Bella Ciao escrita por Nanquim


Capítulo 1
Bella Ciao




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O sol ainda nem havia nascido, e ele já estava de pé.

Parado diante da janela, Ted acendeu mais um cigarro, em silêncio. Os olhos castanhos estenderam-se por sobre o pequeno bosque perto do horizonte, o laranja lambendo o céu ainda escuro como chamas. Algumas nuvens pairavam por perto, pequenas sobreviventes da tempestade da noite anterior. Extensas poças de lama estendiam-se pelo quintal, e a grama curvava-se levemente sob a brisa suave que as fazia sussurrar. Apagou o cigarro antes que a fumaça entrasse no quarto.

A Marca Negra estava mais perto.

Ele a havia avistado na noite anterior, antes de ir dormir. Apenas uma pequena mancha esverdeada no horizonte, longe demais para fazer mal. No entanto, agora estava um pouco mais perto, e era possível distinguir os contornos da caveira, de sua mandíbula aberta, da cobra que entrava e saía lentamente, preparando-se para dar o bote.

Ele sabia porque estavam ali. Ele sabia e não iria permitir que isso acontecesse.

Una mattina mi son svegliato,

O bella, ciao! Bella ciao! Bela ciao, ciao, ciao!

Voltou-se lentamente para o quarto, os olhos fechados, impedindo-se de olhar a cama. Rumou para o armário e, abrindo os olhos, sem fazer um som sequer, pegou a mochila com o feitiço de expansão que havia criado quase três anos antes. É claro, já havia ali o básico, mas ele ainda assim abriu o guarda-roupa e jogou mais algumas de suas roupas mais confortáveis. Pegou também mais um par de botas além das que já havia vestido.

Ia pegar cigarros, também, mas alguma coisa o parou.

O pequeno gemido que acompanhou o ranger do estrado da cama.

Edward Tonks virou-se para a esposa, esperando vê-la sentada de braços cruzados com o rosto sério em uma expressão de repreensão e mágoa. Mas não.

Andrômeda ainda dormia, calma e serena como um anjo. Os volumosos cachos castanhos espalhavam-se pelo travesseiro branco. A pele clara contrastava-se com a camisola cinza, os lábios vermelhos e inchados curvados no mais leve dos sorrisos, seu corpo contorcido languidamente como um convite.

Oh, Andrômeda.

Una mattina mi son svegliato

Ed ho trovado l’invasor.

Edward Tonks olhou-a por longos minutos, encostado contra a parede, esquecido do resto do mundo. Deixou que a mochila caísse aos seus pés com um baque seco e quase inaudível, seus olhos percorrendo delicadamente as dobras da camisola, as pequenas sardas de seu corpo, sua postura calma, tão entregue aos braços de Morfeu...

Não pôde evitar um sorriso triste ao admirá-la. Pensou em acordá-la para avisar que estava indo, despedir-se propriamente. Mas não. Isso só tornaria as coisas mais difíceis e dolorosas.

Ela o perdoaria por ter partido aos primeiros raios da manhã, sem aviso prévio ou bilhete de adeus.

Ele, jamais.

O partigiano, portami via

O bella ciao! Bella ciao! Bella ciao, ciao, ciao!

Abriu a porta e passou ao corredor vazio. Fotos em preto e branco pendiam das paredes descascadas, cenas ainda móveis de memórias antigas que jamais voltariam. De tempos mais simples em que dois adolescentes de dezoito anos fugindo de casa realmente poderiam enfrentar o mundo.

Oh, ele queria que o maior de seus problemas fosse Bellatrix Lestrange.

Permitiu-se permanecer no corredor por alguns segundos a mais, fitando a porta escura e entreaberta à sua frente. Podia ver o pé da cama, o cobertor jogado para longe, um dos pés de Dora estendidos; era capaz de retratá-la perfeitamente em sua mente, uma garotinha de nove anos com cabelos azuis, os braços jogados ao lado de sua cabeça, o travesseiro caído no chão, uma perna estendida, a outra dobrada para cima, um dragão de pelúcia lhe fazendo companhia.

Mas Dora não era mais uma garotinha de nove anos.

