Com amor, Lutávio escrita por Le petit prince egoiste


Capítulo 19
Nico


Notas iniciais do capítulo

Depois de um capítulo com o passado de Otávio no quartel, achei justo fazer o mesmo com Luccino.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/765435/chapter/19

“Aqui, toma isso e vá passear com o cachorro”.

Gaetano estendeu a Luccino um pequeno pedaço de pano amarrado a um círculo metálico preso no pescoço do cachorro da família, Nico. O garoto levantou da mesa de jantar, onde estava com a mãe ajudando-lhe na preparação do jantar.

“Filho meu não ajuda na cozinha. Vai dar uma volta com o bicho, que é melhor.”

Nicoletta fez apenas assentir com a cabeça, a expressão de desgosto denunciando sua real opinião. O doce e pequeno Luccino, naquele tempo com onze-doze anos, obedeceu ao pai e levou Nico até a frente da propriedade onde ficava a casa da família.

“Não demora muito, bambino. Logo anoitece, e se pegar esse sereno vai ficar doente...”

Luccino escutou a mãe e concordou sem nada dizer. Gaetano bufou querendo fazer-se de contrariado, dizendo à Mamma que “o menino parecia nem ter língua”. Assim, o jovenzinho Luccino deixou a casa para caminhar pelo pequeno quintal. Havia escutado a reclamação do pai, uma constante na rotina da família. Para Gaetano, Luccino ser quieto e frágil não eram grandes atributos para um homem. O menino não sabia como reagir além de pedir desculpas, e já pedira tantas vezes que o limite parecia ter ultrapassado há muito.

Nico não parava quieto. Luccino caminhou com ele até cansar, depois o soltou para fazer suas necessidades onde quisesse. O menino sentou-se na grama, as mãos nos joelhos, observando o movimento do animal. Até que se perdeu ao ver o irmão, Ernesto, realizando as tarefas brutas de casa, tal como cuidar dos animais ou carregar pesos. O italianinho se perguntava quando decidiriam ser sua vez, já que para Gaetano não existia idade própria para o trabalho, e mesmo Luccino se sentia na obrigação de ajudar a família nas tarefas.

Solto nos seus pensamentos, sequer percebeu a presença de Ernesto, que tentava consertar a cerca da propriedade sozinho e tinha parado para descansar. Exigência do pai, que queria que ele demonstrasse suas capacidades tão longo adquiria “corpo de adulto”, muito embora ainda fosse pequeno para ser considerado adulto. Era o segundo mais velho, logo após Virgílio.

“Perdido de novo, Luccino?”

“Estou esperando o Nico”

Ernesto sorriu lentamente.

“Estou quase uma hora tentando consertar essa cerca.” Apontou para o trabalho na cerca da propriedade, que na verdade foi cedida à família pelos patrões de Nicoletta, para que tomassem conta enquanto eles viajavam. Luccino nada queria dizer, mas o conserto não estava com muito jeito. “Pappa podia muito bem me ajudar, mas está lá com Mamma falando de você.”

“De mim?” Luccino ficou vermelho.

“Aquilo que você já sabe. Que este lugar não faz bem a nenhum de nós e que devíamos procurar refúgio com outros patrões. Talvez tenhamos que ir embora ou... Não sei...”

“Como assim?”

“Ir embora.” Ernesto calou-se, demonstrando um pensamento muito longe do que aquele que manifestava em voz alta. “Fani, por exemplo, já começa a crescer, e a menina sabe bem das coisas, diferente de mim, que sou um... bronco. Burro como uma porta.”

“Isso é o que papai diz. Eu te acho inteligente. Essa cerca aí, eu não sei nem consertar e você sabe. E tem coisas que sei e você não. É normal, não é? Mas porque precisamos ir embora?”

“Luccino. O Pappa é que parece saber das coisas, mas às vezes... Às vezes só parece saber. Faz que sabe e não sabe. E o que ele disser a Mamma aceita. Mamma se culpa porque quer dar a todos nós um bom futuro, não quer que a gente seja que nem eles, como ela diz. Eu acho que... Não sei... Não sei se nosso futuro está longe daqui. Se teremos algum futuro além desse.”

“Eu acho que temos que ajudar Mamma e Pappa, não é?” Perguntou Luccino.   

 Ernesto refletiu sobre aquilo, mas nada disse. Com um tanto de brutalidade, retornou ao serviço da cerca enquanto Luccino voltava ao encontro de Nico, o cão. Começou a chamá-lo. Conversava com o irmão e nem se dera conta de que o cachorro havia se afastado.

Andou um pouco até se afastar da casa, e lá estava Nico tentando se esgueirar num monte de mato. Porém, um elemento surpresa fez Luccino paralisar seu corpo: uma cobra estava prestes a dar sua picada fatal em Nico. Luccino começou a suar frio e, apavorado, gritou o nome de Ernesto para vir ajudá-lo. No entanto, a cobra foi mais ligeira e picou o cão, que ganiu de uma maneira assustadora. A cobra ameaçou se enrolar no corpo de Nico, mas eis que Gaetano, de dentro da casa, apareceu com um pedaço de madeira grande que a afastou. Não bastava para o chefe da família: ele alcançou a cobra e não cessou seus golpes até ter a certeza de ter a matado.

Quando percebeu, a confusão estava instaurada. Fani surgiu por trás de Luccino, tentando retirar o irmão de seu transe e nervosismo, abraçando seu corpo sacolejante de pavor, enquanto Ernesto tentava ajudar o animal ferido. O pai, após golpear a cobra, voltou-se para o filho mais novo com os olhos em cólera.

