Catarina estava, como de costume, folheando um livro no balcão da biblioteca enquanto alguns visitantes liam ou usavam os computadores. Ela escondia-se em O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, que é outro nome para Fernando Pessoa, com intuito de distrair-se do mundo real e das mágoas que enfrentava. Foi, nesse momento, que uma voz grossa lhe chamou a atenção. Fechou o exemplar imediatamente, imaginando que seria algum leitor qualquer, porém a surpresa ficou estampada no rosto.

—S-senhor... — gaguejou com o esforço que fazia para não ficar evidente que havia reconhecido aquele homem. — Seja bem-vindo! Veio devolver alguma obra?

—Catarina, eu sabia que era você! — Ela bufou. — Enterrada nesse...

—Livro, isto é um livro, Afonso. Diga o que quer.

 Afonso Gomes da Silva Dias. Esse era o nome do ex marido de Catarina, a pessoa com a qual planejara construir uma vida e ter uma família, sonho este que terminou ao nascer Manuel e o antes “príncipe encantado” se transformar em um sapo que se distanciou o máximo possível. Pagava pensão, isso era verdade, no entanto jamais havia feito uma visita ao próprio filho.

 Catarina não acreditava que agora, depois de tanto tempo, estava frente a frente com aquele incompetente. Respirou fundo para não o esbofetear.

—Não precisa ser grossa, Cat. — O uso do apelido não foi nem um pouco bem recebido. — Você emagreceu, achei que ficaria gorda para sempre depois da gravidez.

—Se está aqui para me assediar, eu recomendo que desista. Chamarei a polícia sem hesitação.

—Isso foi um elogio, mas vejo que você se tornou uma dessas feministas mimizentas que não podem ouvir nada e já falam "assédio!", "assédio!". — A bibliotecária suspirou. Como um dia se apaixonara por aquele espécime de ser?

—Vou convidá-lo para se retirar pela última vez, Afonso.

 O homem deu um sorriso amarelo e insistiu em um diálogo por mais alguns minutos, porém os seguranças da biblioteca logo perceberam algo de errado e se aproximaram. Ao ver a movimentação, o progenitor de Manuel se despediu e foi embora.

 Catarina suspirou emburrada e surpresa com a quantidade de coisas ruins que estavam ocorrendo naqueles últimos dias. A doença de sua mãe, a falta de resposta ou, no melhor “internetês”, o vácuo, recebido por seu destinatário e, agora, a aparição desprezível de Afonso, lhe soavam como uma espécie de punição do Universo por algo.

 Contudo, apesar da manhã e tarde péssimas, o dia parecia empenhado em lhe trazer a nostalgia das coisas que aconteceram antes da chegada de Pitoco. A carta recebida exatamente um mês e vinte e quatro horas após o envio das epístolas ostentava as seguintes palavras:

 Raiz Bela, Rio de Janeiro, 30 de Julho de 2018

 Querida Catarina,

 Devo começar pedindo perdão pela demora em lhe dar a merecida atenção. Não sou uma pessoa exatamente atarefada e tive, de fato, tempo para ler e reler várias vezes o que me escreveu. A questão é que a profundidade das palavras despertou algo em mim e não sabia como te responder.

 Decidi, então, que não deveria efetivamente fazê-lo. Acho que seus escritos são tão completos sozinhos que seria um ato criminoso dá-los qualquer complemento (e também estão em quantidade exagerada para uma pessoa só). No entanto, você merecia que eu desse qualquer sinal de vida, por isso, aqui estou agora, como estive há anos e sempre estarei. O Rio de Janeiro é minha pátria e, embora Raiz Bela nunca tenha sido o lugar com o qual eu sonhava para envelhecer, esta cidade é bastante agradável, tem me servido bem até o momento.

 Você está em desvantagem, porque eu sei quase tudo a seu respeito pelo que foi lido. Então, pergunte-me o que quiser e terei prazer em te escrever mais.

 Com o carinho do seu caro Juli”.