar sua bebida. “Pela Clove”, como se fosse um desperdício, uma vergonha. Ele cerrou os dentes e tudo, mas não disse nada. Ele esperou que o homem sorrisse seu sorriso cínico e voltasse a falar.

— Eu compro um tanto de coisa pra ela, eu me dedico a melhorar ela, mas mesmo assim ela não... Você sabe. Compensa o trabalho todo. 

Cato passou algum tempo fitando Naevio, tentando ver a profundidade daquela armadilha. Mas ele tinha a quantidade certa de insanidade exalando de seus poros, a quantidade certa de casualidade. Não tinha como ter certeza.

— Parece que você gosta dela ainda menos que eu. Pra que essa historinha de romance, então? – ele arriscou.

— Ah não, não, eu amo ela. Muito. Ela é meu mundo. Eu só queria que ela se esforçasse um pouco mais e pra isso você precisa deixar ela em paz. As coisas seriam bem fáceis sem você rondando, Cato, esse é meu único problema. Uma vez, ela estava dormindo, só para constar, ela começou a falar seu nome. Ela foi tipo “Ca...” e aí. Bam. Eu acordei ela pra dizer o nome certo.   

O sorriso calculado de Cato deixou seus lábios. Uma visão, uma visão perturbadora, tomou sua mente. Bile começou a voltar para sua garganta. A cabeça dele rodava e latejava intensamente. Ele não estava mais acostumado com aqueles tipos de emoções intensas, ele nem sabia de verdade o que era ficar à mercê de uma pessoa, ainda mais uma da Capital.

Que porra era aquela?

Era como se Naevio conseguisse ver seu processo de pensamento. Sorrindo mais, ele se acomodou de novo no sofá.

— Não conta isso pra ela, eu realmente a amo, apesar de tudo. Então é por isso que é melhor você desiludir, partir pra outra. A Clove está amolecendo. Até o fim do ano eu já vou ter amaciado ela. E aí você é esse monstro que já matou não sei quantas pessoas, e eu tenho civilidade, eu nunca encostei em ninguém... Dá pra ver quem ela vai escolher – a arena começou a ser exibida. Naevio se voltou para uma das telas. – Ela é esperta, tenho certeza que vai ser a escolha certa. E se não for... você vai ser o primeiro a saber, creio eu.

E pronto. A ameaça ficou daquele jeito, no ar. Conhecendo as marcas dele no corpo de Clove, ele sabia exatamente por que ele seria o primeiro a saber das escolhas dela.

Muito familiarmente, uma coisa poderosa começou a correr por suas veias. Começou a dilatá-las, começou a cerrar seus dentes e fechar seus punhos. Ele conseguia acabar com uma pessoa daquela em cinco minutos. Se ele aprendesse sobre como as coisas deveriam ser feitas, tudo ficaria certo.

Mas não. Ele iria ser só o terceiro a saber do que quer que aconteceria.

Ele estava um pouquinho de nada derrotado. Coçando o nariz, ele olhou a expressão tranquila do cantor. Seu tom, sua postura. Era como se ele estivesse falando do tempo. Cato sentiu um arrepio descer por sua espinha e ele era quem costumava colocar os arrepios nas espinhas alheias. Naevio era um espécime peculiar.

Um daqueles que devia ser extinto.

— Cato, o negócio é que eu trato ela bem. Eu consigo fazer isso, sabia? Eu beijo ela e abraço ela e converso com ela. E você, você consegue fazer essas coisas? Porque, olha pra você, tudo que você faz é destruir. A Clove é pequenininha, você pode acabar machucando ela. 

— Você é um cara engraçado – ele rosnou, se levantando em uma tentativa inconsciente de lembrar o homem de como o equilíbrio de poder deveria funcionar.

— Eu tento. Que nem você devia tentar largar ela. Agora o lugar dela é aqui, com gente de verdade. Comigo.

Só um soquinho de nada e ele pararia de falar. Só uns dedos deslocados e ele iria mudar de ideia sobre aquela coisa toda da Clove. Um par de dentes quebrados. Problema resolvido.

Contudo, em vez de saciar os desejos sangrentos de sua mente, ele deu um aperto cortês nos ombros do namorado da sua amiga e meramente ergueu suas sobrancelhas em resposta. Cedo ou tarde, acabariam os dois resolvendo esse problema de uma vez e essa era a certeza mais pungente que Cato tinha.

— Bom falar com você. Desencana dessa história – ele disse, forçando um sorriso.

