Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 17
Aquele que sabe o que vocês disseram noite passada


Notas iniciais do capítulo

Não estranhem muito algumas falas do início do capítulo, Mauro está bêbado de verdade.



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E o sono sumiu. Puf.

— Como é, Mauro?

— Vooocêeeouviuu...eeu te pegava, seeu fres..co... Tuuuu tá gostoso pra car...See eunãotivesse ... a Ramona...Eu te amo... porra...Você éee meeu melhor... amigo...do mun.. duu...todo...

—...

— Vinhooo... faz iiiisso com as pess...?

Um barulho súbito quase fez Cássio pular da cadeira. Luca nunca roncou, mas agora parecia uma moto com defeito. Olhou de novo pra Mauro, que finalmente tinha dormido com um sorriso satisfeito encostado nele.

Santo Deus, e agora?

***

— Cássio, vai dormir. Tudo tranquilo à noite?

— Nenhum incidente, Fred. Mauro, acorda. Argh, essa cadeira mastiga a gente. Acorda, cara. Preciso levantar.

— Falem baixo, caramba. Tô morrendo de dor de cabeça. Tudo certo, Cas? Algo fora do padrão?

“Você quer dizer, fora a noite inteira?” pensou — Tudo tranquilo, Mau.

— Você ficou acordado nessa posição a noite toda?

— Foi até fácil. Tem, digo, tinha café, e Mauro ficou conversando comigo.

— Fiquei? Que estranho, eu realmente não lembro. Aff, que clichê! Espera, não fiz nada constrangedor dessa vez, fiz?

— Sussa. Foi um bêbado feliz. Falou e falou até apagar. — Espreguiçou-se. — Aaaargh, caramba! Tô mesmo quebrado. Vou ali meditar um pouco. Me chamem pro café. — Pegou as muletas e saiu, xingando baixo os músculos doloridos.

— Ele disse que ia meditar?

— Escutei isso também. Cadê o nosso Cachorro Louco, que acha um saco e tem que ser arrastado toda manhã?

— Eu tô perneta, não surdo. Vão se ferrar. Os dois.

Aí está o Cachorro Louco que conhecemos e amamos. Peguei a pistola, Mauro.

— Não guarda antes de checar, Fred.

— Droga. Nunca me acostumo com essa coisa. — Fez todo o procedimento de segurança. Travou novamente. — Assim que Luca acordar, deixo essa tranqueira com ele.

— Você ainda vai dar um tiro no pé. Aí vai lembrar de checar quando receber. — Acenou com a cabeça na direção de Marina — E aí, como foi a noite, Braddock?

— Bra-quem?

A primeira noite de um homem, Fred! Eu tendo que explicar referência pra você é o fim! Será que só eu e o DC vimos esse filme?

— Eu não vou falar disso desse jeito, porra. Ela é a mulher da minha vida, não uma coisa! Respeita aí, cacete!

— Ô,ô, Fred! Paz! — Levantou as mãos, recuando — Não quero desrespeitar ninguém, principalmente minha priminha ali. Só tô curioso como foi pra você. Você se segurou a vida toda, né? Você é apaixonado por ela desde os doze anos, cara.

O rosto de Fred abrandou-se. — Vem, me ajuda a levar as coisas pra cozinha. — Carregaram os pratos e copos pra cozinha improvisada no setor de química.

— Não aconteceu nada. A gente só dormiu junto.

— Por que, cara?

— Sou quase três anos mais velho que ela, cara. Ela não tá pronta pra seguir o meu ritmo. E eu não ia conseguir me controlar se cedesse aos hormônios adolescentes dela. Só a pedi em namoro há três a... Ai, merda! Foi ontem! Ontem fez exatamente três anos que eu a pedi em namoro! Ah, como eu sou burro!

— Volta aqui, Fred! Pelo menos deixa os pratos na pia! — Viu o amigo voltar correndo, largar os pratos de qualquer jeito e disparar na direção em que vieram. — Ô retardado, não corre com a arma na... — Tarde demais. Ele já estava distante — cintura.

Cara, como um gênio como o Fred conseguia ser tão tapado? A cabeça estava explodindo, iria tomar algum remédio e iria seguir pra meditação também. Precisava acumular energia pra tentar falar com o Bóris, e se desse muita sorte, ver a Ramona. Será que ela ainda pensava nele? Olhar pra Marina e Fred juntos o fazia sentir saudades dela. E ainda mais frustrado pelo cachorro louco idiota. Mas pelo menos eles estavam vivos, não numa caixa.

