Huntress escrita por Huntress


Capítulo 2
Madrugada 18.318


Notas iniciais do capítulo

Tanta coisa aconteceu desde que eu comecei a escrever esse capítulo que eu nem sei mais se esse capítulo é tão importante assim. Mas eu passei por muita coisa para conseguir escrevê-lo, então estou feliz de ele estar finalmente aqui. Divirtam-se, quem for ler.



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Primeiro é tudo branco.

Estou fazendo força para me libertar hoje, ficando cada dia mais difícil chegar em casa sem passar pelo mundo do Sonhar. Há muito da Terra em mim e, embora tenha toda minha concentração voltada para o sucesso da projeção, as energias da matéria me prendem no corpo com mais firmeza. Os meios usuais não vão funcionar numa situação como essa.

Respiro fundo e tento novamente, agora imaginando que o branco é água e que a estrutura que sinto abaixo de meus pés é o solo arenoso que fica no fundo de qualquer lago. Empurro o chão para longe, pegando o impulso necessário para fazer a subida à superfície. Em minha mente, apenas a água.

Sinto o vazio ao meu redor dando lugar à sensação molhada de estar mergulhada de corpo inteiro abaixo de um bolsão d’água gelado. Quando todo meu corpo está envolto em água, forço mais um pouco e sinto meus pulmões ligeiramente se apertarem, fôlego quase todo tomado pelo esforço.

Mas o impulso que tinha pego anteriormente funciona perfeitamente e antes que todo o ar me escapasse, emerjo da água, aspirando com força para poder voltar a encher os pulmões. Tento me manter na superfície por um tempo, buscando respirar, mas a pressão da falta de oxigênio ainda me incapacita um pouco.

Me debato na água apenas por tempo suficiente para que a sensação ruim suma. Deixo que eu me afunde novamente, mergulhando agora por boa vontade, tentando ver o fundo do lago, com a intenção de distinguir onde havia começado a projeção. Abro os olhos ali embaixo e tudo o que consigo ver é um largo rastro dourado, cobrindo o lugar onde eu havia passado, partículas brilhantes se dissipando lentamente.

Se eu pudesse verdadeiramente enxergar, provavelmente veria a água clara e límpida; o chão abaixo de mim composto por um tipo avermelhado de areia, finíssima; ali no fundo, plantas e corais se espalham, nas mais diferentes cores e formatos, algumas dançando com o ritmo das pequenas ondulações próprias do lago. Há peixes e outras criaturas, espalhadas pelo fundo e se esfregando na areia, tomando seus banhos vermelhos; eles não se aproximam da superfície e parecem não se importar comigo.

Não vejo nada disso, mas sinto tudo ali, exatamente como eu tinha programado para ser. Eu havia criado aquele lago para ser exatamente daquele jeito; brilhando em cores que eu nunca poderei ver. Eu havia criado aquele lago e, embora não o visse, poderia sentir qualquer partícula de energia nova que entrasse ali, tudo ao meu controle.

Sinto a pressão da falta de ar voltando aos poucos e, antes que perca totalmente do fôlego, me distancio da minha nuvem de pensamentos e volto à superfície. Ali, ajeito meus cabelos rapidamente e nado até a margem, indo sem muita pressa. Não demora muito até que eu chegue à pequena praia avermelhada da margem.

Saio da água nua e, com naturalidade, passo a mão por meu corpo para tirar o excesso da água dele, também torcendo os cabelos para ter o mesmo efeito. Abro um sorriso, satisfeita, e caminho pela paisagem, atravessando-a para chegar na parede de pedras cinza-escuro, cobertas pelas incansáveis trepadeiras que cresciam ali, mais a frente.

Durante o caminho, a areia dá lugar a uma grama macia e eu sei que existem diversas rochas, de vários tamanhos, espalhadas por ali, embaixo de árvores que sempre deram uma sombra espetacular. Não dou atenção a nada disso, pois meu propósito agora é só voltar para meu quarto; não pretendo ficar aqui.

