The Kostroma Dynasty escrita por Mialee Aurestelar


Capítulo 28
As Maquinações Escusas do Destino


Notas iniciais do capítulo

Oiee! Chega a ser (tragi)cômico como eu subestimo a capacidade do meu semestre de acabar com meu tempo livre, e, toda vez, quando eu vejo já chegou as férias e eu não escrevi dois parágrafos kkkkkk. Mas vamo que vamo, mesmo que não seja esse ano, essa história acaba!

Ficou um capítulo grandão - provavelmente vai ser um padrão daqui pra frente. Espero que gostem e boa leitura!



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"I don’t know if I blame you for being so distant

But I’m tryna be real with you, and God, it’s been a hell of a week

And I just wanna relate to you in a true way

If it means being here with you, then hey, I am trying to be

I’ll always struggle to think of you in a harsh way 

I know that it’s weird but I still see you for the human beneath”

Keep Me In The Open — Gang Of Youths

 

Depois de tanto tempo comandando os caçadores e acompanhando os novatos que chegavam todo ano, Catherina conseguia reconhecer os que tinham potencial de longe. Não era tão simples quanto parecia; apostar nos que tinham picos de crescimento logo no começo ou eram muito bons em todos os primeiros treinamentos não era garantia de nada, por exemplo. Às vezes o desenvolvimento parava naturalmente, às vezes ficavam confortáveis demais em seu aparente “dom” e deixavam de se esforçar como antes. Seria um erro, assim, desconsiderar os que aprendiam devagar, mas absorviam tudo. Esses eram os mais determinados, mais resilientes.

Além disso, potencial nem sempre era sinônimo de algo positivo. Havia os que eram brutos, que continuavam batendo mesmo depois de terem ganhado a luta. Esses eram os que enxergavam a batalha e o derramamento de sangue não como o meio, mas como o objetivo. 

Catherina fazia o possível para tirar esses tipos da Caçada. O sistema para formar caçadores, porém, facilitava que subissem nos rankings e fossem aceitos, desde que não cometessem uma falta muito grave - que, à essa altura, seria matar ou ferir gravemente algum companheiro. Era mais “fácil” retirar um caçador da Caçada por crimes de guerra do que impedir que os criminosos em potencial entrassem. A czarevna tentava há anos mudar como as coisas eram feitas, mas, mesmo como comandante, ainda não podia fazer o que quisesse. Tinha que responder ao comandante do Exército e aos conselheiros reais. Eles, infelizmente, estavam muito satisfeitos com a maneira como as coisas eram feitas.

Um desses potenciais criminosos era Calum Reed. O homem era enorme, e seus parceiros em treinos de combate costumavam acabar na enfermaria. Catherina sempre se mantinha atenta a ele, em parte esperando por uma queda de rendimento, esperando pelo momento em que o ego enorme dele o convencesse de que podia relaxar. Até agora, porém, ele se mantinha em uma curva de desenvolvimento ascendente, para o desgosto da caçadora. 

Outra pessoa com um crescimento tão constante e veloz era Leonid, e era exatamente por isso que os dois tinham sido escalados para fazerem dupla no treinamento de combate corpo a corpo daquele dia. Olhando os dois rodeando-se, Catherina se surpreendeu ao se encontrar tão apreensiva. Leonid era mais inteligente que Calum, mas Calum era mais forte. Detestaria ver Leonid forçado a parar o treinamento por ter quebrado um braço por culpa de um brutamontes sem senso de limite. Afinal, Leonid era um dos que apresentava um potencial genuinamente positivo naquele grupo. 

— Há anos não via um grupo tão forte — comentou Grigoriy, parando ao seu lado na plataforma alguns metros acima do nível em que os treinamentos ocorriam, dando uma boa visão de tudo que acontecia — Novatos são sempre impacientes, mas esses parecem querer cortar o tempo de treino pela metade.

— Motivos para a pressa não faltam — respondeu ela, sem tirar os olhos de uma certa dupla. Já era a segunda vez que Leonid desviava de um dos socos pesados de Calum — Se decidiram se tornar soldados com uma guerra à espreita, imagino que queiram estar preparados, e depressa.

Escutou Grigoriy concordar e, pelo silêncio que se seguiu, ele também se colocou a observar o que acontecia no nível inferior. Não demorou para reparar onde os olhos de Catherina estavam concentrados.

