Que viagem escrita por Cínthia Zagatto


Capítulo 3
Capítulo 2




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A decisão de passar a tarde toda dormindo parecia ter sido acertada. Contudo, o enjoo que Alice segurara durante aquele tempo – em que preferira se desligar sonhando a ficar acordada e pensar sobre o que acontecera – havia reaparecido para lembrá-la de que tinha algo errado em como seu organismo vinha funcionando. Seu estômago queimava e essa sensação subia para a garganta, lhe dava a impressão de que deveria estar chorando. Mas Alice sentia que não restavam lágrimas dentro de si mesma havia pelo menos nove meses.

Então tinha sido aquilo no aeroporto. Todas aquelas vozes em espanhol deviam estar dizendo bem alto aos seus ouvidos que o voo de Sebastian Davies havia desembarcado e que ele logo estaria do lado de fora dos portões, mas ela não conseguira decifrar a pista tão óbvia em um idioma tão parecido com o seu.

Alice conseguia entender – mais ou menos – o furdunço que Sebastian Davies havia causado na internet um ano atrás. Um músico que tocava pop-rock adolescente havia sido descoberto namorando o ator bonitão de um filme igualmente jovem. A estrutura emocional de um mundo on-line focado em shippar casais engraçadinhos não precisava de muito mais do que isso para ser abalada. A questão era que nada daquilo tinha muito apelo para ela.

Havia sido sugada para uma maratona de Sebastian Davies desde que o músico confirmara sua primeira turnê oficial pela América do Sul, pouco depois que o namoro com Rafa começara. Antes disso, Seb havia percorrido o continente para alguns poucos shows acústicos promocionais, mas, agora que as apresentações eram de verdade, ele estava em todos os lugares. Não apenas nas rádios ou nos canais de televisão voltados a música, mas também nos shoppings que ela costumava frequentar, cheios de lojas de uma marca de óculos de sol moderninha com a cara dele estampando sua nova campanha já havia alguns meses.

Até mesmo essa campanha vinha com uma história que chamava a atenção da mídia. Alice não sabia como as pessoas descobriam tudo sobre a vida daquele garoto que mal havia aparecido no cenário musical, mas escutara que o ator que ele costumava namorar deveria estar com ele em todas aquelas peças publicitárias. No entanto, o término do namoro fizera a marca precisar escolher entre eles. E, bom, entre um cara que usava blazers o tempo todo e outro que tinha o cabelo desgrenhado e uma guitarra a tiracolo, a marca com certeza se interessaria pelo modelo mais alternativo – ao menos era essa a análise que Rafa fazia sempre que tocavam no assunto.

Rafa talvez fosse uma das pessoas mais obcecadas por fofoca – embora preferisse chamar de boas histórias— que o mundo já havia conhecido. Vivia lhe contando o que acontecia na vida dos artistas mais famosos do momento, por menos que Alice se importasse com eles. Ela mesma não saberia confirmar nenhuma das histórias que escutava, principalmente quando elas tratavam de Sebastian Davies, porque eram sempre muitas. Mas essa quantidade excessiva de informações fazia com que a imagem dele se tornasse menos atrativa para ela. Era um efeito oposto ao que tinha acontecido com o restante das pessoas, porque nada naquilo lhe parecia mais real do que pequenas jogadas de marketing muito bem pensadas. Agora ele era um dos músicos mais falados na mídia mundial, e Jake Ritter, o ex-namorado dele, estava em vias de lançar seu segundo filme em Hollywood, agora no papel principal. Ótimo para os dois.

A falta de interesse por Sebastian Davies, na verdade, pouco lhe importava naquele momento. O importante para Alice era que a fama dele havia lhe dado um presente. Tudo que ela não queria era que o presente houvesse começado já assim, como uma porrada em sua cara. Havia perdido Zack por quinze minutos. A oportunidade que esperava havia escorrido por entre seus dedos, e eles ainda estavam pingando.

Alice desceu na estação de metrô Estadio Nacional, que ficava próxima à arena onde aconteceria o primeiro show de Sebastian Davies na América do Sul. A turnê começaria dali a duas horas, e os portões deveriam se abrir dentro de trinta minutos. Ela imaginava que uma antecedência de duas horas seria o bastante para conseguir um lugar especial na frente de Zack, mas percebeu que estava ridiculamente enganada quando procurou a fila e descobriu que ela já fazia o que deveria ser uma centena de ziguezagues em frente ao estádio.

