Que viagem escrita por Cínthia Zagatto


Capítulo 2
Capítulo 1




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Maria Alice desembarcou no aeroporto de Santiago, no Chile, fazendo um grande esforço para se manter distraída. Conhecia de perto o fenômeno das coincidências e sabia que não existia a menor chance de que o avião de Zack Cole chegasse na cidade no mesmo horário que ela – não se estivesse esperando por isso. Talvez, se estivesse totalmente desprevenida, pudesse ver uma equipe carregando instrumentos musicais do outro lado do corredor e teria finalmente a chance de conhecê-lo. Como desprevenida era a última coisa que estava, não havia sinal de nada disso por ali.

Os arredores da porta de desembarque estavam cheios. Uma quantidade excessiva de pessoas se aglomerava, com alguns adolescentes jogados no chão e outros de pé, pendurados em seus celulares. Devia haver algum evento trazendo muitos voos para a cidade. Mesmo curiosa, Alice conseguia entender só um pouco de tudo o que escutava das conversas eufóricas em espanhol. As aulas na escola lhe haviam dado uma pequena noção do idioma, mas nada ali se assemelhava com os trava-línguas que sua professora às vezes passava como lição de casa. Era muito pior do que el perito de Rita me irrita.

Antes que fosse engolida pela multidão, afastou-se e parou em um balcão de informações para descobrir como chegar ao centro, onde ficava o hostel mais barato que encontrara na internet e que não se parecia com algo do tipo O Albergue. Comprou uma passagem de ônibus e, com os olhos sempre espiando os cantos, vagou por mais alguns minutos até chegar a hora de embarcar outra vez. De lá, saiu com o estômago fundo pela consciência de que veria Zack Cole dentro de algumas horas.

Lembrou-se de ligar o celular apenas na metade do caminho, quando olhou para a estrada correndo do outro lado do vidro e percebeu que poderia usar esse tempo para dar um olá a todos que precisavam saber que estava bem. Não que a lista fosse grande desde o ano anterior – e esse era exatamente o tipo de pensamento do qual quisera fugir quando decidira acompanhar a turnê de Sebastian Davies pela América do Sul. Sua mente ficava cinza sempre que a lembrança retornava.

No início, a nuvem que causava isso nunca ia embora, não importava o que Alice estivesse fazendo. Era como se vivesse em dois mundos. Um na região frontal da cabeça, aquela mais próxima à face. Era com ela que conversava com as pessoas, que seguia com seus estudos e fazia seu trabalho no estágio. A outra região ocupava a maior parte de tudo, espremendo o raciocínio quase que contra seus olhos. Ela lhe sussurrava sem trégua a única coisa da qual Alice queria se esquecer: seu pai morreu, seu pai morreu. E este segundo mundo, apenas dela, a sugava para dentro dele o tempo todo.

Desde então, Alice vinha procurando jeitos de encurralar a nuvem cinzenta em um canto. Ela havia ficado um pouco mais fácil de dissipar com o tempo. Afinal, já fazia quase um ano. Mas, talvez justamente por isso, a nuvem havia se formado novamente, tão espessa quanto antes, tomando cada vez mais espaço e voltando a conversar com ela de uma forma que desejava que não conversasse. Fazia pouco mais de onze meses que Alice ocupava seu tempo com qualquer besteira que encontrasse para fazer, apenas para não deixar que a nuvem voltasse, e agora vinha precisando tirar as técnicas mais triviais de dentro da manga novamente. Como mandar mensagens pelo celular.

Dani era a primeira pessoa da pequena lista a ser avisada. Era sua melhor amiga on-line, que conheceria pessoalmente apenas no show do Rio de Janeiro. Nove meses antes, haviam trocado a primeira informação sobre Zack na internet e alguma coisa nunca mais deixara que se afastassem. Embarcariam juntas para a turnê no Brasil, e era provável que seriam as duas únicas pessoas a comprarem ingressos para um show de pop-rock com o intuito de ver o guitarrista de apoio, que, na verdade, era um músico country fazendo bicos por aí até sua música autoral conquistar o espaço que merecia.