— Aqueles dois certamente estão com mais pressa do que a maioria — disse, e Catherina se permitiu abrir um meio sorriso. Essa era, de fato, uma boa forma de descrevê-los.

— Foi ideia sua colocá-los juntos, não foi? — perguntou, finalmente desviando os olhos na direção do caçador. O rosto dele estava sério, na postura que geralmente adquiria quando estava liderando treinamentos. Grigoriy não tinha a expressão mais amigável do mundo, e era fácil compreender porque até caçadores veteranos tinham medo dele, mesmo que nunca admitissem isso. Depois de tanto tempo em uma convivência diária, porém, Catherina raramente se intimidava com a aura poderosa dele. 

— Sim — ele deu de ombros — Ia acontecer uma hora ou outra, eles são parte dos que mais se destacam, e você sabe como essas coisas funcionam. Se há algum tipo de competição entre os dois, melhor que se enfrentem agora, não que deixem a animosidade fermentar até criar algo realmente perigoso.

— Concordo, mas também sei que Reed é um sanguinário — como que se para ilustrar o que Catherina dizia, Leonid foi jogado com tanta força no chão que a caçadora quase sentiu no corpo a falta de ar que ele deveria estar experienciando. Para o crédito dele, não demorou muito tempo para se levantar, mesmo que cambaleante — Vai me dizer que quer um tipo daquele nos grupos de patrulha?

— Estou bem ciente, Catherina — não importava quantos anos passassem, ele nunca usava apelidos com ela — Mas a melhor estratégia é juntá-lo com os que estão à sua altura. Se são bons o suficiente, saberão conduzir a luta de uma maneira que os favoreça. Minha esperança é de que, em algum momento, tome a surra que merece e desça de seu pedestal. Você tem que concordar que Ayres é um bom candidato para a tarefa.

Claro que ela concordava. Leonid estava levando aquela luta por mais tempo que a maioria e tinha apresentado uma visão estratégica afiada. Contudo, ela conseguia ver que ele estava muito mais cansado do que Calum, tinha desperdiçado energia no começo do embate, e isso estava lhe custando muito agora. Assim, não ficou realmente surpresa quando foi derrubado mais uma vez, e, ao invés de se levantar, sinalizou sua desistência com a mão. 

— Pode ser, mas hoje ainda não tivemos essa sorte — respondeu ela, decidindo descer para encerrar os treinamentos daquele fim de tarde e passar suas impressões para a instrutora. — Esperemos que esse milagre aconteça antes de Reed passar a vestir nossa insígnia.

*

Nikolai continuava naquela área de treinamento por puro ódio. Não conseguia acreditar que tinha perdido para Calum. Há semanas vinha sonhando com a oportunidade de enfrentá-lo e calar sua boca de uma vez, incapaz de aguentar mais um segundo dos absurdos que ele despejava todas as noites nos alojamentos dos novatos.

Sabia que seria um combate difícil, mas se calculasse tudo com precisão - já reparara em vários padrões do estilo de luta de Calum - seria capaz de sair praticamente inteiro e vitorioso. Tudo o que conseguira, contudo, fora a humilhação de ter que desistir antes que Reed o machucasse o suficiente para alarmar algum instrutor, coisa que já tinha acontecido com alguns de seus colegas. Não podia se dar ao luxo de perder dias na enfermaria, então escolheu deixar a coisa toda do “cair lutando” para outra ocasião.

Tudo por culpa dela. Como o bom bruxo que era, Nikolai acreditava em forças do Universo, e, naquele dia, elas estavam claramente contra ele. Justo quando ele precisava de concentração total no que iria fazer, Catherina resolvia aparecer para supervisionar o treinamento. Pior, sentira os olhos da czarevna sobre si o tempo inteiro, seguindo-o durante a luta. 

Aquilo era ridículo. Era óbvio que a presença da czarevna o deixava mais tenso; a cada dia estava mais ciente do quão tênue era a linha em que estava andando, de como não poderia relaxar até cumprir com seus objetivos e deixar aquele palácio para nunca mais voltar. Afinal, se tinha uma coisa que a convivência esporádica com Catherina, além dos rumores que se amontoavam ao redor dela como pingos de chuva, mostravam, era que a mulher tinha talento para o que fazia. Não só habilidade e dedicação, mas uma capacidade nata, fosse lutando, liderando, investigando ou arquitetando estratégias. Se havia alguém ali que seria capaz de desmascará-lo, era ela. 

