Nuance das Aparências escrita por Gatsu


Capítulo 1
Capítulo 1




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O Bruxo de Novigrad

 

 

O bruxo chegou de madrugada.

E como se sabia que era um bruxo, você pergunta? Eis a resposta: não se sabia. O homem era alto, tão alto como uma tora de madeira-brava, e trazia duas espadas às costas: uma de bainha de couro, larga como um bom ferro deve ser. A outra, de bainha negra como piche e empunhadura ornamentada, era trabalho de qualidade, pois entendo de espadas. Além disso, como todos sabem, só bruxos carregam duas espadas. Mas aquele bruxo era um desconhecido, muito diferente dos lendários Geralt de Rívia ou Lambert, que figuram em milhares de contos oníricos.

Não. Não, não… aquele bruxo… era apenas um bruxo. Um matador de monstros.

E foi com a espada de monstros que ele ficou conhecido. É por isso que conto o que se passou no terceiro ano após o fim da guerra. Três anos, duas semanas e dois dias após a batalha decisiva em Brenna. Anos depois do desaparecimento de Geralt de Rívia e Yennefer de Vengerberg.

Mas voltemos a aparição do dito cujo, pois esse conto trata dele.

Eram tempos sombrios, aqueles. Pairava sobre nossas cabeças nortelungas o incessante clima da guerra e, junto com as cavalgadas da Caçada Selvagem que traziam prelúdios de morte, a presença sutil da espionagem. Cada beco, cada viela, cada taverna... empestadas por agentes dos serviços secretos de todos os reinos do Norte. Um homem comum tinha que amordaçar a língua dada a situação até então vigente. Um inumano, torcer para não falar dois coelhos e ser acusado de traidor.

Nem quando os Negros atravessaram o Jaruga e fizeram uma blitzkrieg as coisas estavam tão tensas. Junto aos agouros da guerra, vieram os anos sombrios da perseguição e a caça aos inumanos considerados traidores. O massacre de Rívia, onde Geralt foi visto pela última vez. O progom de Hagge, anos mais tarde. Radowid V, Rei de Redânia, aproveitando sua caça às bruxas, adequando seus inquisidores para seus próprios interesses. Nesse meio tempo, Foltest de Teméria lidou com uma rebelião em Mahakam, que insurgiu por conta da constante pressão aristocrática, assim como os anões em protetorados como Ellander. Teméria, nos anos seguintes, se veria mergulhada em massacres. Sangue corria em Wyzim, Tretogor, Gors Velen e no famigerado forte Drakenborg.

A morte nunca foi tão abundante nos reinos do Norte.

Mas a história que conto aqui não se resume à política nortelunga. Aquele bruxo chegara numa madrugada fria de outubro. Soturno e calado, estava a procura de trabalho. Já tinha um contrato em mente, mas não custava nada acreditar que encontraria outro. Como eu disse, dada situação até então vigente.

Estava em uma povoação aos pés do Monte Carbon. Era chamada Amores e tinha o cheiro característico das vilas reconstruídas: resina, cavalos e alcatrão.

 

 

Desmontou aos pés dos portões desguarnecidos e conduziu a égua, negra como mortalha, pela ruazinha. O silêncio da madrugada preenchia a praça central. Ratazanas lutavam com os gatos pelo controle dos ocultos montes de lixo, corvos se alinhavam sobre as venezianas e telhados, empoleirados como noiteabrós, ocos e frios como o próprio bruxo que seguiam. Testemunhas de vítreos, espiando toda escuridão cadavérica de Amores. Não se veria vivalma aquelas horas se não fosse pelos mendigos e cachorros, ambos ladrindo para o bruxo como se vissem uma aparição, um fantasma.

E de certo modo não estavam errados.

A estalagem Caminho do Bruxo ficava no final do lugarejo e foi para lá que o bruxo foi. Munido de sua aparente indiferença, seguiu para as estrebarias. Amarrou as rédeas da égua junto aos estábulos e jogou um ducado de prata para o cavalariço que roncava abertamente sobre um monte de feno molhado.

O interior do estabelecimento de nome pitoresco cheirava a hospitalidade, guisado e rum. As mesas estavam vazias, o salão comum não tinha um pé de gente. A ladeira estalidava sob os olhares sapientes de um gato cor de  caramelo que, repentinamente incomodado com a presença do bruxo, saltou da cadeira que estava e foi correndo para a cozinha. O matador de monstros se aproximou do galpão, fazendo tilintar as esporas. Ele não precisou esperar muito.