E não era um dragão de pelúcia que lhe fazia companhia.

O partigiano, portami via,

Ché mi sento di morir.

Adentrou o quarto da filha com cuidado, para não acordá-la.

Estava, de fato, esparramada. Um dos braços jazia jogado sobre o tórax, enquanto o outro estava erguido sobre a cabeça. Seus olhos estavam fechados com calma, as pernas arrepiadas de frio estavam nuas, e a camisa gasta só ia até suas coxas. O cabelo estava castanho, encaracolado e cheio como o da mãe. Deitada tão calmamente nos braços de Remus, ela parecia um retrato de Andrômeda, uma cópia perfeita de 25 anos antes.

Porque, é claro, ele estava lá.

A fina cicatriz que cortava seu rosto parecia desaparecer com sua expressão calma. De peito nu, ele a envolvia ternamente em seus braços, tão calmo quanto ela, imerso no sono tranquilo de ter alguém com quem dividir a cama.

Ted ainda não conseguia acreditar que eles estavam noivos, mas, é claro, Dora sempre sabia o que queria, e ele nunca fora capaz de impedi-la de fazer o que quer que fosse. Ternamente, beijou a testa da filha e cobriu-os novamente com o pesado cobertor.

Saiu, fechado a porta às suas costas.

E se io muoio da partigiano,

O bella ciao! Bella ciao! Bella ciao, ciao, ciao!

Desceu as velhas escadas de madeira ouvindo-as ranger baixinho. Permitiu que seus dedos calosos percorressem os corrimãos empoeirados e sentiu o familiar cheiro de carvão que vinha da lareira.

Sabia que devia ir logo, que os Comensais não ficariam dormindo para sempre, mas não podia se dar ao luxo de fugir de estômago vazio.

Ainda não tinha coragem suficiente para abandoná-las, a verdade era simplesmente esta.

Pegou todos os salgadinhos e tipos de comida que não precisariam de geladeira. Fez torradas e dispensou a geleia. Encheu um copo de suco de laranja e colocou um pouco mais de açúcar. Acendeu um cigarro e deixou-o queimar na janela enquanto comia.

Tragou no beiral da porta, olhando o portão de madeira velha, e soprou a fumaça fina e cinza que foi levada pelo vento.

E se io muoio da partigiano,

Tu mi devi seppellir.

Morava naquela casa desde os dezoito anos.

Havia se mudado para lá com Andrômeda no fim da escola. Apenas as pessoas mais próximas sabiam onde estavam indo, caso precisassem de alguma coisa. Era para ser algo temporário, só até as coisas se acalmarem com os Black.

Então, Cygnus matara seus pais. Voldemort cresceu. Dumbledore fundou a Ordem da Fênix... E Ninphadora nasceu.

Ele ainda podia vê-la correr pelo quintal. Sentar-se à mesa da cozinha para estudar depois do almoço. Adormecer com a cabeça em seu colo enquanto assistiam alguma coisa na televisão e tomavam chocolate quente.

Doces memórias de um tempo onde as coisas não eram tão complicadas e ele sabia que podia lutar contra o que quer que fosse para ficar ali.

Mas agora... Agora ele tinha duas escolhas. Nenhuma delas era fácil, mas apenas uma era certa.

Apagou o cigarro no batente e jogou-o distraidamente na lareira com o resto das brasas que ainda queimavam.

E seppellire lassù in montagna

O bella ciao! Bella ciao! Bella ciao, ciao, ciao!

Uma pequena parte de si mandou que subisse. Que voltasse para o quarto e entrasse sob os lençóis. Uma pequena voz em sua mente insistiu que aquilo era loucura, que ele iria se arrepender daquilo tão amargamente.

Suas pernas quase a obedeceram e o levaram escada acima de novo.

Mas não. Ele não podia voltar, porque se entrasse no quarto e a visse novamente... Oh, ele não a deixaria jamais.

Ele tinha de deixá-las. Não podia permanecer ali. Era perigoso. O Ministério estava caçando os trouxas de nascença, e ele estar ali era o mesmo que iluminar a casa inteira com luzes neon e um aviso “por favor, venha nos matar!”.