O problema era que, ainda que todas essas fossem razões muito lógicas e válidas para desconcentrá-lo, não era toda a verdade sobre por que perdera a luta mais cedo. Ele ainda não admitia aquilo conscientemente para si mesmo, mas parte sua, uma parte que ele cortaria fora se pudesse, queria impressionar Catherina. Podia muito bem justificar isso como uma vontade de mostrar, silenciosamente, que um bruxo, o que a Caçada mais desprezava, poderia vencê-los no próprio jogo. A grande questão era que não era só isso. A questão era que, se parte de Nikolai queria impressionar a czarevna, era porque um pedaço dele passara a nutrir alguma admiração pela caçadora. Sinceramente, ele preferia que Reed lhe quebrasse uma costela a reconhecer que sentia qualquer coisa além de ódio pela personificação da Caçada que era Catherina Kostroma. 

Era com esses pensamentos embolados, e uma vontade crescente de exigir compensação monetária a Aberash pelos danos que seu corpo e seus valores estavam sofrendo durante sua estadia no palácio, que Nikolai ignorou o cansaço se avolumando sobre ele e se concentrou em acertar mais um chute - raivoso - no saco de pancadas à sua frente. 

— Se não parar agora, só vai pisar nesse centro de treinamento de novo daqui a duas semanas — Nikolai conseguiu a proeza de não pular de susto ao ouvir a voz de Catherina. Ele nem tinha escutado seus passos, pelos deuses. 

— Perdão, vossa alteza? — se obrigou a dizer, engolindo a irritação. Distraído como estava, não conseguia saber se o que ela dissera fora uma ameaça ou um conselho. 

— Você me escutou, Ayres — respondeu ela, se postando entre ele e o saco de pancadas — Se continuar nesse ritmo, não dou dois minutos para errar o alvo e acabar torcendo alguma coisa. Encerre por hoje. 

Não havia brecha para dúvidas no tom firme e na expressão séria da caçadora, mas Nikolai ainda tinha aquela energia raivosa correndo por suas veias. Não saberia o que fazer com ela se tivesse que voltar para os dormitórios naquele momento. Foi por isso que, contrariando a cautela que deveria ter, abriu a boca para contestar o ordem de Catherina:

— Preciso só de mais meia hora, vossa alteza — mentira, mas talvez conseguisse que Catherina fosse embora e o deixasse ficar ali pelo tempo que desejasse —  Tomarei cuidado, não gostaria de perder tempo de treino na enfermaria, isso é certo. 

— Não — Nikolai conteve a vontade de revirar os olhos, num ato de paciência que ele não tinha — Vai levar seu corpo até a exaustão para quê? Não importa quantas horas passe aqui, nunca vai atingir o tamanho ou a força de Reed, desista.

Dessa vez ele não conseguiu conter a careta de raiva, desviando os olhos da caçadora. Era difícil manter a compostura quando seu ego estava sendo atingido de forma tão certeira.

— Não era… — tentou contestar, mas foi interrompido bruscamente pela voz, agora carregada de sarcasmo, de Catherina.

— Oh, então não era seu orgulho ferido de perder a luta que o prendeu aqui até agora? — ele voltou a encará-la, fazendo um esforço consciente para não transparecer a raiva quente que estava sentindo. Impressionante como, mesmo sendo uns bons centímetros mais alto que a czarevna, ainda sentia como se ela o olhasse de cima — Digamos que o motivo seja realmente sua resolução em se tornar um bom caçador. Se for assim, devo informar que o que eu preciso em um caçador não é força bruta ou resistência física.

— Do que precisa, então? — disparou antes de conseguir segurar a própria língua. Merda

— Equilíbrio — respondeu ela, sem se afetar com o comentário atirado dele — Você precisa saber escolher suas batalhas, Ayres. Há momentos em que vale a pena chegar até a exaustão, mas perder uma luta de treino para um colega não é um deles. Ou é? Se você está certo de que passar as próximas horas se lesionando é o melhor a ser feito, me convença.

Apesar da irritação e das pontadas de vergonha que estava sentindo, Nikolai viu, com precisão, o que Catherina estava lhe dizendo. Viu, na mudança sutil em sua postura, que se ele decidisse continuar naquela briga, seria com ela, não com o saco de pancadas, que estaria treinando seus golpes. Querendo ou não, aquela promessa silenciosa fez o sangue de Nikolai esfriar vários graus. 