Depois de uma última encarada ameaçadora, Cato finalmente deixou o sofá e encontrou uma silhueta familiar sentada no bar, ao lado do mentor do 8 e de umas três desesperadas figuras coloridas. As bebidas continuavam vindo e os toques ousados também, mas ela nunca tirava os olhos de uma das telas, que mostrava a aliança dos carreiristas terminando uns trabalhos na Cornucópia. Ele se virou bem a tempo de ver Uter ser morto assim que finalmente alcançou a faixa de terra da Cornucópia. Uma espada atravessou seu coração e Brutus não pareceu se lembrar das ofertas generosas de arranjar “alguma coisinha para fazer o tempo passar mais rápido” que sempre vinham do outro homem.

Nenhum tempo para sustentar a rebelião para o tributo do 6.

As palavras de Naevio continuavam ecoando em sua mente. Ele virou pra trás e o viu rindo de algo que outro patrocinador falava. Rindo como uma pessoa normal, fazendo comentários humorados e tudo. Enquanto estava vendo todas aquelas pessoas tocando dela. Ninguém que gostasse dela de verdade iria deixar aquilo acontecer, não quando os olhos dela estivessem daquele jeito, não enquanto ela estivesse encolhida daquela forma, enquanto seus dentes estavam cerrados de tanto ódio.

Agora o lugar dela é aqui. Com gente de verdade”. 

Mas Clove não queria ficar lá. Ela não queria suas duas caras, o sadismo da Capital. Eles machucavam ela e Naevio só queria ela ali para isso, para o castigo final. Como veneno, a raiva quase inebriou sua mente.

Ele se decidiu muito rapidamente. Brutus e Enobaria não iam precisar de nada por algum tempo, mas Naevio precisava ver ele fechar negócios que não envolvessem Clove. Talvez aquilo aliviasse suas suspeitas acuradas, talvez ele fosse se divertir com a tortura. Não importava. Ele tentaria de tudo.

— Senhoritas – ele cumprimentou um dos vários grupos de mulheres peculiares que haviam na sala e se sentou no meio delas, bebendo um último gole de rum antes de esticar os braços pelo encosto do sofá e se preparar para manter fora de vista seu o-que-quer-que-fosse com Clove. E de quebra, mostrar seu comprometimento com seus tributos.

Ele havia estado com só duas delas, então algum negócio deveria sair dali. Talvez, se toda a coisa de rebelião desse certo, ele nem sequer teria que cumprir os tratos. Mas só talvez.

Cato estava impossivelmente cheio da Capital. Um lugar daquele não deveria existir em terra nenhuma. Nada naqueles palhaços sugeriam que eram eles que haviam ficado devastados com a tragédia do casal do 12, nada em suas risadas e em seus maneirismos colocava qualquer realidade naquele incidente da noite anterior.

O que ele precisava para continuar com as risadinhas e os sussurros em ouvidos só apareceu quando ele finalmente reparou que a arena daquele ano tinha o formato do relógio vagamente insinuado por Ivory na noite passada. A cada seção, uma genialidade preparada pelos Idealizadores esperava os tributos. Havia gaios tagarelas para o drama, sangue chovendo para o efeito visual e mutações surgindo para a ação. Era definitivamente tudo que a Capital poderia sonhar.

Ódio mais uma vez nublou seus pensamentos; não era possível que eles tinham pecado tanto assim.

Se havia uma chance de acabar com tudo aquilo e ainda conseguir que Clove fosse um pouco menos machucada, ele precisava fazer uns últimos esforços. Cato achava que quase não sentia nada, mas mexer com tudo aquilo de novo ainda demandava muito álcool para empurrar o vômito para baixo. Ele tinha esquecido do que era sentir aquelas mãos em sua pele.

A última facada do dia foi ver que ela ainda conseguia ficar com aquela coisa nos olhos quando o via... fazendo coisas que não deveria estar fazendo.

A noite caía na arena e seus tributos tinham tomado a praia que a cercava, mas ainda assim não tinham encontrado nenhuma água potável, que nem todos os outros. Os mentores começavam a se inquietar. Ele viu de canto de olho Haymitch Abernathy se reunir com Librae Ogilvy, já que seus tributos estavam envolvidos em uma aliança considerada exótica não fosse conhecida a bravata de Finnick de se encarregar de ser o primeiro a zelar pela vida de Katniss. Os Pacificadores logo se aproximaram da mesa, como estavam fazendo a cada vez que alguém se reunia, e ficaram pairando lá mesmo, de forma a ouvir o que quer que fosse dito. 

