A vida que a morte traz escrita por Alice Pereira


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

O tema da primeira rodada foi a frase de Clarice Lispector: "Queria saber, depois que se é feliz, o que acontece?"



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Chovia, mesmo que duas horas antes o sol cegasse os olhos claros de Arthur. Como um bom mau curitibano, via-se despreparado com apenas uma camiseta; guarda-chuva, casaco? Oras, para quê? Ainda assim, andava, fingindo não ter casa para voltar. E, de fato, sua casa não existia há anos, e por isso ele se insinuava por entre os túmulos do cemitério municipal, acostumado com seu aspecto, obviamente, morto.

Seus pés sabiam que caminho traçar para chegar ao túmulo de sua avó, mas ele insistia em se desviar dele para ver se esquecia a última chuva que ela sentiu cair sobre si, no dia em que quebrou a bacia. Pneumonia, que maneira digna de morrer. Ele já não chorava por isso, ao menos não com frequência, mas as gotas da chuva em seu rosto carregavam a mesma dor das lágrimas.

Não andou muito, para falar a verdade. Acabou se dirigindo para aquele túmulo, um de sabe-se lá quantos, que levara sua vida e seu lar junto. Lá, destacando-se da imagem que conhecia de cor, percebeu um envelope vermelho esparramado e ameaçando se desfazer sobre a superfície beje.

Aproximou-se apreensivo quanto ao seu conteúdo, no entanto tudo que encontrou ao abri-lo com a ponta do dedo foi uma folha de caderno pautada, já manchada da caneta em muitos pontos. Curioso, recolheu-o para fora da chuva, protegido por seu corpo e sua camisa já um tanto gotejante, na esperança que ainda pudesse compreender o que estivesse escrito.

Tinha de certa forma alguma esperança, um desejo bobo, que aquilo fosse um sinal de sua querida avó, ou talvez a resposta pra tudo. Achou a saída daquela cidade de mortos em um instante e quase correu para dentro do Gaúcho, antro de felicidades perdidas de uma época distante. Sua infância: os sorvetes de cereja com pedaços de xuxu com corante e Dona Virgínia dizendo que o deixaria comer quantos ele quisesse, mesmo que depois o persuadisse a parar, prometendo um cafuné quando chegassem em casa.

Sentou em uma das cadeiras de plástico e abriu o papel sobre a mesa. Parecia uma carta, com data, local, assinatura e tudo. Algumas palavras eram só borrões azul-escuros, no entanto buscou decifrar cada letra e ponto dela, impulsionado por aquela doce e boba esperança de que talvez encontrasse um sentido pra tudo nas palavras de um desconhecido.

Datava do mesmo dia e dizia:

“Bom dia, senhora Virgínia

Para a senhora talvez s(ilegível) sempre noite. Espero que sim, pois de (ilegível) teria tanta chance de estar no Céu quanto no Inferno. Há tempos não te escrevo, pode ser descortês já  começar assim, mas a vantagem de escrever para alguém que não pode te ouvir é que nenhum tipo de cortesia importa.

Gostaria de saber o que se passou em seus últimos dias de vida, se estava feliz. Se era bom que estivesse feliz, ou se preferiria estar triste, também. (Ilegível) era feliz junto a Aninha. Irradiavam tal alegria que até eu ficava bem, porém hoje não mais, pois não existem. Talvez continuem sendo felizes em algum lugar, mesmo sem o Pinhão, agora eu que cuido dele.

Só acho injusto, sabe? Elas tinham alcançado a felicidade, e então, nada. Acabou aí. Talvez isso seja uma verdadeira história com final feliz, pois se continuassem a felicidade trataria de ir embora uma hora ou outra, só pra voltar anos depois. Gostaria que a senhora, que viveu bastante, me explicasse como essas coisas funcionam.

Claro, é impossível. A maioria das coisas que eu quero é, por isso escrevo a você.

Em eterno aguardo de uma resposta,

T.L.”


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