Devia ser ainda mais difícil pro Luca. Além de ter perdido a Isadora, já não tinha tanto da companhia de Fred. Precisavam ajustar as coisas, dar um jeito dele não ficar tão só.

***

— Que horas são?

— Umas oito, amor. Bom dia.

— Bom dia, Franja. Dormiu bem? — O viu corar, mas os olhos brilhavam.

— Muito bem. — Então pareceu murchar um pouco — Ontem foi o nosso aniversário, não foi? Eu esqueci de novo, desculpe.

Ela tocou de leve no rosto dele. — Eu ficaria surpresa se você lembrasse, amor. Mas ontem já foi especial o suficiente. — Levantou a mão com o anel. — É lindo. É normal ficar com a cabeça pesada assim depois de beber tão pouco?

— É normal, sim. Vem comer alguma coisa, vai ajudar. Vamos precisar de sua ajuda pra fazer a surpresa pro Luca.

— Dá pra fazer alguma coisa aqui dentro sem ele saber?

— A gente tenta.

“Luca.”

— Você ouviu isso também, não é? — Diante da concordância dela, Fred levantou e tirou a pistola da cintura. Olhou para as telas, nada anormal. — Essa não é a voz dos rapazes. Ma, acorda o Luca.

“Luca!”

Ouviu as muletas de Cássio. Nunca ouvia o Mauro, mas em uns minutos ele estava do lado deles, uma kunai na mão.

— Luca, acorda.

— Hmm? Marina? O que aconteceu?

“LUCA”

— Quem tá me chamando?

— Estamos os cinco aqui. Não sabemos.

Ao contrário das histórias de zumbi, obsessivos recentes falavam. Fosse pedindo socorro pra si, fosse pra atrair presas, eles conseguiam falar e ter conversas curtas no começo da doença.

— Não encontro nenhuma falha na segurança. Nenhuma porta abriu.

— Eu vigiei essas telas a noite toda. Não aconteceu nada de estranho nas câmeras.

— Fred, a arma, por favor. Pessoal, plano Búfalo. Marina, você apoia Cássio atrás de mim.

Saíram pelos corredores, Mauro e Fred checando e fechando as salas. A voz estava mais próxima, com menos eco. Mauro parou, sinalizando pra Cássio, que entendeu e relaxou.

— Gente, relaxem. É o Shkreli. Como ele sabe teu nome?

— Eu disse a ele. Mas ele nunca mais falou comigo. Podem ir, eu chamo se precisar.

— Não estaremos longe.  

Luca rodou até a frente do painel de vidro.

— Bom dia, sr. Shkreli.

— Bom dia, sr. Luca. Decidi trabalhar com vocês. Quando podemos começar?

— Vou reunir meus associados e retorno à tarde. O senhor prepare uma lista do que vai precisar, com descrições detalhadas. Prefere dormir aí ou em outro lugar?

— Prefiro dormir aqui. Depois que eu concluir a pesquisa, o que vocês planejam fazer de mim?

— O senhor é livre pra ir onde quiser depois disso. Por enquanto, apenas acompanhado. Quando o senhor terminar, farei uma nova reunião e saberei se o senhor pode integrar o grupo. Posso garantir sua segurança dentro das instalações. Alguma dúvida?

— Nenhuma. Obrigado.

— Pelo que o senhor está agradecendo?

— Eu sei que os senhores não gostam de mim. E presumo que os recursos são escassos. Seria mais simples e econômico me executar quando cheguei.

— Seria. Mas como eu disse ao senhor: Não acredito que o senhor seja maligno. O senhor não tem minha confiança, mas pode ter uma nova chance. Eu estarei atento.

— Entendo. Adeus.

***

— Franja, rapazes, eu preciso que me ensinem a lutar. A caminhar lá fora. A ajudar com a porta. Sei que não sou tão forte quanto vocês, mas também quero proteger minha casa. Não posso contar com o lápis mágico pra tudo.

Instintivamente, Cássio e Mauro olharam pra Fred. Ele tentou conter a angústia nos olhos, não conseguiu.

— Marina, eu vou te ensinar a lutar. Mas precisamos de você aqui, como uma força de combate com Fred e Luca. Eu e Cássio matamos bem, mas teríamos morrido há muito tempo se não tivéssemos pra onde voltar. E você conhece esse lugar melhor que qualquer um, exceto o Fred. E aí, Luca, como foi?