Então, uma vez que ele estava preso pelas suas companhias cada vez mais animadas, todas esperando seus sussurros e promessas vagas, Clove foi forçada a alcançar seu sofá. Seu caminhar era firme, duro. Cato quase desviou o olhar do dela porque algumas coisas eram demais. Uma das mulheres decidiu beijar sua mão da forma que ela fazia às vezes.

Você é um porco. Você é nojento e desprezível e você com certeza vai pro inferno, seu filho da puta nojento, ele quase ouviu as palavras na voz dela, como se a simbiose deles estivesse finalmente completa e ele conseguisse ouvir seus pensamentos em sua mente.

— Oi, meninas. Eu vou ter que pegar meu companheiro de distrito por cinco minutos, pra gente poder salvar a bunda daqueles dois lá dentro – ela ronronou, distraidamente segurando a mão da que previamente o tocava. Elas todas sorriram e arregalaram os olhos para aquela outra preciosidade da nação, bem ali interagindo com elas. – Já trago ele de volta.

E foi isso. Ele conseguiu uma brecha que parecia impossível com umas piscadinhas e um sorriso de Clove.

 - Elas vão colocar dinheiro pra gente mandar alguma coisa. Por conta da história do compromisso total – Cato se apressou em justificar, ainda que nada fosse resolver aquele tipo de merda. Clove não respondeu, sem o olhar nos olhos o tempo inteiro. – Seu namorado está aqui, mas pelo menos umas três delas vão pedir seu contato. O velho vai...?  – ele perguntou, aterrorizado com a ideia de que mais problemas fossem surgir.

— Ele agora só autoriza quem ele confia que não vai falar nada. Pra não estragar a coisa com o Naevio – seu tom era prático, arrastado, muito parecido com o seu. – Sei lá, quem liga. Eu estou pouco me fodendo.

Cato sabia que não havia nada que ele pudesse fazer para tirar aquele olhar... esquisito dos olhos de Clove. Era só esse que ela tinha quando eles estavam ali. Mesmo assim, uma coisa estranha pulsava desesperada em sua mente, tentando achar saídas. Ela não parecia estar se fiando a nada. Tudo isso no primeiro dia dos Jogos. Sua cabeça voltou a latejar.

Ele se perguntou o que aconteceria com ele se Clove desistisse. Se ele iria sentir, como se sente fisicamente uma punhalada no coração, um soco na garganta, se ele estaria perto, se ele só deixaria de existir ao mesmo tempo que ela.

Sua mãe tinha dito “é ela” quando conheceu Clove pela primeira vez, quando eles tinham sete anos, e ele se perguntava se ela sabia que ele estaria ligado àquela garota franzina pelo resto da vida, que a aliança deles seria feita de aço, assim como os olhos de Clove e o mundo estranho que eles viviam.

— Assim que o seu namorado for embora, eu assumo e você sobe.

— Claro. Pode ser. Então. O Gauis quer que eles usem a água do mar, mas não sabe como. Mas você viu as árvores? A Rendwick e eu achamos que só dá pra tirar água dali, então a gente vai precisar do dinheiro pra... – e aí Clove não teve mais tempo de parecer muito triste. Contudo, Cato encontrou tempo para atestar o fato de que ela parecia estar desaparecendo bem ali na frente dele. 

Um punho invisível se chocou contra sua garganta enquanto ele a observava concordar com Rendwick e secar uma única lágrima que escapou de seus olhos.

Cato soube que era ali na Capital que ele encontraria seu fim.

O resto dos outros acontecidos se embolaram para Cato. Naevio se despediu em um ponto da noite, quando os outros patrocinadores já estavam muito bêbados para falar coerentemente. Ele se abaixou e beijou Clove de um jeito que não fez nada além de confirmar para Cato suas suspeitas de que um deles teria que acabar morto até o final da coisa toda. 

Então ele esperou o homem deixar o prédio e sussurrou para Clove que ela deveria ir para o andar deles. Ela o fez e aí Cato encontrou o olhar excessivamente atento de um dos homens que formavam a companhia de Naevio, o que o fez pensar que talvez ele fosse quem ia acabar morto no final da coisa toda.

Foda-se. Ele só iria se levasse Naevio junto.

Seus tributos conseguiram a água, ele combinou com os mentores do 1 que depois poderia cobrir a aliança sozinho e subiu para o andar do 2. Era difícil dizer se era dia ou noite, mas Clove já devia estar dormindo em seu quarto, então para evitar ainda mais danos, se é que era possível, ele rumou para o seu.

