Nuance das Aparências escrita por Gatsu


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

E o bom homem a casa retorna.



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Às aparências, minhas condolências

“E digam ao homem que assim se fez o seu último desejo. E, por ele ser o que é, não por mero capricho. Este homem, meus confrarias, nos salvou da morte certa dando sua vida por aqueles que aqui ainda usufruem do ar. Matar monstros, eliminar tais criaturas obscuras, deveria ser uma dádiva, não um fardo. Pois assim deve ser dito: deem aos bruxos o que é deles por direito.”

Da Colonização do Continente, arredores de Teméria, séc. I.

“Os desacreditados Gatos. São bruxos, mas falidos. Mutações falidas. Lunáticos, psicopatas e sádicos.”

Jaskier

A manhã veio rápido.

E, como sempre, a primeira coisa que ouviu foram as crianças. Uma tempestade azulada numa forma inusitada e inocente de cacofonia, envolvidas numa brincadeira cujas regras eram um mistério. Endiabradas, corriam ensandecidas de um lado para o outro, de um lado para o outro, como uma manada desenfreada de búfalos. Aguçou a audição, seguindo o rastro através do corredor.

Se as crianças eram uma cacofonia, o salão comunal era um algazarra de bordel numa sexta à noite. O Caminho do Bruxo estava lotado. Abarrotado. São mascates. Vindos de Ebbing. Sabia porque distinguiu os sotaques, e não só por isso, mas o solavanco que causava o arrastar de mercadorias e o cheiro almiscarado de especiarias. Alguns tartamudeavam entre si; outros, no entanto, bradavam a plenos pulmões, na esperança, de certo, de que toda Mahakam os ouvisse. Dianara estava lá também, envolvida na correria do dia-a-dia, dispensando pratos e recebendo pedidos.

Às vezes, o silêncio seria uma maldição que eu pagaria para ter.

Quando deixou a presença de Dianara na noite anterior, não sabia ao certo o que pensar. Nenhum dia se quer eu pensei em como ela estaria, em como estaria mudada com o passar dos anos. Muitos foram os ciclos, da primavera ao outono, e os anos depois do término da guerra foram particularmente ruins. Desgraças por todos os lados. Sangue e mentiras. Não teve tempo para pensar em nada além de si mesmo; pior, seria mentira dizer que sentiu saudades da presença da própria irmã. Foi como uma vez Ulvar me disse: sentimentos nulos, feitiçaria. Mutagênicos à flor da pele e muita putaria.

Virou o rosto, seguindo a melodia repentinamente desagradável dos pintarroxos.

Todas as manhãs pareciam se repetir desde que deixara Kaer Morhen, exilado e desarmado, e seguira para a Cidadela de Stygga, ainda nos primórdios dos tempos em que homens lutavam por cada palmo de terra contra os monstros do Continente. Eram dias deprimentes, infernalmente iguais, sem mudanças aparentes ou roteiros indefinidos. Dias que o arrastaram até ali, até Amores. Parece outra vida. Só o perigo inerente da profissão o acompanhara durante todo esse tempo, constante como um punhal contra o pescoço, todos os dias e noites sob o véu obscuro do incompreensível. Sob a redoma intangível do Destino.

Até entre os bruxos.

O fato de ser cego não só prejudicava, mas tornava tudo mais perigoso. Uma falha como bruxo. Foi o que fora dito naquela fatídica noite, diante de tantos olhares julgadores, dentre tantas vozes quietas. O fim parecia tão inevitável naquela época que respirar agora parecia uma dádiva dada pela fé em ninguém mais do que si mesmo. Tempos imemoriais. Palavras de homens que do pó vieram e ao pó voltaram ecoam em minha mente. Palavras vazias. Palavras de cadáveres.

Palavras são vento.

“Entre.” – disse, antes mesmo da batida.

Alguns segundos depois, ouviu a batida na porta.

Uma criança catarrenta entrou, no auge dos seus incontáveis dez anos.

“O in... inten... o intendente, senhor.”

O bruxo podia escutar muitas coisas, grande maioria delas irrelevantemente insuportáveis, mas havia poucas coisas que não queria ouvir.