“Frouxo! Porque não matou a cobra quando teve a chance?”

“Pappa!” Luccino tremeu, a voz afinando e denunciando a vontade de chorar.

“Pappa coisa nenhuma! Para de chorar! Este menino é um fraco! A culpa é sua, Nicoletta!” Vociferou Gaetano para esposa, que veio correndo da cozinha ainda com as mãos sujas de tempero, após ouvir a gritaria e o ganido de Nico. Olhou para o cão em agonia e para a cena familiar, confusa e trêmula.

Ma Dio mio! Que tá acontecendo, Gaetano?”

“Seu filho matou nosso cachorro! E agora quem vai vigiar as terras?”

“Ele não matou, foi a cobra!” Fani defendeu Luccino, chorando.

“Ele matou porque é um fracote! Um mingherlino! Pois olhe só o que você fez!”

Gaetano apontou para Nico, estirado no chão da fazenda. O animal gania cada vez mais baixo um som de pura dor. Seu corpo tremeu até endurecer. Neste momento, a família soube que havia morrido. Luccino sentia algo vindo à tona, mas sentia o ódio e a frustração do pai em sua direção e tentava sufocar sua vontade de chorar. Gaetano, em plena fúria, voltou para casa para buscar a pá que cavaria um lugar na terra para enterrar o corpo.

O jovem Luccino tentava respirar o máximo que podia para segurar sua tristeza, enquanto Gaetano ordenava que o próprio menino cavasse o lugar para Nico, como um castigo, e já o preparando para os futuros trabalhos braçais. Ou o menino tomava jeito e ajudava na casa, ou seria deserdado! O pai trabalhou a vida toda e dava conta, porque os filhos não conseguiriam?

Segurando desajeitadamente a pá, o rapazinho sentia o olhar atento e furioso do pai vigiando seus deslizes, lamentando que tivesse tido um filho tão mimado pela mãe, tão fracote. A visão de Luccino pesou quando Fani trouxe o corpo de Nico à cova. Ele olhou mais uma vez para o pai, este aborrecido, e novamente fez força descomunal  para jogar as quantidades de terra necessárias para selar o buraco. A tarefa terminada, Gaetano bufou e voltou para a casa.

Mamma olhou com candura para Luccino, oferecendo seu colo a ele, e Fani marcou a morada de Nico com um pequeno ramo de flores. Ernesto ainda segurava a vista para o caminho que o pai fizera, querendo desafiá-lo como de costume, indignado com o tratamento que ele deu ao próprio filho mais novo.

“Ai de você se eu te pegar com os olhos vermelhos amanhã! Morreu, morreu! E pronto!” Gaetano ordenou a Luccino, que se viu obrigado a engolir novamente os próprios sentimentos.

Mas sequer dormiu à noite. Assim que conseguia descansar o corpo, após muito tentar, tinha pesadelos e escutava Nico ganindo, aquele som tenebroso de morte. Acordava gritando, suando frio. Virava para o travesseiro, colocava-o em seu rosto para sufocar os gritos, enquanto Ernesto ia acumulando indignações contra o pai.

Só levantava a voz para brigar com Virgílio, quando ele insistia em ir contra o mais novo e ficava a lhe chamar de fracote, como o patriarca da família fazia. Na noite do acidente, Luccino parou de gritar para si mesmo e viu Ernesto e Virgílio dormindo o sono pesado de quem trabalhara o dia inteiro. Apenas ele escutou os socos do pai contra a porta. Gaetano grunhia baixo contra um pedaço de madeira, sua maneira de extravasar.

Na manhã seguinte ao acidente, a sombra de rancor e medo que ameaçava a família ressoou na mesa do café, com todos comendo o que tinham em silêncio. Por mais que Nicoletta tentasse vez ou outra forçar algum assunto, sem sucesso.

“A porta quebrou, Pappa?” Ernesto perguntou, observando a porta destruída parcialmente.

“Quebrou à noite. Nicoletta é que se esqueceu de passar óleo e a madeira ficou toda mole.”

“Foi isso sim, filho, foi a Mamma.” Nicoletta concordou, sem graça, a cara enfiada no prato ralo de comida. Não concentrou coragem para encarar a pureza do filho mais novo, que estranhou a mentira e olhava para a mãe tentando compreendê-la.

Assim permaneceu a família por quase duas semanas, Luccino tendo pesadelos à noite, escutando os ganidos fantasmagóricos de Nico, sofrendo com a culpa e tendo de desabafar com a cara virada no travesseiro, sem conseguir dormir. E Nicoletta preocupada a ponto de irritar o marido com aquela aflição. Mas Luccino, frágil que era, ardia em febre vez ou outra, e a sua Mamma se dedicava a ele com remédios caseiros, manha, proteção.

“É por isso que o ragazzo está desse jeito! Criado cheio de mimos!”

Logo, a casa retornou ao costumeiro silêncio e conformismo, o pequeno Luccino se recuperando das febres constantes, enquanto religiosamente levava flores à cova de Nico. O mato cresceu no entorno ao longo do tempo, e o menino esqueceu-se do local exato da morada final do cachorro.

Esqueceu-se, pois logo a família, com mudança anunciada, iria para algum desses Vales do interior. Lá, Luccino teria de aprender algum ofício para ajudar na manutenção da casa e, segundo o pai, “ter alguma serventia”.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Inspirado na cena onde Otávio consola Luccino e o italiano fala sobre a morte do seu cachorro, na qual o pai "não derramou uma lágrima". Até o próximo capítulo, pessoal!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Com amor, Lutávio" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.