Sem dizer nada, apenas porque não confiava em si mesmo para se manter civilizado, tirou as luvas e passou a desenrolar as faixas presas em suas mãos e pulsos. O fato de Catherina se manter ali, vigiando-o, era embaraçoso o suficiente, não precisava piorar a situação com mais alguma fala irresponsável… Incomodado com o silêncio, porém, imaginou que a questão que tinha em mente não seria tão comprometedora.

— Perdão pela pergunta, vossa alteza, mas porque está aqui a esta hora?

Ele realmente não esperava ver o mais breve desconforto na expressão dela por uma pergunta tão trivial.

— Estava na cidade e queria checar algumas coisas com uma de minhas colegas antes de encerrar o dia, mas parece que a fiz esperar demais — respondeu ela, dando de ombros. Nikolai assentiu, quieto. Não era louco de pedir por mais informação, não era seu lugar. 

Se aquilo não era mentira, Nikolai também conseguia perceber que não era totalmente verdade. Entre o susto da presença repentina da czarevna e, agora, o cansaço acumulado que ia descendo sobre seu corpo e o tornando mais lento, Nikolai não reparara de fato em como Catherina estava arrumada. Não com um dos vestidos longos para a corte, do estilo do vestido roxo escuro até a maquiagem mais carregada, aquele era um visual bem mais moderno do que ele tinha se acostumado a ver nela. Era até um tanto desconcertante, vê-la vestida como uma pessoa normal (ainda que com bastante dinheiro), não como realeza ou com o uniforme da Caçada. Onde teria ido daquele jeito?

Devia estar estampado na cara dele que estava pensando sobre o assunto, porque Catherina decidiu mudar o tópico de uma vez:

— Já que ficou aqui até tão tarde, imagino que não se importe em ajudar a guardar todas as armas que os novatos deixaram aqui, não?

Nikolai não precisava nem olhar para saber que a bagunça era grande. Era o final da semana, e a desordem de materiais costumava se acumular a semana inteira até que algum instrutor escolhesse um ou dois infelizes para resolver tudo. Com a revolta que estivera sentindo já quase sumindo, Nikolai se limitou a soltar um suspiro cansado antes de concordar. 

*

Catherina imaginara um final de noite bem diferente do que recolher e separar armas no centro de treinamento vazio. Leonid provavelmente estava pensando na mesma coisa. Em parte pedira para que ficasse para monitorá-lo — com o número de horas ininterruptas que ele gastara ali, era provável que algum ferimento só se apresentasse quando sua energia baixasse —, mas era principalmente para não ter que fazer aquele trabalho ingrato sozinha. Não que precisasse fazê-lo, mas, no momento, queria postergar voltar para seu quarto a todo custo. Afinal, se Anastasia havia desistido de esperá-la ali, era certo que estaria muito bem acomodada no quarto da czarevna, aguardando para saber como tinha sido a noite da amiga. 

O que dissera a Leonid fora uma verdade vaga. Viera ao centro de treinamentos para encontrar Anastasia e a outra provavelmente se cansara de esperar naquele lugar pouco confortável depois do atraso de mais de uma hora de Catherina. Também estivera, de fato, na cidade. A parte que deixara de fora era que seu compromisso tinha sido um encontro, um ruim, que Anastasia lhe arranjara, e sobre o qual pretendia reclamar para a amiga.

Lhe parecia absurdo tentar colocar sua vida amorosa nos trilhos quando o país estava a dois movimentos diplomáticos errados de explodir, mas Anastasia falara tanto do rapaz que ela decidira ceder dessa vez. E, bem, sentia que tinha perdido tempo, pelo menos na maior parte. Não que tenha sido um desastre, como alguns de seus outros casos, mas não fora tão bom quanto ela sabia que poderia ser. 