Com um nó bem no topo do esôfago, foi até o final e tentou se manter positiva. Talvez algumas daquelas pessoas tivessem comprado ingressos para as arquibancadas, talvez ninguém quisesse ficar na frente de Zack, escondido lá em um canto, como imaginava que ele ficaria. Tentou dizer a si mesma que ainda tinha dez chances de fazer certo e que aquele era apenas um aquecimento, mas nada conseguia consolá-la depois daquela manhã.

Sebastian era tão famoso quanto o mundo havia tentado alertá-la. O problema era que ela nunca havia visto aquilo tudo de perto, aquela aglomeração e euforia que imaginava que só existiam nos noticiários dos dias que sucediam grandes apresentações, como as de U2 e Lady Gaga. O máximo que já havia visto de perto eram algumas bandas nacionais em shows menores, aos quais Rafa a havia convencido a ir. Bandas das quais ela não sabia como Rafa conseguia gostar ao mesmo tempo, com estilos às vezes tão diferentes. Havia aquele reggae do Onze:20, um tipo de MPB mesclado ao folk e ao pop que Alice não conseguia definir de O Teatro Mágico, o rock alternativo de Scalene e Far From Alaska, e por fim o eletrônico da SELVA – uma dupla que aparentemente era integrada por um dos antigos garotos da Restart, sobre a qual ela só sabia que era uma banda meio colorida que as colegas de sala ouviam durante o ensino fundamental.

Entrou sozinha no fim da fila, onde um grupo de três amigas estava sentado até que os portões se abrissem. Sentou-se em silêncio atrás delas e, como forma de distração para afastar aquele mal-estar que sentia, tentou escutar a conversa. Chegou a fechar os olhos para entender. Era animada demais para que conseguisse separar todas as palavras, mas elas mexiam no celular e falavam sobre um hotel. Aos poucos, quando conseguiu se concentrar, notou que podia resumir o longo diálogo:

— Tenho certeza. Claudia postou uma foto com ele lá na porta.

A fila começou a andar e fez com que todos se levantassem. A cada passo que dava na direção do portão do estádio, seu estômago afundava mais. Estava ansiosa para ver Zack frente a frente pela primeira vez. Queria descobrir se ele cantaria qualquer parte de qualquer música, se ele diria qualquer coisa no meio do show, ou até se Sebastian o deixaria tocar uma música dele. Mas também não queria perder as meninas de vista.

Levaram quase quarenta minutos para entrar no estádio. Alice passou pela segurança e entregou seu ingresso, então olhou ao redor e percebeu que as garotas haviam desaparecido. Procurou o mais rápido que pôde e viu-as já muito à sua frente, correndo para um canto da plateia. A maioria das pessoas estava aglomerada no centro do palco. Alice não entendeu o motivo disso, quando elas poderiam ficar muito mais perto nas laterais, mas não parou para pensar muito enquanto sua missão era acompanhar de longe o trio de fãs de Sebastian.

O show levou mais uma hora para começar, e lá estava Zack. Com sua camisa xadrez, seu boné de aba bem dobrada no meio da testa, a guitarra de madeira e sua barba ruiva reluzindo sob os holofotes. Ele tinha um microfone em sua frente, e Alice colocou a mão na boca só de vê-lo começar a tocar. Imaginou que fosse vomitar um pulmão. Sebastian gritava qualquer coisa que ela não conseguia ouvir ou entender – talvez estivesse tentando falar um espanhol pior que o dela –, mas tudo que importava era que estava respirando o mesmo ar que Zack Cole. Minutos depois, percebeu que o microfone dele estava tão baixo que mal dava para o gasto.

Viu as pessoas ao redor chorarem, erguerem os braços e cantarem de volta para o palco. Viu como elas pulavam, como parecia que o ar iria lhes faltar e como, mesmo assim, elas nunca paravam. Alice entendia, agora, como tantas pessoas perdiam celulares e carteiras em shows. Apostava que, mesmo sem experiência nenhuma, se tentasse roubar alguém só por questão de teste, a pessoa só descobriria que havia sido furtada quando a cutucasse para devolver o que tinha pego.

Não ouviu metade das músicas. Para ela, pareciam todas iguais. Uns solos de guitarra, uns gritos aqui ou ali. Elas se dividiam em dois tipos: as mais lentas, que davam sono, e as mais agitadas, que davam dor de cabeça. De olho em Zack, os pensamentos que tivera no aeroporto começaram a retornar. Talvez conseguisse falar com ele facilmente. Não devia haver um enxame de fãs dele por ali. Talvez até, se alguém lhe dissesse que havia uma fã sua em meio à multidão, ele decidisse parar para lhe dar atenção. E era por isso que não podia perder as três meninas de vista, porque elas lhe haviam dado uma grande ideia. Alice precisava chegar até o hotel em que eles estavam hospedados.

