Relatos do Cotidiano - Parte 2: Referências escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 12
Não seremos porquês!




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As férias foram incríveis, me senti renovada com o tempo que usei para fazer vários nadas. Mas não só de nada que se vive um adolescente com preguiça, vi umas séries, acho que umas dez ou mais, também li uns livros, certeza um, talvez dois, não me recordo muito bem. Entre essas nossas atividades, uma festa ou outra apareceu para irmos, ou um passeio no shopping, cinema e até um parque de diversões que brotou da noite para o dia. Contudo, tudo o que é bom dura pouco. Hoje, as aulas retornavam.

—Deise, aqui! – Antes de entrar pelo portão, já ouvia Carla me chamando do outro lado do enorme pátio. Junto dela estavam Carlos e Soraia, Milena e José Antônio. – Garota, venho te ligando desde sexta, por que não me atendeu?

—Meu celular quebrou e foi para a assistência. Minha mãe vai pegá-lo hoje.

—Será que o aluno novo virá?

—Verdade, teremos gente nova na sala de aula.

—Eu que agradeço. – Carla estava lixando as unhas. – Não sei o que é cara nova em nossa sala há uns dois anos.

—Dai-me paciência. – Resmunguei para que não me escutasse. – Querida, esse ano tivemos seis pessoas novas em nossa sala.

—O que? Mas eu nunca os vi?

—Ela está zoando, não está? – A cara de espanto de Carla respondia a questão. – O mundo estaria perdido se ela fosse heroína.

—Olha quem fala, Zezinho. – Soraia cutucou Zé Antônio. – E deixar meu irmão abandonado é muito sinal de heroísmo.

—Nossa, podia começar o segundo semestre sem essa. – Nisso, olhamos para a entrada, onde a diretora estava junta de um casal com o filho perto deles. – Acho que ele deve ser o aluno novo.

—E como sabe que ele virá para nossa sala?

—Escutei da diretora que apenas há um aluno novo, e é em nossa turma.

O garoto era um pouco gordinho, mas as roupas não marcavam nada. Ele tinha olhos castanhos e uma pele queimada de sol, o cabelo estava recentemente cortado, as laterais na máquina e em cima na tesoura. Sei disso por causa do comprimento. Ele não sorria em momento nenhum, nem quando um dos inspetores conversava com ele e fazia boas piadas, que todos sabiam que ele conseguia fazer.

—Ele é bem estranho, não é? – Carla parou de fazer as unhas e encarou o novato.

 


—Amiga, sossega a língua. Eu soube que ele sofria bullying na outra escola.

—Nossa... – Ela se calou, mas as mãos continuavam firmes na lixa. – Qual será o motivo?

—Mas é uma curiosa sem fim. – Soraia tirou a lixa da mão dela. – Eu te devolvo se prometer que não vai correr até ele e me fazer essa pergunta. – Carla ficou com medo da cara que a amiga fez.

—Prometo...

—Acho bom! – E devolveu a lixa, que continuou a trabalhar nas unhas da garota em seguida. – A diretora está vindo.

—Gente, tudo bem? – Ela nos cumprimentou. – Esse é o João Pedro e ele vai ficar na turma de vocês. – Em seguida, ela fez uma cara de pedido: "Sejam gentis. É uma ordem!". – Esses são Carlos, José Antônio, Carla, Deise, Soraia e Milena.

—Oi gente. – Ele tinha a voz levemente grave. – É... Onde fica a sala de aula?

—Eu te mostro. – Zé Antônio se levantou e eu os segui, pois iria guardar a minha bolsa. No meio do caminho, tentamos puxar assunto, mas ele não respondia com palavras, apenas rangidos de dente ou gemidos e onomatopeias. – Bom, essa é a nossa sala. Apesar de ser pequena, acho que deve ter uma carteira perto das nossas. – E apontou onde nós sentávamos. Ele escolheu uma ao lado da minha e atrás da Milena.

—São só vocês na sala de aula?

—Infelizmente não. Tem uns tontos que chamamos de colega de turma por respeito, mas nem ligue para eles.

—Deise! – Encontrei o olhar de Antônio, somente então minha ficha caiu e notei que falei demais.

—Mas eles são calmos, se der um biscoitinho para eles até falam o próprio nome. – Ele esboçou um sorriso, o que era um lucro para todo mundo. – Quer voltar ao pátio? Ou prefere já ficar aqui?

—Vocês que sabem. Ainda estou me adaptando. – Ele foi mais a frente, pois o celular tocara e foi conversando.

—Os professores de segunda querem morrer.

—Ué? Por quê?

—Você notou que tudo acontece às segundas, desde os incidentes com as fofocas, o hacker em meu celular e até a chegada do aluno novo.

—Você sabe né? A segunda é um dia meio difícil. Quem sabe se não é um sinal para melhorar o dia?

 


Ainda no pátio, tentávamos conversar com João Pedro, mas ele ficava quieto. Tentei, um milhão de vezes, fazê-lo rir, mas todas foram um fracasso completo. Ele encarava os alunos que passavam por nós, já que estávamos quase em frente da escada, com certo olhar medroso e apreensivo. Finalmente, o sinal soou loucamente e ele, junto de Carlos, Carla, Soraia e Milena, subiu às escadas com pressa. Fiquei para trás com Zé Antônio, que me segurou.

—Deise, você está sentindo o mesmo que eu?

—Como você sabe que estou com fome? – Ele me encarou com raiva. – Não é zoeira, só tomei um copo de leite agora pouco. Meu estômago está roncando loucamente. Mas eu sei o que está dizendo, também notei o olhar dele.

—Será que ele está temendo algum bully?