— Ele vai trabalhar com Fred numa cura, ou numa vacina. Fred, não esqueci o que ele fez. Lide com isso de um jeito profissional, preciso de você lá. Mauro e Marina, vocês vão revezar e acompanhar o doutor em qualquer momento em que ele não esteja na reclusão. Fred, como está o andamento da nova prótese de Cássio?

— Vai ficar melhor que o original.

— Ótimo. Cássio, como está o braço?

— Até agora tudo bem. Não sangra, dói às vezes.

— Vamos programar a revisão do seu braço. Rapazes, Marina é uma de nós. Eu sei que você não gosta de lutas, Fred, mas ela precisa poder se defender. Cássio, você a ensina a lutar e atirar. Quando ela estiver confortável, Mauro treina combate com ela, eu completo o treinamento de tiro. Fred, você é quem tem o conhecimento técnico. Pense num jeito de nos avisar se alguma coisa parecer estranha no que o Doutor estiver fazendo. Deixei passar alguma coisa?

— Vamos limitar o tempo de trabalho de laboratório, senão ninguém faz mais nada.

— Boa ideia. Seis horas por dia fica ok?

Marina ainda ficava espantada. Eles funcionavam muito bem como equipe. Aceitavam naturalmente Luca planejando, e todos tinham uma função. Era bom de se ver.

— Tranquilo.

— Fred e Marina, precisamos conversar. Vocês podem ficar um minuto?

— Estamos indo, então. Vou regar a horta. Mauro, me ajuda com a fisio?

— Claro. — Quando os dois se afastaram, Luca pareceu um pouco... sem jeito?

***

— Às vezes fico feliz que tenha outra pessoa pra fazer essa parte do trabalho.

— Regar as plantas, Mau? Sério?

— Não babaca, pensar nas coisas feito o Luca. Dar sermão.

— Você acha que ele tá passando um sermão tipo “Sexo e responsabilidade”? Cara, essa folha aqui tá manchando. Vou sinalizar aqui pra gente ver se espalha.

— Cara, ele passou um desses em nós três. E até onde eu sei, somos héteros.  Acho que Luca tem mais medo da Marina engravidar que de uma invasão de obsessivos. Por que você tá me olhando assim?

— Você não lembra mesmo de nada de ontem, lembra?

Mauro ficou branco. O que ele tinha feito?

— Lembro de encher a cara e dormir do seu lado. O que foi que eu fiz?

— Alguma conversa sobre eu não ser gay..?

— Humm... Não, nada. Branco total. Diz logo que merda eu disse, Cássio.

—...

— Fala, porra. Você tá me deixando nervoso. O que foi que eu falei?

Cássio não estava olhando pra ele. Quão ruim podia ter sido?

— Não entendi tudo, tua voz tava enrolada pra caramba. Mas você disse que me pegaria fácil se eu fosse gay, que eu era gostoso pra caralho, disse algo sobre “se eu não tivesse a Ramona”. Que eu era seu melhor amigo. Que me amava.  Não do jeito que a gente sempre fala, do jeito romântico. Porque tu não falou comigo, cacete?

Estava um pouco magoado pelo amigo estar escondendo esse tipo de coisa. Irritou-se com o silêncio e viu Mauro agachado, limpando a terra de lagartas.

— Você me ouviu, Mauro? Por que você teve que ficar bêbado pra admitir que gosta de mim?

— Nós não vamos conversar.

— Ah, vamos sim. — Puxou o ombro dele, deixando cair uma das muletas. Os olhos que o encaravam de volta eram amarelos. — Lobo?

— Terminamos aqui. Você precisa exercitar a perna. Estamos te esperando lá embaixo.

***

— Você ainda tá vermelho, Franja.

— De todas as coisas do mundo, nunca pensei que estaríamos discutindo nossa vida sexual com o Luca. Céus, um dia de namoro e ele falando de você grávida?

— Ele me faz lembrar meu pai. Ele também tentou ter uma conversa dessas, mas não era tão direto. Na verdade, ele estava mais nervoso que eu. É isso que ele é aqui, né? Ele age como o pai de todos nós. Ah, por isso vocês o chamam de Odin. Pai de todos, faz sentido.

— A gente ficou bem perdido no começo. Ele foi o único que não pirou. Sem ele, a gente teria morrido há muito tempo.

Marina sorriu nostálgica. — Sinto falta dos meus pais. Queria que eles pudessem estar aqui com a gente. Poder conversar com minha mãe sobre coisas de garotas era muito bom. Mas não sei porque ele tá preocupado. Você não me toca assim.

— Desculpe. Eu sei que você quer, mas eu não... posso. Não ainda.