Vou em direção a uma abertura na parede que, de tão escondida, apenas eu conhecia. Se olhassem a extensão do “muro” e prestassem bastante atenção para a forma que as plantas se distribuíam, poderiam ver que em um lugar específico as trepadeiras cresciam para baixo, enquanto a maioria subia pelas pedras, ramagens se enroscando umas nas outras. Para mim, parecia óbvio, mas talvez nenhum dos meus íntimos convidados tenha reparado nisso.

Atravesso a abertura, saindo imediatamente atrás de um armário branco em meu quarto. Atrás dele, existem alguns pequenos ganchos, onde um de meus roupões cor de rosa está ajeitado. Eu sei que esse possui pequenas rosas bordadas por todo ele, podendo senti-las perfeitamente em vários lugares caso passasse a mão pelo tecido macio. Tateio rapidamente para achá-lo e, quando o faço, pego-o e logo o visto, sem me preocupar com roupas íntimas. Amarro-o a frente com um nó. Suas mangas vão até metade de meus braços e é tão longo que esconde meus pés descalços.

Saio detrás do armário pela direita, acompanhando a parede com meus dedos. Mais a frente, um berço para bebês. Ao lado dele, outro. O primeiro é de madeira branca, com um pequeno mosquiteiro cobrindo-o por cima; flores e ramagens são bordadas no tecido branco que cobre o colchão e alguns brinquedos de pelúcia estão ajeitados nos cantos do berço. O segundo possui a mesma estrutura, mas é inteiramente de pedra, reforçado no chão.

Desde que Sonala começou a dormir em sua própria cama e não mais em um berço, aquele de pedra não tinha mais utilidade. Diane, aquela pequenina garotinha, um bebê de tamanho ínfimo, tinha um bercinho próprio para ela no quarto da irmã. Sol não se permitiria ficar muito tempo longe de seu “amô” e Diane, mesmo sendo um raiozinho pequeno de criança, também não ficaria muito feliz numa situação dessas.

No berço de madeira, dois bebês dormem tranquilos. O mais velho, com uma aparência de mais ou menos uns três anos de idade, está abraçado com a mais nova, sensível com seu tamanho de bebê de nove meses. Regulus não soltaria Flora caso não fosse estritamente obrigado; sentia que era sua obrigação cuidar dela e, mesmo que a pequena apenas soltasse pequenas gargalhadas ou sons ininteligíveis, era quem a entendia melhor em suas necessidades.

Como duas crianças tão pequeninas poderiam ter uma conexão tão forte, eu não sei ainda. Mas nessa altura do campeonato, tendo visto a mais completa diversidade dentro de casa, eu já parei de perguntar sobre o que é ou não possível. Eu só os deixo serem como são. Nenhum deles parece insatisfeito com isso.

Me aproximo dos pequenos com passos leves, tentando não acordá-los. Passo os dois braços por cima da grade do berço e encosto suavemente no braço de Reg, fazendo-lhe um carinho na mãozinha que cobre a irmã. Ele se move muito pouco, mas tenho certeza de que seu rostinho se contrai em resposta ao toque.

O pouquinho que ele se mexe não é o suficiente para tirar a Florinha de seus braços, então cuidadosamente levanto sua mão. Mantenho-a levantada até conseguir ter meu outro antebraço abaixo de suas costas, puxando-a muito devagar para longe do irmão. Nesse ponto ela se move um pouco, fazendo um pouco de força para não acordar. Deito-a novamente, tirando o braço debaixo dela igualmente devagar, soltando a mãozinha de Regulus com delicadeza.

A última coisa que precisamos agora é um Reg nervoso por i) acordar; ii) sem a Florinha sobre sua estrita proteção. Então tudo tem de ser calculado.

Ao voltar-me para a garotinha novamente, ela já tinha parado de lutar contra o instinto de acordar. Tem os olhos gigantescos virados para mim, rostinho brilhando em um sorriso. Sinto meu coração derreter ao olhá-la. Nunca existiu um bebê tão tranquilo quanto Flora, aura dourada e brilhante tirando de mim quaisquer preocupações que eu pudesse ter em algum momento. Não posso evitar o instinto de sorrir em resposta.