Depois de uma hora, uma batida na porta:

— Você quer ficar nesse aqui hoje? – Clove disse, empurrando de leve sua figura para o lado e adentrando o quarto. Ela não devia estar ali. Por causa de tudo que ele tinha feito, por causa de Naevio sabendo demais, por causa do seu olhar estranho, por causa daquela invenção de sentimento.

— Não – ele soltou, fechando a porta atrás deles. Ele estava sóbrio agora, o latejar na cabeça intensificado.

— Quer ir para o meu? – ela continuou, se sentando na cama, uma expressão ligeiramente menos preocupante que a de antes. Um leve divertimento se insinuou em seus olhos à visão da figura nervosa de Cato. – O que é que você tem? Eu não vou te morder, aberração.

Ele tinha as imagens em sua cabeça, construídas por todos aqueles meses e pelo discurso cuidadoso de Naevio, esmagando seu cérebro contra seus olhos, sufocando seu peito.

— Você viu o tanto de tempo que o Naevio passou conversando comigo hoje? – foi o que ele conseguiu montar, ainda parado perto da porta.

— Sim – Clove respondeu, erguendo as sobrancelhas com o que só podia ser desafio.

— Você estava toda preocupada com ele vendo aquelas fotos imbecis lá e agora está pouco se fodendo com essa história? – Cato disse, exasperado, porque ela ainda era daquele jeito, ainda se preocupava pouco demais com a possibilidade de acabar morta, ainda se importava muito pouco com tudo.

Ele começou a levar a mão até os olhos para tapá-los, até que Clove levantou um pedaço de sua blusa e revelou uma grande, multicolorida, marca descendo da altura dos seus seios até alcançar o cós da sua calça e descer todo o caminho até sabe-se lá onde.

A boca de Cato secou e ela abaixou a blusa antes que ele pudesse tocá-la. Clove meio que riu e espalmou as mãos para o ar.

— Não tem mais nada pra se preocupar – foi o que ela disse, olhando para Cato com nada nos olhos. Ele quase poderia atravessar aquela porta e parar no corredor. – A merda já aconteceu. Ele já sabe. Não foi isso que ele estava te falando hoje?

Cato sentiu que alguém havia cortado todo o oxigênio. Havia horror em seus olhos.

De volta pro Distrito 2, havia vezes em que esse tipo de coisa iria acontecer. Clove era uma encrenqueira, ele era um também. Havia hematomas e feridas abertas e a coisa toda. Na Capital, às vezes clientes ficavam empolgados. O problema era que Clove nunca havia tido essa expressão no rosto mostrando as marcas. O problema era que, antes, ninguém que a marcava tinha coragem de sentar ao seu lado e contar os detalhes do processo. Parecia uma situação sem saída. Então Cato sentiu que o ar não havia passado apropriadamente para seu cérebro.

— Essa aí é nova – ele balbuciou.

A frieza calculada da coisa, o rosto perfeito e intocado de Clove, a escolha precisa de onde depositar as marcas... Cato sentia que o chão se abria abaixo de seus pés de novo.

— É, é de ontem. Tem tempo que ele sabe dessa história. Não tem mais o que fazer.  

— Ele acabou vendo as fotos?

— Ele não precisou – Clove, com todo seu talento, não conseguia achar as palavras apropriadas. Ela quase pareceu desconcertada, erguendo as sobrancelhas e coçando o rosto vagamente. – Às vezes dá pra perceber.

Aquilo era ela dizendo que todas aquelas vezes que ele tinha a olhado daquele jeito e ela tinha lhe dado um tapa na testa, ela estava certa. Todas as vezes que seus dedos tinham imperceptivelmente corrido pela pele dela, ele devia ter parado. Que cada vez que suas mãos tinham se fechado em punho por causa de Naevio e ela, ele tinha que ter pensando melhor. Aquilo pareceu com a sensação de uma mão estapeando seu rosto.

— Porra. Eu... Me desculpa, Clove, eu não...

Clove sacudiu a cabeça, dispensando.

— Sou eu que bato na sua porta, não é?

— Não, você quase nunca bate – ele respondeu rapidamente. – Eu não devia ter...

— Não tem problema, isso não faz diferença. Não importa, Cato. Ele ia ficar sabendo de qualquer forma. Ele sempre soube, eu acho.

Porque Deus proibisse que ela sequer insinuasse que tudo aquilo tinha piorado quando eles voltaram juntos para a Capital e todo mundo pôde ver que ainda havia glória em Cato, que eles ainda vendiam o que quer que precisavam vender. Que a Capital dava sinais de querer Cato de volta. Naevio, afinal, não era o tipo de homem que permitia que dissessem que seu troféu podia muito bem ser de outro homem. Talvez o troféu fosse deixar de ser seu, mas ele só o passaria depois de infligir uns estragos.