Suas experiências “românticas” desastrosas costumavam ter um padrão. Ou sabiam tão bem o que ela fazia como comandante que pareciam mal respirar ao seu lado, com medo, ou tratavam-na como uma princesa que gostava de brincar com armas por capricho, subestimando-a. E havia os homens com quem ela simplesmente não conseguia se imaginar passando mais do que uma noite. O rapaz daquela vez era um deles: tranquilo, doce, mas tão alienado que ela se perguntava como ele conseguia navegar por Aldan no estado tenso em que estavam. A conversa que tiveram durante o jantar fora tão frívola que ela quase recusara o convite nada sutil para ir até o apartamento dele, mas, sinceramente, fora pensando nesse possível resultado que aceitara o convite para o jantar e, bem, fora a melhor parte da noite. Isto é, até ele tentar começar mais alguma conversa estapafúrdia que ela não queria ter, e Catherina decidir que era hora de fazer uma retirada estratégica. O problema era que mandara uma mensagem para Anastasia assim que o jantar acabara e antes de mudar de ideia, dizendo que estava voltando e queria falar com ela… Não sabia com o que a amiga estaria mais irritada, o atraso absurdo ou com como “nem tentara gostar do rapaz”. 

Ia pensando nisso, achando até uma certa graça da situação, enquanto conferia no inventário se todas as lanças tinham sido guardadas. A voz de Leonid a acordou do trabalho mecânico que fazia:

— Peço desculpas se fui rude mais cedo, vossa alteza — disse ele, sem tirar os olhos das facas que arrancava da parede com alvos para treino de arremessos — Perder para Reed… Minha competitividade veio à tona. 

Ali estava, aquela polidez que ela se acostumara a esperar quando se tratava de Leonid. Era esquisito, porque não era como se fosse algo artificial, afetado. Conhecia muita gente assim - Andrey era um deles -, que tinham uma educação natural, e a maneira de agir de Leonid até o momento tinha sido perfeitamente coerente com isso. Contudo… A frustração, a raiva que vira emanando dele mais cedo parecia lhe cair melhor, se é que isso tinha alguma lógica. Mais uma para a lista de “coisas que não fazem sentido nele, mas eu não sei por que”. Ainda que Catherina aceitasse que as pessoas não são sempre coerentes e tem seus segredos, a lista de inconsistências era longa demais para ser descartada como coincidências banais. 

— Não o culpo, tipos como Reed tiram qualquer um do sério — ela deu uma risadinha ao ver a expressão surpresa dele — Eu também cumpri meus dias como novata em treinamento com colegas insuportáveis, Ayres.

— Não duvido disso, vossa alteza, mas… — ele parou, parecendo pensar se era aceitável dizer o que estava pensando — Não é um pouco antiético que a comandante fale assim de futuros caçadores?

— Talvez — respondeu, dando de ombros — Mas, no máximo, é um pouco de fofoca indiscreta de minha parte. Além do mais, a personalidade de um novato, só, nunca impediu ninguém de entrar para a Caçada. 

— Infelizmente — disse Leonid, abrindo um sorrisinho. Catherina abriu um sorriso torto em concordância — Mas não dá para fazer nada mesmo?

— Não. Ou por pura sorte ou por saber bem as regras, Reed tem se mantido dentro do aceitável — não havia mal em revelar esse tipo de coisa para Leonid, até porque não era nenhum segredo. Todos os novatos já estavam bem cientes das posturas de Calum — Nenhuma briga fora dos treinos, nenhum ferimentos debilitante a longo prazo, nenhuma queda de rendimento. 

— Que belo modelo de caçador… — comentou ele, baixo.

— Não gostaria que fosse, mas há, sim, algumas pessoas em cargos altos que apreciam pessoas como Reed — Catherina soltou um suspiro impaciente, irritada só de pensar naquilo — Pessoas como ele perdem o senso de limite depressa. Se você acha que está ruim agora, espere só para ver o que acontece se for aceito na Caçada. No clima político atual, é difícil medir o tamanho do estrago que algumas atitudes fora de proporção podem ter.

— Vossa alteza tem que admitir que com limites tão turvos, fica fácil ultrapassá-los. 

À essa altura já tinham acabado, e Catherina estava no processo de desligar as luzes e fechar as portas do centro de treinamentos, com Leonid a esperando nos degraus do lado de fora. A meia luz fez o grande favor de esconder a expressão de surpresa de Catherina diante da afirmação. Ele tinha decidido mostrar suas intenções, pelo menos um pouco?

— A ironia que é ouvir isso da boca de um aspirante a caçador… Quer realmente me convencer de que é um pacifista? — alfinetou, parando ao lado dele na escadaria. 

