O Sexto Comando escrita por Mitchece


Capítulo 5
Capítulo 5


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo extra pra essa semana :)
Boa leitura!



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Lince se esquivou do garoto desolado e partiu em corrida para fora do beco. Já ouvira falar de um truque parecido por aí. Aliás, bem clichê. Aparece alguém querendo ajuda e você, sendo bonzinho, decide ajudar e é apunhalado pelas costas. O porém é que caso realmente existam pessoas bondosas pelo mundo, as más sempre passarão por cima delas. Em Alpha... Esqueça.

Quando estava saindo do beco, o menino gritou ao fundo:

— Por favor! Eu te imploro! Não me deixe aqui.

Aquelas palavras fizeram Lince congelar. Suas mãos ficaram frias, o coração desapareceu com a respiração e uma gota de suor pesada escorreu de sua testa. Sentiu os pés se trancarem no chão. Não podia se mexer. Não podia ignorar as memórias que aquelas palavras lhe traziam.

“Não me deixe aqui”.

Tentou repreender, jogar e trancafiar os pensamentos no fundo do poço da sua mente, como aprendera a fazer para se equilibrar. Mas desta vez fora impossível.

As memórias vieram em seus olhos. Lince tinha onze anos. Estava igualmente paralisada sobre uma cena. A cena. Sua irmã mais velha estirada no chão de uma ruela, debatendo-se. Três caras estavam de pé sobre ela. Um deles era Capulgo, também pequeno e um pouco assustado com o que os companheiros estavam fazendo, mas ainda sim reproduzindo as ações deles. A jovem formiga escondia-se atrás de caçambas de lixo. Pelo seu tamanho, deixaram-na de lado. Foi a primeira vez que sentiu uma onda de impotência. Uma única vez para a fazer odiar aquela sensação para sempre. Já vivia longe dos pais há anos, à mercê dos perigos das ruas. Mas era o seu porto seguro ali. Sendo violado sem que conseguisse fazer nada. Impotência.

Chutavam-na com força enquanto um deles revirava os bolsos dela. Gritava, mas ninguém aparecia para socorrer. A pequena Lince tinha uma arma nas mãos, mas não conseguia mover os braços. Foi a primeira vez que tocou em uma. Tinha achado no lixo um dia antes e decidira guardar na bolsa. Quando os meninos chegaram e ameaçaram as duas, Lince alcançou-a na primeira oportunidade que teve. Em um momento, mirou e apertou o gatilho. Veio um estalo, mas nenhuma bala saíra pelo cano.

— Lince! – sua irmã gritou perdendo o fôlego. Lince não conseguia fazer nada além de olhar enojada a cena e chorar. Sua irmã estava morrendo. Foi quando os olhos delas se encontraram. Eles estavam se apagando e emitiam uma onde de desespero e clemência.

E correu. Lince simplesmente correu.

— Não me deixe aqui! – foram as últimas palavras que a garota ouvira da irmã.

Lince viu-se de frente ao garoto sujo e machucado. Ela estava séria, engolindo seus pensamentos. Ele a encarava com medo da expressão da garota.

Aquilo ia totalmente contra os preceitos que adquiriu com os anos vivendo nas ruas para sobreviver. Com o tempo, digeriu que, se tivesse tentado ajudar a irmã, também teria sido estuprada e morta pelos garotos. Não ter conseguido ajudar foi ruim, mas seria ainda mais se tivesse feito. Fim da história. Passou. Aquilo deveria ficar no fundo mais distante de sua memória para não atrapalhar a sua vida atual. Nos becos, deveria pensar apenas em si mesma.

Pelo menos o máximo que pudesse.

— O que aconteceu com você? – ela perguntou automaticamente sem se importar, na realidade.

— E-eu... – ele gaguejou. – Eu fui assaltado. Levaram minha mochila. Tudo o que eu tinha estava lá.

— Você não é daqui, né? – ela respondeu desfazendo a expressão dura e robótica.

— Como assim?

— Não é um morador de rua.