Começou a ficar mais agitada quando o show foi acabando. A banda deixou o palco, mas a plateia não saiu do lugar. Ela não sabia muito sobre shows, mas também não era nenhuma alienada que não conhecia o famigerado momento do bis. Começou a se aproximar mais do grupo que vira na fila e que agora estava um pouco à sua frente. Olhou Zack o máximo que pôde, apenas no caso de que fosse a última vez que fizesse isso aquela noite. Então disparou para fora, ao encalço das três amigas, que pareciam ter pressa para sair.

Quando pararam perto do portão e elas fizeram uma roda em torno do celular, Alice respirou fundo. Precisava aprender a falar espanhol. Agora. Não tinha muito tempo até perdê-las de vista. Chamou num impulso, mesmo que ainda estivesse um pouco longe:

— Com licença. Vocês vão pro hotel em que o Sebastian está? Estou procurando alguém pra dividir o táxi pra lá.

Não era bem a completa verdade. Alice queria mesmo era saber onde o hotel ficava e torcia para que tivesse entendido certo a conversa. Do contrário, elas poderiam lhe perguntar qual era o hotel, e aí, sim, teria um pequeno problema.

Viu as garotas se entreolharem. Todas ficaram em silêncio até que uma, vestida com a camiseta do músico, virou-se para ela:

— Não, nós estamos indo embora. Mas deve ter gente querendo ir pra lá.

Alice deu um passo para trás. Imaginou mesmo ter entendido tudo errado e sentiu as bochechas ruborizarem. Assentiu e foi para a calçada, de onde abriu o aplicativo para chamar um Uber, já que não saberia para onde ligar para conseguir um táxi – ou até se um taxista cobraria um preço absurdo para levá-la embora de lá. Ela também ouvira falar disso em muitas reportagens sobre shows grandes na televisão.

Alguns minutos depois, um táxi parou em frente às meninas, abriu a janela, e todas elas entraram no banco de trás. Alice viu o carro desaparecer na esquina congestionada, com um assento vazio. Quando baixou o celular ao lado do corpo, com o aplicativo procurando um carro para levá-la de volta ao hostel, uma dupla de adolescentes apareceu ao seu lado – uma garota de delineador preto forte ao redor dos olhos e um menino de franja cobrindo metade do rosto, parecendo saídos diretamente de 2006 com My Chemical Romance nos fones de ouvido. Ela só tinha oito anos naquela época, mas acreditava que não havia jeito de esquecer.

— Oi, você fala espanhol? A gente ouviu você falando que quer ir pro hotel do Seb?

Alice olhou para os dois e assentiu, falando bem devagar para que eles entendessem que não os acompanharia se tentassem falar um pouco mais rápido que fosse:

— Eu queria, mas não sei onde fica.

— Você já chamou um Uber? A gente sabe, mas não consegue nenhum carro. — A menina ergueu o celular, e o aplicativo continuava a buscar um motorista disponível.

— Chamei. Vocês querem dividir?

A menina se aproximou e olhou para sua tela:

— Muda o endereço. Busca o nome do hotel.

Alice a deixou digitar quando não conseguiu entender o nome pela terceira vez. Então esticou a mão para os dois.

— Eu me chamo Alice. — Seu espanhol era risível.

— Iris.

— Alejandro.

Levou vinte minutos para que conseguissem entrar no carro. No caminho, descobriram que falar inglês era melhor. Iris e Alejandro eram de uma cidade que ficava a três horas de Santiago e também estavam em um hostel barato. Conheciam uma menina da cidade, que não era fã de Sebastian Davies, mas que era amiga deles o suficiente para descobrir entre seus conhecidos em qual hotel os músicos estavam, só para lhes contar. Eles haviam esperado o dia todo por notícias, mas receberam o endereço apenas antes do show começar.

O hotel ficava a dez minutos de distância do estádio. Agradeceram ao motorista ao descerem e andaram na direção da aglomeração que se formava.

— Eu vou ficar aqui — Alice anunciou, afastada do bolo de pessoas, que não conseguia chegar à porta por causa de uma faixa de contenção.

— Mas ele vai ter que passar pela porta. Minha amiga disse que o estacionamento não fica no subsolo do hotel, então essa é a única entrada.

Alice ficou em silêncio e mordeu o lábio. Imaginou Sebastian chegando, cercado de seguranças e correndo para dentro. Enquanto isso, Zack e o restante da equipe estariam atrás, talvez descarregando a van, sem se importar muito com os fãs. Nenhum fã estaria ali por causa de qualquer outro músico que não Sebastian, de qualquer forma.