Seria maravilhoso se Dani pudesse acompanhá-la em todos os shows. Haviam feito muito esforço para que ela pudesse ir, mas a situação era diferente. Dani não tinha uma herança gorda para gastar. Sorte a dela. Também não tinha motivos para assistir onze vezes ao mesmo show só porque o aniversário do acidente de seu pai cairia no dia da apresentação no Peru. Ela não precisava desesperadamente estar o mais longe possível de São José dos Campos, a cidade em que nascera e onde decidira ficar para estudar e trabalhar sem se afastar dele. Alice, sim. E agora tudo o que queria era estar longe de lá e de qualquer lembrança que aquele apartamento enorme, e que agora era só dela, pudesse lhe trazer naquela data.

Havia pedido um adiantamento de vinte dias de suas primeiras férias no escritório de advocacia, onde começara a estagiar assim que percebera que ficar sozinha em casa a deixaria maluca. Precisara explicar o motivo da viagem à chefe, o mesmo motivo que a havia convencido de lhe dar a vaga no início do ano, e a surpresa mesmo foi que ela lhe permitira tirar a folga. Alice já estava ensaiando como pedir demissão do primeiro estágio, no meio da faculdade, para ouvir música. Não tinha ninguém a quem precisaria justificar isso, mas ainda fazia tudo de acordo com a opinião do pai. E tinha certeza de que esse era o tipo de coisa com a qual ele não concordaria.

A segunda pessoa a quem precisava avisar que chegara bem era Rafa, embora não tivesse a menor vontade de falar com Rafa tão cedo. Havia cortado uma discussão pela metade antes do voo decolar e preferia deixá-la assim. Não namoravam havia muito tempo, mas era o melhor tipo de namoro que Alice poderia desejar. Rafa morava em São Paulo e vinha vê-la depois da faculdade na sexta-feira, passava os finais de semana com ela e aceitava ficar em casa na maior parte do tempo, já que Alice normalmente não tinha a menor vontade de sair para o tipo de barzinho no qual haviam se conhecido.

Na verdade, fora por puro acaso: aquele tipo de encontro que por pouco poderia nunca ter acontecido. Alice havia se obrigado a sair em uma quinta-feira e Rafa nunca estava na cidade em uma noite no meio da semana, mas combinara de se reunir com os amigos do ensino médio naquele mês de julho. Agora Rafa vinha sempre, ou passava horas conversando com Alice pela ligação de voz do WhatsApp quando não podiam se deitar lado a lado para dormir.

Mas isso tinha sido até algumas semanas atrás, quando Rafa entendera que o motivo da viagem de Alice pela América do Sul era um cara chamado Zack Cole. Alice vinha tentando explicar que não era por causa do cara, mas não conseguia. Ela o havia descoberto anos antes por indicação do Spotify. Ele tinha exatamente o que ela gostava nos novos músicos do gênero country: uma mistura com o pop, letras que a deixavam nostálgica por situações que nunca vivenciara, a voz grave e, de quebra, aquele sotaque tortinho do interior do Oklahoma. Mas Zack ainda não havia se destacado para ela dentre as outras dezenas de artistas que crescera escutando. Não até o dia em que o mundo desabou.

Alice chegara no apartamento vazio no fim da tarde, vestida de preto dos pés à cabeça, e, depois de alguns minutos sentada no sofá da sala com os olhos fixos na parede, o celular vibrara em sua mão. Era uma atualização em seu YouTube, que ela normalmente deixaria passar, mas naquele momento não tinha absolutamente nada melhor para fazer a não ser assistir. Apenas pensar em se levantar do sofá já demandava forças demais. Deu play no vídeo do que deveria ser uma música nova, chamada No matter where[1], e estava chorando com o coração na garganta logo no primeiro minuto.

As coincidências nunca mais pararam de acontecer. Parecia loucura, mas tinha certeza de que ele conversava com ela sempre que acordava sem vontade de sair da cama e lá estava uma foto nova dele no Instagram, com um sorriso enorme e uma legenda carregando a letra de alguma música country inspiradora. Ou quando ela estava na frente do computador, procurando uma passagem que a levasse ao fim do mundo durante o mês de dezembro, e ele lhe contara que estaria por perto, ali mesmo na América do Sul. Havia ficado mais do que claro que a única coisa que ela precisava fazer era ir até ele, abraçá-lo e agradecê-lo pela companhia que ele lhe dera no último ano. Era uma das poucas que aceitava.