Se ele estava arrependido do que disse, não transparecia. Sob a luz fraca da lua minguante e dos postes de luz, não havia nervosismo em sua postura, e ele até mesmo teve a coragem de encarar Catherina nos olhos quando a respondeu:

— Não sou hipócrita a esse ponto. Mas, se tivesse outra maneira de conseguir o que eu quero, não teria dúvidas em escolher esse outro caminho — Catherina conseguia ver que era verdade, o que só tornava a situação mais confusa — Percebo que meu motivo também não é muito original. Um terço de meus colegas também estão aqui por vingança, e não nego que estou lutando com todas as minhas forças para ser páreo para eles. Mesmo assim, a realidade das coisas não é um empecilho para ponderar sobre como elas poderiam ser diferentes, não acha, vossa alteza?

— Não sou boa em criar utopias. Desde que mantenha os pés no chão, encher a cabeça de teorias não pode ser muito ruim, imagino — respondeu por fim, começando a se afastar em direção ao palácio e se despedindo daquela conversa peculiar — Boa noite, Ayres.

— Boa noite, vossa alteza — respondeu ele, se dirigindo aos alojamentos sem cerimônia. 

 Como você pode ser tão difícil de entender, Ayres? Foi a pergunta que surgiu em sua cabeça, mas, dessa vez, sem frustração. Catherina esperava que aquela curiosidade genuína que lhe arrebatou não fosse perigosa. 

*

— Parem de falar na cabeça da menina, não estão vendo que ela não quer responder? — a falação que tinha se instaurado no instante em que Katherine pisara no salão comum foi cortada de forma brusca por Elizaveta, que se postara ao lado de Kat, quase que como um escudo. 

Um silêncio constrangido caiu sobre as selecionadas, quase todas reunidas ali. Katherine não culpava nenhuma delas pela curiosidade; tinha sido o primeiro encontro com o czareviche, afinal, e todas elas gostariam de saber o que esperar do rapaz. Katherine, contudo, estava morrendo de vergonha de contar o completo fiasco que fora, ou de sequer correr o risco de expor os pensamentos ansiosos que rodavam em sua cabeça.

— Me desculpem… — disse, olhando para o chão, já imaginando uma discussão que não seria capaz de administrar. Sentia a face queimando. Nos últimos dias, uma harmonia interessante estivera se formando entre as garotas, e ela detestava não poder contribuir para isso com alguma história engraçadinha sobre o encontro. Era tão frustrante. 

— De maneira nenhuma, nós que pedimos desculpas — se pronunciou Lara prontamente, dando uma leve cotovelada nada discreta em Abby, sentada ao seu lado, que, de impulso, concordou. Um coro bagunçado de desculpas se seguiu, e Kat acabou rindo um pouco da situação — Somos só um pouquinho fofoqueiras, nada demais.

Daí em diante, uma conversa foi se formando, em que o assunto “czareviche” foi prontamente evitado. Algumas garotas foram embora, vendo que o que queriam saber não seria respondido, pelo menos não naquele dia. Ainda que não recriminasse as que foram, Katherine sentiu uma gratidão enorme pelas que ficaram. Tanto que, poucos minutos depois, já estava rindo e podendo se esquecer da origem de sua inquietação. 

Mais tarde, quando todas já tinham se recolhido aos próprios quartos, Katherine voltou aos pensamentos de antes. Nem dois minutos tinham se passado desse “momento de contemplação” quando ela escutou batidas leves na porta, como se esperando uma deixa. Quem esperava do lado de fora, com a expressão mais preocupada que Katherine já tinha visto ela fazer - quer dizer, não que isso fosse muito, mas ainda era novo. 

— Tudo bem se conversarmos um pouco? — perguntou ela, e Kat, ainda surpresa com a aparição da outra, anuiu com a cabeça, abrindo espaço para ela entrar no quarto.

— É… Está tudo bem?

— Na verdade, essa é a pergunta que eu quero fazer para você — disse ela sem rodeios, sentando-se na poltrona perto da janela — Ficou claro que você não quer falar do que aconteceu no encontro, e eu não vim aqui para te forçar a dizer nada, mas só quero saber se foi algo sério.

Katherine piscou, demorando um momento para entender o que Eliza estava dizendo. Quando entendeu, arregalou os olhos e a resposta veio com um tom de voz um pouco mais alto que o normal, negando a possibilidade veementemente:

— Não, não, não foi nada demais! — ela respirou fundo, para se acalmar um pouco — Ah… Eu acho que você pode chamar meu encontro de fiasco por falta de aptidão social. 

