Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 36
Valhalla


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo paralelo, com os outros protagonistas.



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O vórtice dimensional girava em silêncio atrás de nós, e todo mundo pareceu ter perdido as palavras em algum lugar. Estávamos tristes por aquela despedida definitiva, e havia algo mais. Luca estava sereno e metódico como sempre, mas todos os outros evitavam olhar nos olhos de alguém.

Fred pegava na minha mão e enxugou uma lágrima ou duas, parecendo de luto por alguém amado. Aquele laboratório era a vida dele, ainda hoje ele parece esquecer às vezes que não pode voltar tão cedo.

Cássio parecia culpado de alguma coisa, e eu meio que esperava que ele empurrasse Mauro na magia a qualquer momento. Depois do fim do mundo, ele parecia perdido ao lidar com qualquer coisa que não fosse a raiva. Como num espelho, segurava a mão do... amigo? Cara metade? Nem sei se existe uma palavra que defina aquela relação dos dois.

Mauro olhava pra dimensão atrás de nós como se imaginando a vida que poderia ter quando ou se um dia desse aquele passo. Parecia ponderar sobre qual escolha o faria perder mais. Eu lembrava de Ramona chorando no meu ombro, depois do meu... casamento (ainda não parece real às vezes).

Apesar dos protestos de Cássio, ela parecia saber que Mau nunca voltaria pra ela. Alguma coisa aconteceu entre a chegada dela e Bóris ao laboratório e o fim da cerimônia, e Ramona foi embora com uma tristeza suave, como se tivesse assistido o fim de uma história muito querida. Mas nunca me contou o que exatamente aconteceu, e olha que eu insisti.

Talvez a solidão, ou o fato de sermos as únicas garotas (ou mesmo maquinação do Luca; aposto que ele arranjou tudo pra que isso acontecesse) em suas casas, ela se tornou minha amiga. Parecia fascinada com a nossa rotina, ou como usávamos tão pouca magia pra sobreviver.

As conversas eram longas, ainda mais quando Bóris aparecia, e me enchia de perguntas sobre o Mingau e se Mauro estava praticando a lição da semana, e me faziam um bocado feliz. Raro é o dia em que não nos vemos ou paramos pra rir das voltas que a vida dá.

Naquele dia, eu pude abraçar meus amigos e agradecer de novo por terem me salvado de tantas formas. Não sei bem se disse ou fiz algo diferente, mas o clima pesado foi embora, e os três ergueram a cabeça e pareciam gratos quando pulei no rodamoinho entre as dimensões, mas não precisassem dizer mais nada.  

***

A chuva fina tinha se transformado num temporal, mas não me importei. Eu amo a chuva. Fiquei ali, de olhos fechados, absolutamente feliz e encharcado.

— Luca, tem uma toalha na varanda, ok? E um pano pra cadeira.

Eu assenti com a cabeça pra voz de Fred lá dentro. Ah, o cheiro de chuva, da terra, daquele mundo sem paredes. Meu braço esquerdo parou de se molhar, e ouvi a voz da Ramona.

— É linda mesmo. — Nós dois ficamos parados observando a vegetação curvar-se ao vento. Ramona nunca precisava encher o silêncio com palavras à toa. Ela aproveita o presente com uma intensidade que eu nunca soube, tão vigilante com o futuro e suas piadas ruins.

Nunca vou entender como Mauro trocou essa garota pelo rabugento do Cássio. Talvez fazer tudo ao contrário seja de família.

Embora tenha me prometido nunca desperdiçar uma chuva com preocupações, penso um tanto apreensivo naqueles dois. Ângelo tem aparecido com frequência pra nos visitar e tomar um chá, mas tudo que nos diz há meses é que Mauro e Cássio estão vivos e bem. Como será que estão se alimentando? Será que dormem melhor? Continuam brigando como cão e gato ou melhor, lobo e javali?

Marina me diz que não saberei onde usar todo o tempo livre que terei quando não me preocupar mais com todos eles. O que posso fazer? Outras pessoas pra proteger, novos planos pra refinar, pensar nalgum jeito de receber notícias dos rapazes, conhecer esse mundo imenso sem paredes nem degraus... É um trabalho que não acaba.