— Shhhhh… — faço, baixinho, antes de pegá-la pelos braços, alçando-a para fora do berço e para o meu colo. Ela é bastante leve, mas se movimenta muito, contente em me ver, pulando em meu colo. Parece compreender que Regulus está dormindo e também não parece estar muito interessada em acordá-lo, pois abafa os seus sons alegres com a mão pequenininha na boca.

São poucas as chances que eu tenho de realmente cuidar das crianças.

As mais velhas parecem ter criado uma própria logística para cuidar e ajudar as mais novas. Com Maureen no controle sobre o Instituto e responsável pela educação de praticamente todas as crianças mágicas do Reino, nenhum Huntress ficaria sem aprender ao menos o básico. Os treinos físicos são feitos em casa, visto que aqui pelo menos eles têm como remediar possíveis acidentes de percurso. Os irmãos que ainda precisam ser amamentados, como era o caso atual para Flora e Diane, seriam amamentados pelas irmãs mais velhas que pudessem auxiliar. Aqueles que precisavam ser alimentados, eram alimentados a partir de um trabalho coletivo.

E, daquela forma sutilmente caótica característica deles, eles pareciam se organizar bem sem mim. Embora eventualmente houvesse um problema ou outro entre as fortes personalidades de cada um de meus filhos, no geral eles haviam aprendido a viver só.

São em momentos assim — quando atravesso as diversas paredes entre a realidade material e o Sonhar para conseguir chegar em casa, e finalmente tenho algum deles sob os meus cuidados — que percebo que, mesmo que os admire muito pela força que têm por se manterem bem, eu não queria que eles precisassem fazer isso.

Eu não queria que eles precisassem ficar só, porque tudo o que eu quero é estar aqui por eles. Porém, estando presa no corpo físico, dependendo do sono para contato real, isso se torna um pouco difícil.

Atravesso o quarto com Flora no colo, balançando-a gentilmente enquanto ando apenas para lhe manter quietinha. Caminho até uma poltrona grande no canto direito do quarto, mais próxima da porta do que da cama. A cor dela aqui não me faz muita diferença, já que eu não a vejo, mas posso jurar para vocês que ela é magenta.

Sento-me nela e tento arranjar uma forma confortável ali antes de deitar a menina em meus braços e dar-lhe o seio da direita para mamar. Acomodo-a de forma que ela fique confortável e não demora muito para que seu rostinho se vire para meu peito, sugando meu mamilo numa intensidade que há muito tempo me parece apenas natural.

O cabelinho de Flora é liso e eu sei que sua pele é de um marrom clarinho, com um tom mais avermelhado. Passo a mão por seu rostinho, sentindo suas bochechas redondinhas e a maciez de sua pele. Faço um carinho no topo de sua cabeça enquanto ela mama, mãozinha batendo levemente em meu peito algumas vezes, apenas por agitação. Sentir seu cabelo sob meus dedos é muito gratificante.

Ela é um pequeno raio de luz amarela, tão intensa e brilhante. Preciosíssima, tento tocá-la apenas levemente, evitando qualquer maneira que pudesse machucá-la. Ela parece gostar de retribuir o carinho, afinal, de todas as crianças que já amamentei, ela é a que suga mais levemente. Não consigo não derreter de amores nesse momento.

Ela me é tão preciosa, que merece toda a felicidade do mundo.

Passo a mão por sua pele marrom-avermelhada, sabendo que, se ela tivesse nascido na Terra em que hoje vivo quando acordada, ela seria tratada diferentemente por sua cor e por sua aparência. Disso, a minha pequenina está segura. Tento espantar a tristeza de minha observação me lembrando de que pelo menos Flora não precisaria passar por isso, pois não cresceria na Terra.

Ela mesma se afasta de meu seio quando se dá por satisfeita. Ajeito meu roupão para cobri-lo e levanto-a com cuidado, colocando-a verticalmente no meu colo. Sacudo-a um pouco, batendo de leve em suas costas para que ela arrote, enquanto a levo de volta para o berço com o irmãozinho.