Antes de Zack aparecer, Alice não conhecia o significado de ser fã de alguém. Ela gostava do estilo que dividia com o pai desde sempre, mas não conhecia a fundo nenhum artista. Não sabia como era passar horas conversando sobre música até conhecer Dani em um fórum muito parado em seu site oficial; não sabia como era a espera de meses para ter em mãos um CD que só era possível conseguir caso importasse. Agora havia feito uma melhor amiga que dividia sua paixão por ele e, naquele momento, carregava na mochila os encartes de todos os CDs que ele gravara – fosse com uma banda que havia acabado ou para projetos solo que nunca foram para frente. Com um pouco de sorte, conseguiria que ele os autografasse. Era tudo o que queria, mas também era difícil convencer Rafa de que tudo isso era verdade. Ou encontrar as palavras certas para tentar.

Rafa gostava de Sebastian Davies, mas não tinha grande ideia do que era ter um ídolo. Até havia pensado em ir consigo no show de São Paulo, mas desistira da ideia quando Alice falara sobre a pista premium. Os ingressos não eram os mais baratos, então houve uma pequena discussão por alguns dias que antecederam o início das vendas: por que inferno não podiam assistir um pouco mais de longe?

Enquanto Alice tentava explicar que precisava ver Zack e ficar perto dele ao menos um pouco, mesmo que o perto estivesse apenas em sua percepção de proximidade com o palco, a cabeça de Rafa não conseguia processar completamente essa informação. E Alice queria, se esforçava, mas não conseguia simplesmente dizer que precisava tentar ficar perto dele para que talvez o mês de dezembro passasse indolor – se é que isso seria possível.

Nunca conseguira contar a Rafa essa parte da história. Sua pequena habilidade social havia diminuído ainda mais nos meses que decidira passar sozinha, em que afastara as poucas amigas da faculdade e não atendia aos telefonemas dos parentes que se importavam em ligar. Havia encontrado algum refúgio em Dani, talvez porque ela fosse um pedaço de Zack de certa forma, ou talvez porque fosse mais fácil desabafar quando ela estava do outro lado do computador, tão distante daquela vida sem sentido que Alice vinha vivendo. Dani sabia de tudo, mas a única coisa que havia dito para Rafa, com muito esforço, era que o pai havia morrido no dia dezesseis de dezembro.

Então houve o momento em que Alice estava quase pronta para concordar em assistir a um único show de longe, mesmo que fosse o último show da turnê, aquele em que ela deveria querer ficar mais perto – com exceção do show do próprio dia dezesseis –, porque Zack logo iria embora. E assim Rafa havia entendido que aquela não seria a única apresentação a que Alice iria. No começo, havia dado risada e dito que precisavam conversar sobre essa ideia de ela viajar tanto, de ficar longe durante semanas para ver um cara qualquer.

Mas o termo cara qualquer havia mexido com uma parte que Alice não conhecia dentro de si mesma. Como se Zack de fato fosse um cara qualquer! Como se a decisão de usar seu dinheiro para sair pela América do Sul não fosse apenas dela! E quando Alice dera a entender que a decisão já estava tomada, que as passagens estavam compradas havia dias, antes mesmo da venda dos ingressos, nunca mais conseguiram conversar sobre isso. Ainda se viam, mas evitaram o assunto por meses. Até a data da viagem começar a se aproximar e Rafa decidir desaparecer por duas semanas para reafirmar sua insatisfação.

A primeira mensagem que Alice recebeu de novo havia chegado pela manhã. Talvez por isso, como troco para aquele sumiço idiota, quando ela desligou o celular no aeroporto de Guarulhos, havia acabado de enviar uma frase mal pensada:

Zack veio antes de você. Um dia, você vai embora e quem vai ficar ainda é ele. Então é melhor você não querer competir com o que não pode.

Agora admitia que havia sido dura, porque seu celular vibrava com vinte mensagens seguidas enquanto religava. Dezenove delas eram de Rafa, e Alice não queria ver tão cedo o que diziam, porque talvez a culpa daquilo tudo realmente fosse mais sua do que de Rafa desde o começo. A mais recente era de Dani, recebida cinco minutos atrás:

Me diz que você tá no aeroporto! Seb tá no desembarque atendendo os fãs! Vai atrás do Zack agora!

 

[1] Não importa onde


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