— É que não vim ver o Sebastian — falou baixo pela primeira vez. Tinha vergonha de dizer isso em voz alta. Não que tivesse vergonha de gostar de Zack – ele era muito melhor do que Sebastian –, mas tinha vergonha de estar na turnê errada. — Quero ver o guitarrista, Zack Cole.

Iris e Alejandro trocaram olhares. Pareciam não saber o que dizer, até a garota apontar para as pessoas e se afastar devagar:

— Tudo bem, estamos ali.

Alice olhou mais um pouco para os fãs, todos vestidos com roupas escuras e tênis Converse ou Vans. Num geral, pareciam todos iguais. Ficou pensando se seria assim em um show de Zack também; todos de botas, chapéus e camisa xadrez.

Ali de longe, reconheceu o trio de meninas que a deixara para trás na porta do show. Cruzou os braços e encarou por um tempo. Teve vontade de ir até lá e perguntar por que haviam feito aquilo. Queria que elas a vissem ali, vissem que havia conseguido chegar sem elas e se sentissem um mínimo constrangidas. Não entendia o que elas achavam que conseguiriam fazendo aquele tipo de coisa. Devia ser alguma crença de que Sebastian iria derreter se mais alguém estivesse na porta do hotel para vê-lo.

Passaram-se vinte, trinta, cinquenta minutos, e nada da van da equipe chegar. Quase uma hora depois, quando já não aguentava ficar de pé, uma gritaria começou perto da porta. Alice esticou o pescoço para enxergar a rua, depois olhou para o centro da multidão, que parecia se apertar cada vez mais. Foi quando entendeu e sentiu uma agulhada no peito. Sebastian estava lá, com uma roupa diferente da do show e cabelo molhado, dando autógrafos e tirando fotos. A van nunca chegaria. Havia chegado antes dela.

Alice se aproximou da entrada do hotel. Olhou através das paredes de vidro para dentro do saguão. Viu alguns fãs de pé perto dos sofás, esperando que Sebastian retornasse. Ela não imaginava que seria possível se hospedar no mesmo hotel que a banda. Um homem que ela reconheceu como o baterista da turnê estava conversando com duas meninas, perto do balcão da recepção. Zack não estava lá.

Afastou-se para ter uma visão mais completa de todo o andar de baixo e da entrada de carros em frente ao manobrista. Talvez Zack tivesse ido em outra van, talvez tivesse ficado para trás para ajudar a desmontar o palco. Qualquer explicação que lhe desse alguma esperança de que ainda o veria naquela noite.

Com o fôlego curto, o pulmão parecendo não se expandir o bastante para a entrada de ar, ela encontrou um lugar para se sentar no canteiro que separava o hotel da calçada. Cruzou as pernas, sentindo a calça molhar um pouco por causa da umidade da grama. E foi quando percebeu que estava olhando na direção errada. O tempo passou mais devagar quando ergueu os olhos só um pouco. No bar que deveria ficar no mezanino do hotel, apenas alguns metros acima do nível térreo, Zack estava sentado em uma mesa encostada à janela. Bebia e gesticulava, conversando com alguns outros homens que Alice vira mais ou menos no palco.

Ela puxou o ar pela boca e pegou o celular no bolso. Pensou em tirar uma foto para mandar para Dani, mas imaginou que isso só faria lembrá-la de que ela não estava ali também. Olhou por vários minutos, com a gritaria ao redor se dissipando enquanto o observava e não conseguia se concentrar em mais nada. Não ouvia as vozes dos fãs mais animados, só o conhecido som da risada de Zack. Podia ouvi-la perfeitamente dentro da cabeça toda vez que ele parecia rir com os amigos do outro lado do vidro. Então procurou os fones e colocou uma das músicas dele.

Ficou lá, vendo-o de longe, de perto, escutando a voz dele cantar dentro de seu ouvido. Era uma noite agradável, mesmo em dezembro, com o mormaço do dia tendo despencado para uma brisa bem fresca à noite. Alice a sentia bater em seu rosto, mover alguns fios de seu cabelo para fazerem cócegas em seu nariz. E ali, com o corpo esfriando aos poucos depois do show e da ansiedade, os braços cruzados para se proteger do frio, sentindo como se estivesse ouvindo música na sala de sua casa, não se sentia realmente sozinha. Ele estava ali. E fazia muito tempo que ela não ficava tão em paz.


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Notas finais do capítulo

Oiê! Espero que você tenha gostado de ler até aqui.

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