—Seria mais fácil para nós se soubéssemos o que ele passou. Claro, perguntar para ele é loucura, digno de Carla, e não somos assim. Será que a diretora fala conosco?

—Duvido muito. Ela é bem ética nesse caso.

—Então, teremos que investigar?

—E você acha que é quem? Quer um cachimbo para combinar?

—Sim, e você será meu parceiro. – Seguindo os gritos da diretora, subimos voando para a sala de aula, onde o professor já estava e escrevia na lousa.

—Onde estavam?

—Perdemos a hora em nossa conversa. – João Pedro nos encarava com muito receio e eu acredito que ele desconfiava que a nossa conversa era sobre ele. Será que é isso é dele? Ou foi uma consequência do que passou?

 


Na hora do intervalo, eu e o Zé ficamos na sala de aula, só pedimos para Carlos nos comprar lanche na cantina e trazer para a gente. Em nossos celulares e eu em meu tablet – Sim, eu trago tablet para a escola. Ninguém sabe, e nem precisa – ficamos mexendo em nossas redes sociais em busca de informações do garoto. Sem notarmos, a diretora apareceu e nos pegou.

—O que estão fazendo?

—Pesquisa para a próxima aula.

—E que tipo de pesquisa vocês precisam no primeiro dia de aula? – Ela estendeu as mãos e pediu meu tablet. Ao ver o que pesquisava, ficou com cara assustada. – Por que estão pesquisando sobre ele?

—Queremos saber o que aconteceu e evitar que ocorra novamente. A senhora deve saber que essa sala tem aquele grupo do canto que é o cão na Terra.

—Tem hora que eu acho que eles foram a cobra que enganou a Eva.

—Parem de difamar os colegas de vocês, eu sei muito bem da índole deles, mas não acho que João Pedro será motivo de bullying em minha escola.

—Por que tem tanta certeza? Comprou um kit de "Evite bullying e outras ações ridículas para quem é desocupado"?

—Deise, sossega essa língua. Quer levar uma advertência em seu primeiro dia de aula?

—Os dois estão encrencados. – Ao tomar nossos celulares também, pediu que a seguíssemos até uma sala de aula que não era usada. – Isso ficará comigo até o final do período. Agora, sobre o garoto, não acho que precisam saber o que aconteceu para evitar o bullying, só precisa fazer com que se sinta em casa.

—E se eu disser que já descobri o que aconteceu? – A diretora arregalou os dois olhos estilo ovo frito e mexeu a boca em uma pergunta tipo "Como?". – Bom, usar um tablet e dois celulares para pesquisa é um lucro. Enquanto Zé descobriu as redes sociais dele, me falou a escola e a pesquisei na internet. Claro, o fato não foi noticiado em lugar nenhum, felizmente. Creio que ele detesta atenção. Mas encontrei que um dos professores da escola tem o mesmo sobrenome que o dele. É alguma coincidência ou são parentes?

—São pai e filho. – Zé me respondeu. – Há uma foto dele com a mãe, pai e irmã. A legenda entregou um pouco também.

—Dedução, ele sofria bullying por ser filho de professor? A sua resposta confirmará a teoria. – A diretora não respondia. Porém, as ações de seu corpo a entregavam. – Acho que isso é um sim. Mas quem em sã consciência faz bullying com alguém por ser filho de professor?

—Muitos da minha turma acreditavam que eu era privilegiado. – A voz de João Pedro atrás da gente nos assustou e me fez cair sobre os braços de Zé Antônio, que trombou com várias carteiras. A nuvem de poeira espantou o aluno novo. – Desculpe, eu tenho alergia, rinite e sinusite.

—Voltem à sala de aula. Agora! – O grito da diretora ecoou pela sala vazia e nos jogou para fora do lugar. Rapidamente, chegamos próximo do novato, que estava com o nariz vermelho.

—João, nos desculpe, não era a nossa intenção que você descobrisse que descobrimos sobre o que não deveria ser descoberto.

—É uma lástima essas suas tentativas de piada. – Afastei Zé do João e segurei as mãos dele. – Eu fui quem pedi para Antônio me ajudar, ele não teve nada com isso, fora o celular tomado, mas a culpa é minha.

—Eu te perdoaria... – aquilo me socou no estômago – se eu tivesse me sentindo prejudicado.

—Não entendemos.

—Eu fiquei assustado com o que descobriram somente analisando minhas redes sociais, e olha que eu posto pouco sobre mim. – Ele se soltou das minhas mãos. – Achei legal que tentaram descobrir o que fizeram comigo para que saibam como agir caso façam novamente comigo.

—E pode ficar calmo. Esse segredo é nosso, e somente de nós três. – Ele sorriu e foi um sorriso tão bonito, tão calmo, tão seguro. – E pode ter certeza, os únicos porquês que daremos a você é para a sua felicidade ser do tamanho que jamais foi.

—Você vai gostar de ter a Deise como amiga. – Zé disse para ele. Eu não entendi o motivo, mas era um motivo bom, acredito eu. – Você verá daqui a pouco.

—Mas nem deu tempo e a viúva negra da Deise já fisgou o novato! – Eram os alunos da turma deles que retornavam no intervalo.

—Espere um momento, fofuchos. – Eu me aproximei deles, o que resultou em uma debandada para dentro da sala. – Esperem um pouco, venham experimentar o meu veneno!

José Antônio e João Pedro riam de como eu corria atrás dos garotos. Carlos, Milena, Soraia e Carla apareceram e ficaram com cara de quem não entendia nada. Sim, eu era um porquê, mas um que traz felicidade para aqueles que são tristes, aquele que luta por aqueles que são fracos e injustiçados, sou aquele motivo que guia o mundo para um caminho melhor. E sejamos todos assim, os porquês que a vida precisa ter.


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