Ferrorama escrita por Matheus Braga


Capítulo 1
Capítulo único




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A locomotiva corria pelos trilhos sem temer o que estava pela frente. Firme, intrépida, confiante. O bater constante dos containers nos vagões era ritmado, um som agradável e estimulante que parecia ecoar por todo o ambiente ao redor. O som dos eixos trepidando ao passar por cruzamentos e desvios era suave como música. O pequeno Ferrorama vermelho avançava orgulhosamente pelo traçado, seus faróis acesos iluminando os postes, a ponte, a cancela adiante, refletindo no cromo dos trilhos como feixes de energia.

O anúncio na caixa prometia: Você comanda esta fantástica viagem pelos circuitos da emoção. E ele comandava mesmo. Aquele trem estava sob o comando dele. Enquanto observava a locomotiva fazer voltas e voltas ao longo dos trilhos, era ele quem fazia os desvios, era ele quem abaixava a cancela, era ele quem dava o comando de retorno ao trem.

Ele era o maquinista.

Para muitos, aquilo poderia ser apenas um trenzinho a pilha. Um brinquedo divertido, porém descartável. Apenas isso. Mas não para ele. Aquilo era um Ferrorama. Aquilo era o seu mundo. Sua paixão. Seu escape. Ele amava inspecionar os trucks da locomotiva, os engates dos vagões, os sinaleiros, a cruz-de-santo-andré. Ele se via ali, dentro do cenário, dentro da locomotiva. Ele era o maquinista.

A composição passou por um entroncamento e apitou, avisando que logo chegaria à cancela. Ele adorava aquele som. Sinos batendo, batendo, batendo, anunciando a chegada do trem. Vê-lo surgir na curva ao longe com as luzes amarelas acesas, aproximando-se rápido, ouvir suas engrenagens rangendo, tudo isso era incrivelmente extasiante. Vê-lo passar como um foguete pela cancela, seguindo adiante sem receio de obstáculos, ouvir o bater dos containers contra a chapa dos vagões, sentir o deslocamento de ar causado pela locomotiva, tudo aquilo era incrivelmente libertador.

Vento...

Aquilo foi o trazendo de volta à realidade.

As luzes amarelas que ele via ao longe não eram os faróis de seu Ferrorama. O bater constante que lhe enchia os ouvidos não era o sino da cancela. O vento que lhe fustigava o rosto com tanta suavidade não tinha nada a ver com a passagem do trem.

Ele piscou, aturdido. O efeito dos remédios parecia estar passando, e ele não queria perder aquela visão. Era com o seu Ferrorama que ele queria estar. Ele o amava, era seu brinquedo preferido. Queria estar apenas com ele.

E não ali, no alto daquele parapeito. As luzes amarelas desfocadas que ele via eram os postes da rua, dezenas de metros abaixo. O bater constante que ele julgou ser da cancela se fechando, na verdade, era das viaturas encostando sobre o meio-fio, lá embaixo. E o vento que lhe acariciava o rosto, por algum motivo ele percebeu, provinha das pesadas nuvens de chuva que pairavam acima do prédio. Tudo parecia borrado, fora de seu lugar, como um pião que gira descontroladamente sobre um disco arranhado. Era tudo surreal, tudo diáfano.

A voz do homem barbudo ainda ecoava em sua cabeça.

Esse trenzinho é coisa de criança! Coisa de criança! Olha só o que eu faço com ele!

E a pequena locomotiva vermelha foi jogada ao chão, partindo-se ao meio, para em seguida uma pesada bota preta descer sobre ela e terminar de estraçalhá-la. E junto com ela, caíram as lágrimas. Quentes, volumosas, pesadas. Extremamente dolorosas. Pedaços vermelhos para todos os lados, sangue vermelho escorrendo do machucado no rosto dele, a visão avermelhada por aquela dor... Em seus 10 anos de vida, nunca havia sentido uma dor tão grande. Nem mesmo a que seguiu àquilo.

Agora vou te ensinar o que um homem de verdade faz, o homem barbudo havia dito, abaixando-lhe a calça e virando-o de costas.

E ele sentiu um ardor imenso. Impactos fortes e constantes do homem contra suas costas. Sentiu-se sendo invadido, violado. Sentiu-se morrendo. Seu corpo estava ficando úmido e morno, seus olhos embaçados e seu campo de visão misturando as cores como num borrão, sua cabeça anuviada como algodão maciço, e... sem saber exatamente como, ele fugira. Ou talvez o homem barbudo houvesse desistido dele. Talvez. Tudo que ele se lembrava era de correr loucamente, dolorido e suado, pegar várias caixas de remédios e tomar todos na esperança de sumir com aquela dor, e subir as escadas em disparada até parar naquele parapeito.

Tudo doía. Tudo era perturbador. Aquilo não podia ser real. Ele fechou os olhos e procurou se concentrar apenas... no Ferrorama. No clangor ritmado que os trucks faziam ao passar pelos desvios. No suave balançar da composição nas curvas. No som do apito, alto, potente, enquanto a locomotiva anunciava sua chegada. E, principalmente, nos faróis. Os dois faróis amarelinhos no alto da locomotiva vermelha. Os dois faróis que iluminavam aquela escuridão que se abatia sobre a alma dele e pareciam apontar a direção correta a seguir. Sem receios, sem vacilos, sem hesitação. Entreabrindo os olhos e divisando os dois pontos de luz amarela embaçada lá em baixo, ele soube. Ele soube que seu lugar era junto ao seu amado Ferrorama. Juntos, imersos num mundo ferroviário imaginativo e infinito.

Afinal, ele era o maquinista.

Abrindo as mãos, ele se soltou do parapeito. Por um instante ele sentiu como se pudesse voar. Seu corpo leve, liberto, como se pudesse brincar entre as nuvens. Ele sentiu o vento aumentar e viu as luzes amarelas lá embaixo se aproximando rápido, cada vez mais rápido. Mas ele sabia: era seu Ferrorama se aproximando.

Estava voltando para ele. Firme, intrépido e confiante. Aquilo colocou um último sorriso em seus lábios. Sua tão aguardada viagem pelos circuitos da emoção.


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