— Você sempre me diz isso, mas nunca fala o motivo. Ou o que está esperando. Até noite passada, você sequer me beijava direito.

— Por favor, é difícil explicar. Só tenha um pouco mais de paciência.

— Tudo bem. Eu amo você assim mesmo. Se você não tá pronto, tudo bem. — Tocou no rosto dele. Ele parecia triste e ansioso, como se houvesse um segredo que ele não pudesse dividir. O que podia ser tão sério que o fazia recuar cada vez que a situação ficava mais íntima? Claro que não iria muito longe, mas esperava uma reação diferente do namorado além de uma recusa e um distanciamento educado.

Mesmo com aquele problema cada vez mais incômodo, era ele que ela amava. Quando estivesse pronto, Fred conversaria com ela, tinha certeza.

Marina parecia decepcionada. Mesmo com o quanto a queria não podia explicar aquilo. Ela saberia que ele era um paspalho e terminaria o namoro. Não teria mais nada se ela também o deixasse.

Faltava tão pouco tempo. Luca talvez pudesse lhe dar algum conselho sobre como se segurar sem magoá-la. O amigo tinha uma vontade de ferro e certamente compreenderia sua situação. Chegaram em frente às telas do computador principal.   

Podia lembrar da cadeira de rodas parada ali, as pessoas desesperadas para entrar, tantos rostos familiares. Se não tivesse transformado o laboratório num bunker, eles teriam sido invadidos. Fred acompanhava com angústia as telas, as batidas na porta externa, procurando por Marina entre os rostos de pânico.

“— Meu Deus, Luca. Abre a porta, porra! Aqueles são-

— Meus pais? São. Eles foram mordidos, Fred. Olha ali. Como toda essa multidão. Eles não vão entrar.

— São teus pais, filho da puta! Abre essa porta! Me dá esse controle!

— Se eles entrarem, todos entrarão. Quer morrer junto com eles, Fred? Se você tentar tomar esse controle, eu vou quebrá-lo. Se não aguenta, me ponha pra fora ou saia daqui.”

Luca ainda achava que Fred não o ouvira chorar naquele dia.

— Fred? Fred, amor?

— Sim?

— No que você estava pensando?

— Estava lembrando de uma coisa. Vou checar se Mauro precisa de ajuda com os exercícios. E Ma, eu não queria que você tivesse que matar como os outros. Eu vi o que isso fez com eles.  

— Eu também não quero, amor. Mas preciso poder me defender, poder defender a gente. Quero lutar do seu lado. Não posso só assistir.

— Eu só não queria que isso fosse preciso. — O abraço dela o ajudava a prestar menos atenção nas vozes.

— Eu também, Franja. Eu também.

***

Os exercícios foram em silêncio. O Lobo desfez os curativos e farejou um pouco.

— Está curando bem. Mais um mês e você poderá prender esse toco numa prótese.

— Mauro, por favor me escuta. Não sei como é esse teu esquema com Lobo, mas sei que pode me ouvir. — Segurava o amigo pelos braços, tentando chamar sua atenção. — Você não é o covarde que sempre pensa que é. Você é meu amigo, cara. Pode conversar sobre qualquer coisa comigo. Tô falando sério, merda. Se tá a fim de mim, ou só queria dar uns malhos, eu queria saber de outro jeito. Só isso. Você me conhece, sabe que eu não vou te recriminar.  

—...

— Por favor, Mau. Fala comigo. Eu não vou te deixar sozinho e não vou te deixar em paz, então para de se esconder, cacete.

A falta de expressão deu lugar a olhos castanhos cheios de tristeza, e algo mais... Medo, talvez?

— Eu não queria me sentir assim. Droga, nem sei direito o que sinto. Por você ou pela Ramona. Mas quando eu pego na sua mão, ou quando chego muito perto... É cada vez mais difícil ignorar. De que adianta te arrastar pra minha confusão? E se você não...

Foi puxado num abraço por um Cássio muito emocionado. —Seu idiota. — E continuou a xingá-lo de tudo que conhecia. Ofensas murmuradas, comovidas e carregadas de amor.


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Notas finais do capítulo

* Acredito que já escrevi isso antes, mas Mauro chama Marina de "priminha" às vezes por brincadeira minha, já que ambos são inspirados em filhos do Maurício.
* Nunca fica muito clara a diferença de idade entre Marina e Fred nos quadrinhos, decidi por quase três anos senão complicaria tudo.

A todos que continuam, meu muito obrigada. Nos vemos próximo capítulo.



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