— Bem... Não – o garoto parecia estar perdido e não ter a mínima noção do que estava fazendo. – Por favor, me tire daqui. Eu estou com medo. Não quero ficar aqui.

— Tudo bem, calma aí. Mas primeiro me deixe te revistar. Por segurança.

Ele hesitou e deu um passo para trás.

— Você não vai me roubar, vai?

— Não. Te acalma, garoto – Lince primeiramente olhou ao redor para ver se não via ninguém de tocaia, um eventual parceiro do moleque ou algo do tipo. Aproximou-se melhor vagarosamente enquanto ele permitia os movimentos dela. Passou as mãos pelos bolsos do garoto, pernas, pés, costas e braços. Nada perigoso, nem nada aparentemente valioso. – Tudo bem.

Eles se olharam novamente.

— Não gosto dessa cidade de noite – ele revelou olhando para os lados como se estivesse sendo ameaçado.

— Qual o seu nome?

— Oliver.

— Ok, Oliver. Eu me chamo Lince. Mais conhecida como Princesa Fodona. Venha comigo. A caminhada é longa, mas o lugar é mais seguro. Eu te deixo lá e você se vira.

— Beleza. Eu só preciso de um dinheiro para um táxi.

Lince ignorou. Os dois caminharam com um pouco de pressa pelas ruas menos perigosas. Foram em silêncio. Lince ainda arrepiava-se de lembrar que teve uma recaída e deixara sua pior memória voltar à tona e desequilibrá-la, mas ficou contente por não ter cometido o mesmo erro novamente, pois Oliver não era nenhum trapaceiro. O ajudara de verdade, mas não conseguia compreender se aquilo era realmente bom ou ruim.

Chegaram ao Formigueiro já com os primeiros raios de sol. O garoto se acalmara por volta das quatro da manhã, quando carros e pessoas rumo ao trabalho começavam a tomar as ruas e os gatunos, mendigos e pessoas loucas foram se recolhendo.

— Chegamos – Lince disse olhando para o prédio abandonado e surrado.

— Chegamos onde, exatamente?

— Ao Formigueiro. Lá dentro é mais feio que aqui fora, mas é nossa casa.

— Nossa? Com quem você mora? – Oliver indagou. Não admirava o prédio com muito louvor nem gosto.

— Com crianças de rua do leste. Ficam aqui pra dormir, descansar, fazer trocas... Essas coisas. Lá você pode ver o que fazer. Se quiser, pode tomar um banho e pegar roupas novas.

Oliver seguiu a garota pela entrada superior do tal Formigueiro. Quando entrou, assustou-se. Eram várias crianças em trapos, sujas, mal vestidas e com um aspecto mórbido aglomeradas em grupos, comendo coisas estranhas, fumando, se drogando, dançando.

— Sinta-se em casa.

Casa. Naquele momento Oliver sentiu falta da verdadeira casa, mas aquele local transmitia a ele uma certa adrenalina. Era nojento e desgostoso, mas diferente para ele.

— Por que há tantas pessoas aqui? – ele perguntou seguindo Lince entre as crianças.

— A fuga de Alphamonte.

— Ãhn?

— A fuga do reformatório juvenil – explicou, achando um pouco estranho que o menino nunca tinha ouvido falar, mesmo não sendo um morador de rua. – Não lembra?

— Não.

— Muitas crianças fugiram do reformatório da cidade. Os policiais não conseguiram nos conter, então eles desistiram de nós. Não tínhamos para onde ir, então tomamos as ruas. O começo foi um caos, mas logo as crianças tomaram seus rumos e se dividiram pelos territórios de Alpha. Norte, Sul, Leste e Oeste. Estamos no Leste. O abrigo das crianças do Leste chama-se Formigueiro e é controlado por um bandido da máfia Montanhense. Ele chama Mentor.

— Então existem outros Formigueiros pela cidade?

— É. Com outros nomes, outros líderes. São diferentes, mas funcionam mais ou menos do mesmo jeito.

Ao explicar, sentiu-se que nem aqueles tutores de passeios turísticos ou culturais.