— E o velho? Ele contou pra ele que sabe?

— Sei lá – ela deu de ombros mais uma vez. Aquela Clove de antes era quem estava certa sobre aquela coisa toda. A Clove certa era aquela que tinha aparecido na sua casa assim que eles tinham voltado da edição passada, o avisando para ficar longe. Essa de agora tinha olhos de vidro, três quilos a menos e uma resistência à dor que não devia pertencer a ninguém.

— “Sei lá”? Pelo amor de Deus, Clove! Olha essa porra aí. Ele vai te quebrar toda.

— Que surpresa – nem tinha um esforço pra ser irritante. Nada, não tinha nada. Ele se perguntou se uma sacudida em seus ombros iria fazer efeito. Clove arregalou os olhos, para fazê-lo desviar o olhar.

— É sério— Cato se sentou ao seu lado na cama e notou vagamente que ela tinha virado o rosto de leve para a outra direção, ainda que ele não estivesse nem muito perto dela. – Como que isso funciona?, por que ele faz isso?

— Sério? – Clove pareceu surpresa com suas perguntas, esperou que ele estivesse brincando. Mas lá estava ele, parecendo ter dez anos de novo, aqueles olhos grandes de quando ele via seu pai.  – Porque é o estilo dele. Eu deito lá e ele faz essas coisas enquanto... Cato, vai se foder, eu não quero falar disso com você.

Não com você, a pessoa que morreria se Naevio ficasse muito insatisfeito e decidisse me prender a ele pra sempre.

Clove não queria compartilhar muita coisa com Cato. Suas ações podiam trazer mais estragos e ela via um futuro sem rebelião, um futuro de violências muito silenciosas na casa que ela dividiria com Naevio na Capital, no sobrenome que ela adotaria e que marcaria a dominação final, a renúncia do que ela sempre tinha sido.

E o que ela sempre tinha sido, afinal, era de Cato.

— Não, Clove, essa porra está ficando séria. Você tem que pensar em alguma coisa pra acabar com essa merda até eu resolver isso de vez. Pede para ele, fala que você vai parar de me ver se ele parar com essas putarias.  

Clove não disse mais nada. Ela não tinha nenhuma resposta, então ela ignorou a expressão confusa de Cato e subiu para a cama, onde se deitou como se aquela conversa nunca houvesse acontecido. Depois de um tempo, Cato se juntou a ela. A cabeça dele girava e girava.

Ele queria dizer que tinha visto ela chorar mais cedo na sala com os patrocinadores, que via que ela não fechava os olhos de noite, que eles precisavam pensar em alguma coisa, mas Clove não parecia que ia ouvir, não parecia que ia se importar com qualquer coisa que ele dissesse.

Coisas terríveis estavam acontecendo por causa daquela invenção de sentimento que vivia rodando em sua mente. Havia hematomas e pessoas desistindo e ameaças e Cato só queria se dar um soco bem rapidinho, só para se perguntar por que ele era a pessoa mais burra de Panem inteira.

Ele havia deixado as coisas chegarem àquele ponto. Ele era quem tinha cercado Clove e depois a dito como ela deveria se sentir acerca das pessoas da Capital tocando nela. Talvez se ele não tivesse se metido, ela não estaria assim. Talvez ela estivesse se saindo melhor, talvez ela fosse mostrar aquelas marcas para ele rindo de verdade, dizendo “olha que incrível”, como ela costumava fazer antes, quando eles eram novos e as marcas contavam histórias de batalhas justas.

Isso é culpa do Naevio ou é minha?

E tudo porque ele tinha descoberto o que era aquela invenção de sentimento ridícula.


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Notas finais do capítulo

FELIZ PELA POSSIBILIDADE DE EXPLORAR OS SENTIMENTOS TM DELES!! Na moral, família (vou usar uma palavra amaldiçoada porém necessária), a SIGNIFICAÇÃO que Cato dá pras coisas que ele sente...... fico triste. Ai, fico triste de modo geral pensando nessas presepas..... Mas amo eles mais que TUDOOO! Ansiosa pra mandar logo esses cap mais titinhos pra depois poder trabalhar com coisas menos TORTURANTES. Porém aviso que ainda tem umas cachorradas pela frente, mas seguimos firme um dia após o outro em busca da felicidade Deles, que espero poder abordar ainda né, vamo ver !!! É istoooo obrigada por tudooo!



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