Regulus está deitado de barriga para baixo, todo esticado no pequeno colchão. Parece sentir falta de algo e eu sei que este algo é a companhia da bebê Flora. Sei que a pequenina também queria estar deitadinha ali, do lado do irmão mais velho. Sendo assim, não demoro muito em voltá-la ao berço depois que escuto seu arrotinho (fofo).

Ponho-a no lugar e logo vejo Reg abraçando a bebêzinha, reconhecendo quase instantaneamente a presença da pequena ao seu lado. Ela solta uma risadinha satisfeita e baixinha, sendo toda delicada como era. Observo-a enquanto ela fecha os olhinhos e cai no sono. Não estranharia se pudesse encontrar um sorrisinho no rosto dos dois.

Parecem tão contentes com a vida que eu só sei derreter em resposta, sentindo a fofura fervilhar meu sangue daquela forma gostosa de sempre. Um sorriso brota em meu rosto, de orelha a orelha. Que bom que eles não nasceram na Terra.

Ainda sorrindo, ajeito meu roupão o melhor que posso antes de sair do quarto.

Caminho pelo corredor rapidamente e subo as escadas de dois em dois degraus, sabendo exatamente onde pisar o tempo todo, linhas douradas me mostrando o caminho até a cozinha.

O caminho não é tão longo assim, mas quando chego, estou um tanto ofegante da caminhada – as escadas sempre me ferram no físico, então não me parece tão estranho eu estar ferrada com as minhas próprias escadas.

Pensando que talvez eu devesse parar de fumar, para melhor caminhar, atravesso o portal da cozinha, entrando no largo espaço e ouvindo as vozes tão conhecidas de Merlin e Katerina. As vozes e as risadas, tão características de quando elas estavam juntas.

— Ah, oi, mãe! — diz Katerina quase que no mesmo momento em que entro, como se a minha presença a atraísse instantaneamente. — Que bom que conseguiu vir hoje! Quer sentar com a gente? — ela convida, da mesa.

Com ela estavam sentados Merlin, à sua frente, Nyayn, na cadeirinha para bebês ao seu lado direito, e Hanah, em uma outra cadeirinha ao lado esquerdo de sua esposa. Elas alimentavam os gêmeos enquanto conversavam. Na frente de Merlin, também havia alguns pratos de comida, um deles com seis hambúrgueres recheadíssimos.

Katerina é a artista da família. Canta, dança e às vezes desenha. É musicista e compositora e os seus instrumentos favoritos são piano, violino, guitarra e bateria; toca de todos os ritmos e tem a eternidade para estudar música, então o faz. É bastante expressiva, um tanto rancorosa e gosta de estar rodeada por pessoas sempre — por pessoas que olhem para ela, principalmente. Adora palcos e shows e já teve épocas de dar shows lotados simplesmente nua, em protesto a sabe-se-lá-o-quê.

Seu poder é a musimagia e com a música ela consegue animar ou destruir as massas. Seu pecado é a Luxúria. É uma ótima pessoa para se ter como amiga e uma ótima inimiga, no quesito de saber muito bem como odiar ou desprezar alguém. Em uma guerra, é preferível tê-la ao seu lado, já que seu poder de persuasão é excepcionalmente bom. É uma boa atriz, então também daria uma boa espiã. Não sei porque no final das contas ela escolheu ser minha Segunda Guardiã.

Talvez por ser minha melhor amiga — bem acima do limite em que uma mãe comum tem a própria filha como melhor amiga.

— Oi, oi! — digo, indo em direção a elas e me sentando na ponta da mesa, não muito afastada das meninas e de seus bebês.

— Oi, mamãe. — responde Merlin enquanto enfia delicadamente a colher na boca de Nyayn, alimentando-o com uma banana amassada. Sua própria boca estava cheia enquanto ela mastigava o pedaço do hamburger que acabara de morder. — Bom dia! — ela parece animada e feliz enquanto dá de comer para o pequeno.

Merlin é a cientista da família, talvez a alquimista. Enquanto Katerina é barda, Merlin é maga, excepcionalmente talentosa no que faz, sempre tendo uma poção ou um encantamento para tudo. É uma pesquisadora de primeira, indo das ciências exatas para as ciências sociais com facilidade, andando pelas áreas de conhecimento como se todas pertencessem à ela e apenas à ela. Seu pecado é a Gula. É intersexo, criada e tratada como uma mulher e assim se identificando.