Que pena, a chuva parou. Nos olhamos, satisfeitos por termos partilhado uma visão única da natureza que amávamos. Fico feliz de verdade em vê-la sorrir, o que ela faz com muito mais frequência depois que se tornou nossa amiga.

— Minha mãe está te esperando pra jogar xadrez amanhã à tarde. Reclamou que há uma semana você não vai até lá. — Controlei meu sorriso. Ramona já está desconfiando dos convites frequentes, ou das magias acrescidas ao casarão secular, que permitem que eu vá a qualquer lugar sozinho, mesmo na cadeira de rodas. Mas não faz ideia.

— Diga a ela que eu estarei lá no horário habitual. — É um jogo que requer paciência e muita sutileza, como o xadrez de amanhã. Pode levar anos até que Viviane confie em mim, e o risco de virar algum tipo de roedor no processo é grande. Mas sei esperar e aprendo rápido. Minha cadeira ou meros cento e cinquenta anos de diferença são detalhes que não irão me impedir de tê-la ao meu lado.

A garota ao meu lado sorriu novamente e tudo em que penso é num sorriso muito semelhante ao dela, mas emoldurado por cabelos negros como a noite e por olhos castanhos magnéticos, nos quais planejo me perder muito em breve.

Pego a toalha, enxugando os cabelos enquanto Ramona me empurra pra dentro da tenda de Fred e Marina, me permitindo sonhar. Porque eu amo o céu estrelado, a chuva e mesmo a tempestade desse mundo novo e tão familiar.

Mas a Lua... Ah, a Lua...

***  

Ainda estou elétrico demais pra dormir, entusiasmado e frustrado com a encomenda de Viviane. A física aqui é um pouco diferente, e parte de mim está eufórico em descobrir o quanto posso aprender.

Mas a estação meteorológica vai ter que esperar; Marina está ali sentada num colchão de palha, contando animada sobre o dia que teve aprendendo e trabalhando com Ramona no jardim. Ela para e me assiste estender a toalha e vestir uma cueca pra deitar.

— Na cama tão cedo, Franja?

— O trabalho não vai sair do lugar. — A menos que seres mágicos ou outro distúrbio gravitacional resolvam acontecer, acrescentei em pensamento. — Não mudei de mundo pra ser o mesmo. E minha amada está aqui. Por que eu iria querer qualquer outro lugar?

Fiz um carinho de leve no rosto dela. Ela parece orgulhosa de mim. Começamos uma vida de casados num canto do meu laboratório, e agora nessa tenda desenhada por ela, mas estamos felizes, temos trabalho e coisas novas pra conhecer. Nunca mais vi ou ouvi coisas que não estavam lá, mas não perdi o hábito de checar com ela se ela também ouviu. Hoje em dia isso só provoca sorrisos, não desconforto. Eu não poderia querer mais nada.

Luca mora com a gente e dorme no quarto ao lado, então Marina sussurra em meu ouvido uma ou duas coisas interessantes pra fazermos antes de dormir, e meu corpo reage com a animação de um garoto de dezesseis anos. Sempre.

Uma vez, antes do meu casamento, eu ouvi que era uma mistura de sacerdote, viciado e homem. Me aborreci, mas continua sendo verdade. Exercitar minha mente, ajudando Viviane ou fabricando coisas me realiza; Exercitar meus braços e a parte prática dessa nova ciência ajudando meu pai e Marina a construir nossa casa me satisfaz. Mas essa mulher deitada em cima de mim... Ela é a gravidade, o oxigênio. Minha heroína.

Perdido em êxtase, escuto-a falar algo sobre filhos. E apesar do medo das consequências e de termos concordado em esperar até compreender melhor esse mundo, algo no meu peito canta de alegria, e me pego desejando ainda mais da vida.


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Notas finais do capítulo

Como já cansei de dizer: Luca fez o que quis. Terminei esse capítulo surpresa também

Muito obrigada a todos e a cada um de vocês. Até o próximo capítulo.



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