Uma criança era uma delas.

XXXXXXXX

O interior da caserna fedia a bota suada, café requentado e a algum cheiro não identificado, decerto, há alguns meses, onde deveria ainda restar o odor melancólico da resina. O aquartelado, parcialmente escondido por entre a prefeitura e o almoxarifado, era um minúsculo centro administrativo militar sob a casa da guarda, improvisado dada a recém construção de Amores.

O bruxo seguiu com a criança para dentro.

Dúzias de mesas arredondadas parcamente iluminadas pelos candeeiros escondiam na escuridão as sombras ocultas de cavaleiros rivianos. Quando entrou, todos os olhos seguiram para o bruxo. Todos armados, trajando as vistosas cores de Rívia. O bruxo ignorou os murmúrios, seguindo junto ao moleque para o balcão. Sob os vapores de vinho que guardavam incertezas, Reksandr de Novigrad, com determinada frieza, aguardou. Alguns dos ousados desprendiam-se da razão e cravavam sua atenção com determinada convicção nos mais singelo dos movimentos feitos pelo bruxo. Outros, no entanto, pareciam ter nascido com o dom da sabedoria, e pareciam não ter interesse em puxar uma briga com um matador de monstros. Estes últimos, ainda assim, não largavam de mãos as empunhaduras das espadas.

“E quem o gato trouxe à minha porta? Sim, mais um Gato.” – disse alguém.

O bruxo virou-se propositalmente devagar, seguindo o rastro azulado deixado pela voz possante.

Não conseguia ver, mas se pudesse daria de frente com um intendente. Era um homem pequeno, tão pequeno que poderia ser facilmente confundido com um anão. Cheira a alcatrão e vodka barata. Se era um funcionário público de Rívia não se parecia com um: trajando cores carcomidas de tons infinitos de marrom, usava um gibão à Novigrad, sem adornos ou babados, simplório e simplista como um coveiro real.

“Peço perdão pela interrupção logo de manhã. Cogitei ir até Caminho do Bruxo, mas...”

“Está um caos.” – adiantou-se Reksandr, imóvel como pedra.

“De certo modo.” – condescendente, o intendente observava todos os aspectos do bruxo.

“Presumo o porquê de chamar a um reles bruxo para a caserna municipal e não para aposentos dentro da prefeitura.”

“Julga tão facilmente assim as intenções das pessoas que nem conhece?”

“Como bruxo, devo julgar.” – Reksandr ergueu os olhos cegos – “O mundo é o que é. Pouquíssimos são os homens que se mostram propícios a uma conversa amigável com os da minha casta sem preparar um punhal. Alguns dentre estes poucos, ainda, dizem preferir terem à sua presença um leproso a um matador de monstros.”

“Pois você julgou este homem aqui erroneamente, meu camarada. Acreditando, como estes mesmo homens que cita, no pior dos piores entre a nossa raça. O que faz de você, meu caro, não muito diferente deles. Sim, nossa raça, pois você não deixa de fazer tudo o que um homem comum faz só por ser um mutante. Ainda caga, ainda trepa e ainda faz aquilo que todo homem despreza fazer mas continua fazendo: ainda mata. Sejam monstros horripilantes, como um bexiguento coxo armado com um estilete, ou sejam monstros não tão horrendos assim, como quiquimoras. Então, senhor bruxo, antes de executar seu prejulgamento e moldá-lo à custa de um entendimento pífio, reveja suas próprias visões. Pois ainda resta esperança entre nós. Nós dois, pelo menos.”

Reksandr, pego de supresa, ficou em silêncio.

“Então é isso.” – disse por fim.

O intendente abriu um sorriso caloroso repleto de sinceridade e bafo de vodka.

“Mas não fique encabulado. Chamei-o aqui para tratar de negócios.”

“Sou todo ouvidos.” - respondeu Reksandr.

“Pois bem, mas não aqui. Vamos entrar. Phey! Prepare um aperitivo picante e mande duas barricas de vodka para minha sala. Dê uma sova no menino como presente por seus serviços. Se alguém me procurar diga que estou tendo uma conversa com um leproso!”


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