Juntas elas formam um casal incrível. Merlin, com sua pele negra e seu grande cabelo crespo; Katerina, com sua tez branquinha e suas madeixas loiras. Merlin, com seus olhos escuros como a noite; Katerina, com seus orbes azuis como o céu ensolarado. Katerina a emotiva, Merlin a racional. Tão contrastantes em tantas características básicas, mas tão perfeitas uma para a outra.

— Como você veio, dessa vez? — pergunta Kat, curiosa.

— Pelo lago. Eu vim nadando. — faço a constatação. — Mas deu tudo certo. Estou feliz de estar aqui.

— Eu estou feliz que você esteja aqui. — ela diz, sorriso de orelha a orelha. — Ainda é cedo. Nossos nenéns têm fominha. — vira-se para Hanah, fazendo caretas para a garota, que respondia em uma explosão de alegria, adorando cada uma delas. — E os seus ainda estão nanando.

— Eu vi o Reg, e a Florinha eu já amamentei. Sei que estão todos em boas mãos.

— Estão nas melhores mãos. Nas mãoszinhas feitas pela senhora!

— Senhora não! Eu sou novinha demais para ser senhora. Vinte e sete trilhões de anos é pouquíssima coisa.

— Novinha demais só na carinha, porque você é velha, mãe. Admite que você é velha, vai. Você tem trilhões de anos! Isso é coisa demais!

— Em comparação a você eu sou velha. Em comparação à Yahweh, eu sou um bebê lindinho pequenininhozinho. — enfatizo, lembrando de ouvi-la me chamando por pequenina por tantas vezes, naquele carinho que só a Deusa saberia dar.

— Você é velha, mamãe. — diz a Merlin, novamente com a boca cheia. — E isso não é um insulto. É um fato. — aponta o hamburger mordido para mim, com uma colher repleta de papinha de neném na outra mão, no meio do ar.

— Eu não vim aqui para ser insultada! — digo, brincando e gesticulando com uma falsa ofensa. Um sorriso gentil repousa em meu rosto depois. Katerina ri. Merlin não chega a tanto, mas também esboça um sorriso contente.

— Okay. Eu admito que sou velha. Trilhões de anos é muita coisa. — digo, por fim, me pondo pensativa sobre a situação.

— Não para deuses. — solta Merlin, agora concentrada em alimentar o bebê, que, brincando na cadeirinha, não parecia mais tão interessado em comida.

— É. Pena que eu sou só uma humana.

— Não vamos entrar nessa discussão de novo, mamãe.

— Não vamos, mesmo. — digo, me levantando e andando ao redor da mesa apenas para dar um beijo na testa de cada uma e acariciar a cabecinha dos pequenos. — Não tenho tempo para esse tipo de discussão. Meu tempo é escasso. Não sou seu pai.

— É verdade. — diz Katerina. — O seu tempo é escasso. O que ainda está fazendo aqui? — não posso evitar a gargalhada que se forma na minha garganta ao ouvi-la falar assim.

— Eu vou ver como os outros estão. — anuncio, finalmente indo até a saída das cozinhas. — Se cuidem, gatinhas. — me despeço, tranquila, continuando minha caminhada.

O castelo parece querer me guiar até o pátio de treinamentos, pois reconheço o caminho que estou traçando. Uma luz dourada brilha pelos corredores e meus olhos cegos só conseguem enxergá-la. Não teria como distinguir meus passos caso cada um deles não deixasse uma marca multicolorida ao passar.

Caminho com calmaria, lembrando ao mesmo tempo da minha fraca conexão com este mundo e de quão feliz eu ficava quando nele. Tento não pensar em como as coisas seriam diferentes caso todos eles estivessem comigo na Terra, mas meus pensamentos já estão lá antes mesmo que eu possa controlá-los.