Nisso, Elizaveta pareceu relaxar um pouco, abrindo um sorrisinho:

— Sua ou do czareviche?

— De ambos — acabou respondendo, e depois quase mordeu a língua pela sinceridade, coisa de que Eliza riu — Mas nem foi só por isso que fiquei tão sem jeito.

— Sou toda ouvidos, se você quiser contar — Elizaveta deu de ombros, de volta à postura tranquila de sempre — Ou você pode me enxotar de volta para o meu quarto também, prometo não ficar ofendida.

Katherine gostava bastante de Eliza. Não sabia muita coisa da outra, mas ela tinha um jeito fácil de conviver que tinha facilitado, inclusive, que Kat fizesse amizades com as outras garotas. Nunca tinha sido alguém com muitos amigos, então aquela coisa toda era nova e provavelmente o que mais a fazia feliz naquela Seleção. De certa forma, isso era parte da problemática que estava rodando em sua cabeça. E talvez, só talvez, valesse a pena compartilhar aquilo com Eliza.

— Acho que não faz mal contar… — começou Kat, sentando-se na poltrona em frente à que Eliza ocupava.

Contar da estranheza do encontro foi menos vergonhoso com os comentários bem humorados da outra, mas ainda foi dito aos tropeços. 

Tinha sido só Katherine pisar na sala onde ela e o czarevichee tomariam um chá de fim de tarde juntos, para perceber que aquilo seria um fiasco, e sua intuição fora certeira. Sozinhos, ela tímida demais e ele sério demais, todos os assuntos morriam sem que pudessem trocar mais do que três frases, geralmente respostas de sim ou não a perguntas formuladas sem a menor confiança. Nessa, bem mais da metade da hora que passaram juntos foi gasta no silêncio mais constrangedor possível, quebrado pelo tilintar dos talheres. Katherine conseguia se lembrar melhor dos padrões na xícara de chá do que do rosto de Aleksei. 

Katherine já não era boa lidando com estranhos, mas a postura do czareviche não ajudava em nada. O rapaz passava algo que estava no meio termo entre a intimidação e o desinteresse, e era impossível não ficar nervosa diante daquilo. Uma muralha. Era como se conversasse com uma muralha.

Para fechar com chave de ouro, ele lhe perguntara sobre o baile e ela, à essa altura já sem a menor noção do que fazer ou com algum controle sobre sua ansiedade, tagarelou uns bons cinco minutos sobre a experiência, contando sobre a beleza do salão, a grandeza de tudo, a pequena orquestra que lhe encantara, porque nunca tinha visto uma ao vivo. Quando se deu conta de sua falação repentina, deve ter ficado tão vermelha que foi impossível não perceber, e não conseguiu falar mais nada. Aleksei tentou continuar o assunto da orquestra - coisa que a impressionou um pouco, que ele tivesse prestado atenção naquela informação no meio da profusão de coisas que ela tinha dito -, mas o tempo do encontro já se encerrava (aleluia!), e ela estava sem jeito demais para responder direito.

— Resumindo, estou esperando ser mandada para casa amanhã — finalizou ela. Surpreendentemente, se sentia um tantinho melhor depois de contar tudo.

— Eu não ficaria tão preocupada, Kat — disse Eliza, depois de um segundo em silêncio, procurando confortá-la — Essa estranheza toda é bem mais culpa de vossa alteza do que sua. Foi ele quem iniciou essa Seleção, e é quem deveria se esforçar para nos conhecer. Regra básica do bom anfitrião.

— Eu sei… — suspirou, esfregando os olhos, num sinal de cansaço — Apesar de estar morrendo de vergonha, não é bem isso que está me deixando nervosa.

— Qual o problema, então?

— Não sei muito bem o que vim fazer aqui — confessou, falando um pouco mais baixo — Não conheço muita coisa, mal saí da minha cidade natal. Sou boa na minha dominação, mas não a melhor. Também nunca fui líder de nada, e não sei se sou o tipo de pessoa que consegue aprender na prática. Todo dia eu me sinto tentando dar um passo que é grande demais para as minhas pernas e eu não sei… Não sei se vale a pena. 