A estalajadeira surgiu de repente. Tinha o ar atarefado da mulher trabalhadora, onde mantinha no semblante corado o trabalho duro diário que por muitas vezes se alastrava madrugadas a dentro. Quando viu do quê e de quem se tratava, ficou espantada. Por um momento só se ouviu o gato, concentrado como um artífice, enquanto afiava as garras contra madeira, de certo para matar o bruxo.


Seu semblante foi levemente mudando da  surpresa para a alegria, numa súbita explosão de sentimentos. Ela abriu um largo sorriso. Um sorriso que ninguém dá a um bruxo. Um sorriso caloroso, tão amoroso que o bruxo se sentiu constrangido. A mulher não era velha. Era uma coroa formosa, voluptuosa nos lugares certos e, digo-lhes, digna de nota e de um dote. Mas o bruxo não era galante. Aquele bruxo não era Geralt, namorador de feiticeiras e médicas. Aquele bruxo, nascido em Novigrad, era uma espécie de monstro. Seu nome era Reksandr.

Ela contornou o bar, ainda com um sorriso quente e felicidade nas bochechas, e deu-lhe um abraço que quase o derrubou. Embora, tenho que admitir, que ela não chegou a envolver seus ombros e sim seu tórax. Era baixinha como um toco de árvore.

Era a irmã do bruxo.

“Ora, vejam só quem chegou! Quem o gato trouxe!” - Dianara soltou uma risadinha - “Pensei que não visitaria sua irmã mais velha mais, seu desgraçado. Dois anos. Dois anos! Theory não vai acreditar.”

Reksandr de Novigrad sorriu de forma singela. É aí que entra, meus caros. Eis o xis do tesouro. A razão a qual o bruxo de Novigrad ser tratado com indiferença e até mesmo uma pitada maior de anormalidade e animosidade onde chegasse, mesmo que entre os poucos bruxos vagantes, era básica: ele era cego. Cego de nascença.

Um cego que superou os elixires, os pêndulos, a Espelunca dos confrades de Kaer Morhen e os mutagênicos avançados. Era um dos velhos, talvez até mais velho do que Vesemir de Kaer Mohen. Mais velho que Geralt de Rívia, embora não aparentasse: tinha a jovialidade de um universitário de Oxenfurt, o cabelo curto e negro cortado à moda militar. Seria um deleite de donzela se não detivesse aquelas cicatrizes horrendas sob os olhos. Era como uma obra de arte que o pintor derramara tinta preta sobre a tela no acabamento. Um dos melhores se não o melhor matador de monstros deste lado do Jaruga.

“Não precisa disso tudo, Dianara.”

“Não precisa do quê?” - o semblante de Dianara foi de felicidade à insatisfação em dois pulos. - “Estou demonstrando meu amor por você, meu irmão. Meu insensível irmão. Você não mudou nada. Continua o mesmo imbecil que só pensa em matar monstros, matar monstros e matar monstros. Que os monstros se lasquem, com todos os diabos! Você veio aqui visitar sua irmã. Quer matar a saudade do meu abraço, conversas sobre a vida, as pessoas… conversar com alguém. Ou seria por causa de Theory?” - ela soltou um risinho maroto.

“Na verdade…” - então parou. Na verdade, na verdade… estava ali por conta do contrato da cocatriz, mas de absteve de qualquer comentário. Sua irmã era braba, invocada como um açor, e um monstro que ele não podia derrotar.

Ela franziu o cenho.

“Eu sabia! Ah! Você não vale nada. Nem uma pataca. Pelo menos se fosse por mulher eu poderia demonstrar mais indignação, mas é pela espada! Matar monstros, eliminar o Mal da humanidade. Quanto altruísmo, quanta benevolência! Besteiras. O mundo continua o mesmo e os monstros também. Vamos, vamos comer se não eu vou te esganar aqui mesmo.”

Pela primeira vez naqueles dois anos de Caminho, Reksandr de Novigrad, conhecido nos tempos antigos e quase imemoriais da Colonização como Tempestade Sangrenta, sorriu abertamente. Um sorriso genuíno, que não dava há muitos anos.

Era como se tivesse uma casa.

 


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