O terceiro planeta do reino do Inferno não aguentaria a presença de um casal lésbico interracial e intersexo. Não aceitaria o amor de minhas filhas e não as aceitaria como pessoas, em si, visto que Katerina é bissexual e Merlin é negra, intersexo e lésbica. Os humanos, que um dia eu jurei serem como eu, não as veriam com bons olhos e não dariam espaço para que suas principais características florescessem. Provavelmente, as expulsariam de rodas e de vivências apenas por serem como são.

Tento espantar a infelicidade me lembrando que pelo menos aqui elas estão seguras, mas a sensação permanece comigo mesmo assim.

Posso ouvir o barulho de metais se chocando e já sei que estou mais próxima do que antes do pátio. A luz dourada brilha mais forte logo ali na frente e eu me apresso um pouco para poder verificar quem está lutando a essa hora da manhã.

O tempo corre diferente aqui, seguindo uma jornada diferente da que segue na Terra. Sei que o sol está no alto, porque ouço a voz adulta de Escanor, gritando para Meliodas palavras de chacota e orgulho, desafiando o treinador a vir em sua direção com mais força. Abro um sorriso contente. Não demora muito para que eu esteja vendo os contornos multicoloridos que distinguem minhas crianças umas das outras.

Do umbral que leva ao pátio, consigo vê-los. Escanor e Meliodas estão treinando, ambos com suas armas sagradas; na plateia, um pouco distantes, Nicoletta e Eclipsis observavam a tudo. Sei exatamente como cada um deve parecer, mais pelas descrições dos outros que pelas minhas próprias.

Escanor é um forte brilho alaranjado, como o fogo ou o sol. Esse brilho fica ainda mais forte com o passar das manhãs e vai se perdendo quando chega a noite. O tamanho também se modifica e isso é devido ao seu próprio movimento de crescer e decrescer durante o dia, de acordo com o movimento do Sol. Sei que ele tem a pele em um marrom clarinho, com cabelos lisos e loiros e um bigodinho igualmente loiro. Está grande nesse momento, talvez um metro e oitenta e cinco, e se movimenta com a força que tem consigo. Rhitta, seu machado, está empunhada em sua mão direita e ele não parece me perceber, porque não para em momento nenhum de atacar Meliodas.

Este último não parece se importar nem um pouco com os movimentos do irmão mais novo, se esquivando dos ataques verticais e rebatendo, com sua espada quebrada, os ataques horizontais. Faz tudo com uma precisão esplêndida, numa velocidade de movimentos que é às vezes difícil de acompanhar.

Alguém que os observasse lutar de longe, sem conhecer as habilidades incríveis de ambos os guerreiros, poderia falar que Meliodas estava em clara desvantagem ali. Por ser bastante pequeno (baixinho, igual ao pai), parecia que não seria hábil o suficiente para enfrentar o sempre crescente Escanor. Mas a sua figura, contornada por um tom meio lilás, parece dançar na luta, como se aquilo fosse mera diversão. Não demonstra cansaço e tem total controle sobre seus movimentos, parecendo prever os movimentos do irmão com igual facilidade.

A cada bom ataque de Escanor, um gritinho de felicidade de Nicoletta soava pelo pátio, comemorando e inflando ainda mais o ego inchado do irmão. Eclipsis, sua namorada e sobrinha, parecia desconcertada com cada um deles, irritada com alguma coisa que nem eu, nem a própria Nico saberíamos dizer o quê.

Fecho os olhos por reflexo, pois os choques das armas sagradas me aparecem como uma explosão de cores. Por mais bonito que seja, por muito tempo pode ser informação demais para a minha pequena cabecinha. As pálpebras fechadas não mudam nada, pois a visão enérgica não se apaga em momento algum, mas ajuda um pouco.

Abro um novo sorriso. Enquanto eles estiverem treinando entre si, está tudo bem. Eles provavelmente estão felizes e sem problemas; caso tivessem problemas, provavelmente já teriam parado para me olhar naquele umbral. Estão entretidos demais para ao menos perceberem minha presença e não quero atrapalhá-los. Apenas admirá-los por um tempo já me foi o suficiente.