Não. Não, tinha que partir.

Não podia continuar ali e colocá-las em perigo por simples e puro egoísmo.

Não seria justo.

Mas então, por que era tão difícil?

E seppellire lassù in montagna,

Sotto l’ombra di um bel fior.

— Você pode encarar para sempre; ela não vai desaparecer.

Remus tomou mais um gole de café quando Ted o encarou.

Ele estava certo, é claro.

Cada segundo a mais que passava ali era um segundo a menos de vantagem sobre os Comensais. Era um segundo a mais que se aproximava de uma morte em vão, sem significado e sem essência, apenas um trouxa morto, uma pecinha a mais no grande quebra-cabeça da limpeza mundial de uma raça inferior e imunda aos olhos do Lorde das Trevas.

Ajeitou a mochila no ombro, desejando poder ir até aquele acampamento e socá-los um por um. Destruí-los. Queria poder fazer alguma coisa.

Mas tudo o que podia fazer era fugir e se esconder, abandonar sua família como um covarde.

Mais um trouxa se escondendo do destino inevitável que certamente o aguardava se não de imediato, dali a alguns meses.

E le genti che passeranno,

O bella ciao! Bella ciao! Bella ciao, ciao, ciao!

Suspirou. Passou a mão pelo batente de madeira, desesperadamente desejando que Andrômeda acordasse. Que viesse até a porta e ralhasse, o puxasse para dentro, o impedisse.

Queria ter o direito de levar uma última bronca.

Acendeu um último cigarro, prometendo a si mesmo que seria de fato o último. Esperava apenas um pouco mais de coragem para abandonar mais uma família à própria sorte.

Sua mãe costumava dizer que o que quer que tivesse de acontecer, aconteceria. Talvez isso servisse de consolo.

Pensou se ela o odiava. Se, em algum momento, ela ou seu pai, ou mesmo Lucas, o haviam amaldiçoado e pensado que estavam melhor sem ele. Pensou se eles o haveriam perdoado, ou se haviam morrido pensando que aquilo era sua culpa.

Como poderia deixar que algo assim acontecesse com elas, também?

E le genti che passeranno,

Mi diranno “che bel fior!”

Olhou para Lupin mais uma vez, seus olhos procurando nele alguma coisa de Dora, algum tipo de garantia que ela o perdoaria. Procurou no lobisomem algum sinal que o permitisse vê-lo como realmente seu genro, mas isso ainda lhe parecia tão absurdo...

A aliança dourada retiniu contra a caneca.

Os olhos azuis de Remus o encontraram naquela busca desesperada. A cicatriz em seu rosto nunca fora tão aparente. Ele parecia desesperadamente velho.

Ainda assim, ele era a única pessoa por quem Dora já havia suspirado. Isso tinha de significar alguma coisa.

— Se tiver de ir, Ted, vá. – ele murmurou – Ficar aqui só tornará tudo mais difícil para você.

Bem, ele estava certo.

Fazer a coisa certa. Ele tinha de fazer a coisa certa.

Soprou a fumaça e deixou-a desaparecer na brisa.

“È questo il fiore del partigiano”

O bella ciao! Bella ciao! Bella ciao, ciao, ciao!

Apagou o cigarro no batente e pela última vez observou a sala vazia.

Tirou a jaqueta e deixou-a sobre a poltrona, casualmente largada como se esquecida.

Ouviu o tinir da caneca na pia e os passos de Remus escada acima.

Colocou o chapéu e ajeitou a mochila nas costas.

Deixou o isqueiro no cinzeiro ao lado do sofá e pela última vez virou as costas à sala.

Então saiu de casa e Edward Aaron Tonks desapareceu no horizonte alaranjado.

“È questo il fiore del partigiano,

Morto per la libertà!”.


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Notas finais do capítulo

Quase ninguém fala do Ted e da Andrômeda, mas eles são o melhor casal dessa série.
Podem me xingar, chorar ou elogiar nos comentários, eu deixo XD
Para quem não entendeu o porquê dessa música, eu expliquei meio por cima nas notas da história. E tem a tradução dela aqui: https://www.letras.mus.br/banda-bassotti/1080528/traducao.html



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