— Mas por que desistiram tão fácil de vocês, os policiais? Sem querer ofender, mas as crianças de rua são um dos maiores problemas atuais da cidade.

— Depende do ponto de vista. Do ponto de vista dos criminosos que nos usam para fazer vários servicinhos sujos, somos ótimos para essa cidade, por isso fizeram com que desistissem de nós. Quem cê acha que tem mais poder aqui? Os policiais?

— Nem fodendo. Mas, isso é... nojento... A lei não deveria funcionar assim.

— Espera – Lince parou o percurso e virou-se para Oliver. – Você não é um Patrício, não é?

— Um o que?

— Um adolescente rico do subúrbio ou região metropolitana que vem para a cidade viver a nossa vida. Para festas, usar drogas, beber, matar. Se divertir. Eles têm tudo o que podem em casa, se acham os donos de tudo, então vem para as ruas fazer merda por prazer.

 - Não... Não sou. Bem... – ele engasgou – Eu fugi de casa, mas minha intenção principal não era ficar na cidade. Só que perdi tudo o que eu trouxe...

— Você é rico?

Oliver olhou fixadamente para ela. Não sabia se falava a verdade.

— Sou. Mas não quero aquela vida. Não gosto da minha casa.

— Que ótimo – ela riu. – Se um dia eu precisar assaltar uma casa, você me ajuda, porque será a sua. E se quiser me dar uma recompensa pela ajuda, aceito.

— Tá bom, Princesa Fodona – ele respondeu meio acuado. Com os minutos se deu conta de quem ela realmente era. Uma garota das ruas. Daquelas que ouve falar. Que roubam, matam.

Lince prosseguiu o caminho. Oliver não entendera o tom de voz da garota. Não sabia se aquilo fora ironia, brincadeira ou algo do tipo. De qualquer forma, continuou seguindo-a.

— Então vocês sobrevivem assim? – ele perguntou nas costas dela enquanto seguiam entre os jovens. Oliver se arrepiou ao ver uma garota vomitar e outra beijar um garoto sujo enquanto se drogavam. – Roubando?

— De tudo um pouco. Sobreviver é a nossa principal função. Nós não somos ninguém, meu amiguinho. Não temos documentos, nem nada disso – ela finalmente parou diante uma fogueira e sentou-se no chão. – Sente-se aqui.

Uma garotinha descabelada aproximou-se dos dois e abraçou Lince. Ela olhou para Oliver, mas não disse nada e sentou-se junto à amiga.

— Mía – Lince disse para a garota enquanto recolhia todo dinheiro de seu sutiã -, pegue esse dinheiro e compre roupas para o Oliver. Compre com o Ratazana. Diga que eu mandei você lá; ele fará um bom preço. Compre um jeans e uma jaqueta e leve para ele quando ele sair do banho.

A garotinha fez que sim e levantou-se, saindo.

— Oliver – Lince disse -, espero que sua cueca esteja limpa, pois vai ficar com ela.

— Obrigado pela ajuda... – ele respondeu sem graça.

— Está vendo aquela cortina de sacos pretos atrás de você? – ela apontou e o garoto olhou. – É o banheiro. Vá lá e tome um banho. Seja rápido. Mais que um minuto de água custa dinheiro.

— Não parece ser um lugar muito limpo...

— E nem privado. Ignore os outros banhistas e se lave. Não olhe pro pau de ninguém se você não for gay. Senão acharão que é e, bem... É um banheiro e acontecem coisas lá. Vá.

O garoto ficou vermelho e foi para o local indicado. Lince encostou-se na parede. Estava completamente cansada e o sono parecia estar começando a rondá-la, mas não poderia se entregar à ele agora. Caçou algo entre as vestes e encontrou o lindo colar. Admirou-o no escuro para que ninguém o visse nem o ambicionasse. Um arrepio percorreu o seu corpo seguido de uma sensação de que aquele colar escondia mais coisas do que o Mentor havia contado-a. Mas não seria problema seu.


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Notas finais do capítulo

E ai, o que acharam do encontro de Lince e Oliver?



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