Deixo-os sozinhos, fazendo o que fazem de melhor, naquele jeitinho estranho e típico deles. Provavelmente perceberão que estive ali, pois o meu rastro deixa cheiro e luz pelo caminho; se eu olhasse para trás, poderia ver meu próprio passado caminhar.

Penso em caminhar até os jardins para pensar sobre um punhado de coisas, mas escolho voltar ao meu quarto, sabendo que não descansaria de verdade se não dormisse nos dois planos. Em minha mente, apenas a imagem das crianças brincando com os seus diferentes poderes. Poderes estes que não significariam nada na Terra, pois não existiriam. E cada uma daquelas belas peculiaridades de cada um dos meus filhos estaria perdida na imensidão de normalidade que a Terra tem.

Calculo mentalmente o esforço necessário de ir aos jardins, apenas para ter certeza de que não queria ir até lá agora. Com o espírito cheio de felicidade ao ver meus pequenos, prefiro realmente voltar ao quarto, sabendo que tempo sozinha significa tempo martelando pensamentos infames que apenas tirariam a paz que havia acabado de reconstruir.

Não conseguiria ver todos os meus filhos nem se andasse por todo o castelo a procura de cada um, mas penso em seus sorrisos e nos contornos coloridos que veem a dançar nos meus olhos quando eles se aproximam e sorrio tranquila.

Continuo a caminhada apenas pensando neles. Cada um deles. Katerina, Maureen, Meliodas, Georgine, Escanor, Merlin, Arthuria, Alec, Rose, Andy, Nicoletta, Annie, Regulus, Flora, Sonala e Diane. Muitos para uma humana, poucos para uma deusa; uma quantidade razoável para alguém que está na metade do caminho entre os dois. Cada um com suas características únicas. Cada um com suas lindas singularidades.

Chegando ao quarto, com a mente preenchida por eles, nem percebo que estou dormindo sozinha mais uma vez. Dessa vez, nem percebo a ausência de Luci.

Tranco a porta, sentindo um sentimento horrível se apossando de mim. Pego o caderno mais próximo a mim e, ao me posicionar na cama, me ponho a escrever, enxergando cada uma de minhas palavras como se eu pudesse verdadeiramente enxergá-las. No papel, apenas as observações que havia feito antes.

“Nenhum de meus filhos seria feliz na Terra.”

Esquematizo um texto ao redor disso, anotando cada uma das características que cada um deles teria de esconder ou trabalhar para ser perfeitamente aceito no terceiro planeta infernal. Largo o caderno apenas depois de criticar cada parte do planeta em que vivo quando acordada, pelo seu racismo, sexismo, homofobia e xenofobia. Só depois de criticar cada parte desigual desse planeta em que hoje vivo.

Suspiro pesadamente ao fechar o caderno e abro uma gaveta ao lado da cama apenas para pegar um baseado já enrolado. Depois de um dia difícil e pensamentos sufocantes, eu não poderia me negar algo assim.

Acendo o cigarro de maconha com calmaria e, enquanto fumo, observo o bercinho no canto do quarto. Se eu tivesse conhecimento sobre a realidade da Terra no início, talvez não tivesse escolhido partir para essa viagem louca e sem volta para o planeta azul. Talvez não tivesse escolhido encarnar. Em minha mente, cada um dos bebês que passou por este bercinho e cada um dos bebês que passará por cada bercinho no meu novo mundo.

Suspiro novamente, percebendo que não há nada que eu possa fazer, sozinha, para mudar a realidade que me foi dada. Como eu poderia ser feliz em um mundo que obviamente faria triste todas as pessoas que amo? Como eu poderia ser feliz em um mundo que obviamente me faz triste?

Eu tenho de ser. Eu tenho de ser feliz.

Apago o baseado com um pouco de raiva e muita tristeza, frustrada com minha própria imaginação e com as minhas escolhas passadas. Deito na cama com um pulo e me cubro com o cobertor mais próximo. Abraço um travesseiro forte, só agora percebendo minha solidão.

Tento não pensar muito nisso, tentando apagar com o cheiro floral de roupa de cama bem lavada. Tento não pensar muito nisso, mas sei que o cheiro de Lucinda seria mil vezes melhor.


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Notas finais do capítulo

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