Diante do silêncio prolongado de Elizaveta, acabou levantando os olhos para a outra, com medo de ter falado mais do que devia. Tinha sido absurdamente vulnerável com alguém que conhecia há um mês, e talvez tivesse sido demais. A outra, contudo, não parecia incomodada, mas séria, e até um pouco triste.

— Você me disse um tempo atrás que queria tirar algo dessa experiência toda — era a primeira vez que Elizaveta lhe falava algo sem olhar nos olhos, o que fez a garota redobrar a atenção — E, mesmo sem querer, eu venho pensando sem parar sobre o que isso implica para mim e… Eu não sei. Realmente não faço a menor ideia. Fiquei voltando nas minhas memórias, procurando algum propósito que se concretizaria só aqui, só por meio dessa Seleção peculiar, mas meu passado está longe demais para que eu possa alcançar. É um poço sem fundo… — ela pareceu perceber o que estava dizendo, e parou de supetão — Mas eu me perdi. O que eu quis dizer é que a maioria de nós não sabe o que está fazendo, nem se é boa o suficiente para qualquer que seja nosso destino aqui. Quem parece que sabe, provavelmente está mentindo.

Era como se Katherine pudesse ver o esforço colossal da outra para abrir um sorriso, que foi tão melancólico que chegou a doer.

— De certa forma é reconfortante, não ser a única sem rumo — ela pesou suas próximas palavras com cuidado — Mas… O que tem seu passado? É muito ruim? — vendo a reticência de Eliza em responder, ela voltou atrás em sua curiosidade rapidamente — Não precisa me contar! É que você pareceu tão triste agora a pouco…

Katherine esperava que Elizaveta tentasse mais um sorriso, uma piada ou até se irritasse e fosse embora. Não esperava, de jeito nenhum, que ela decidisse responder:

— Não me lembro. Não sei se foi ruim, se foi bom, não sei sequer o nome dos meus pais. Esse sobrenome que eu carrego não é deles, é da mulher que me acolheu e cuidou de mim, então não há uma pista sequer sobre de onde eu vim. 

— Nada? — Eliza balançou a cabeça em negação.

— Para todos os efeitos, comecei a existir no mundo já com 6 anos, quando me acharam na fronteira da cidade onde cresci, sozinha e com sangue na roupa — ela deu de ombros, numa displicência completamente fora de lugar — O melhor chute de todo mundo é que meus pais morreram no massacre do coven da cidade vizinha alguns dias antes. 

— Eu sinto muito, Eliza… — murmurou Katherine, finalmente tomando coragem para chegar perto da outra e segurar sua mão. 

— Está tudo bem… Eu não lembro. Não dá para sentir luto por quem a gente não se lembra — respondeu, tentando minimizar a situação. Ela ainda não conseguia sorrir, contudo — E eu acho que isso tudo é só meu ego lutando contra a ideia de que eu não sou especial. Ter sido escolhida para a Seleção não me faz digna de um destino incrível ou qualquer baboseira assim. 

— Mas o vazio fica — pelo menos daquela vez Kat sabia do que estava falando, um pouquinho que fosse. Tomou coragem para continuar. Não podia chorar, não agora — Sabia que minha mãe se chamava Eliza? Eu achei que isso era uma coincidência engraçada quando você foi a primeira amiga que eu fiz aqui dentro, mas estou um pouco mais inclinada a acreditar em destino agora... Ela morreu quando eu nasci. E eu não tenho nenhuma memória minha dela, mas sinto falta do espaço vazio que ela deixou. Mas eu tive meu pai, e as memórias que ele tinha dela para conhecê-la, nem que fosse um pouco. Você… Você nem isso pôde ter, e eu nem imagino o quanto isso deve doer. Não precisa fingir que não.

— Isso não é justo — respondeu Elizaveta, finalmente, desviando o olhar marejado — Eu vim aqui para te consolar, não o contrário.

Ficaram as duas ali, chorosas e rindo da situação. Tinham sido poucas vezes que Katherine tinha se sentido tão acompanhada, tão entendida. Talvez fosse por aquilo que tinha que estar naquele palácio, afinal.

— Ah, outra coisa — lembrou-se Katherine, até assustando Eliza com a mudança de tom repentina — Você tem sim uma pista sobre quem eram seus pais! 

— O coven deles? Não adianta, não tem nenhuma informação divulgada ao público geral. Afinal, porque a população ia se importar com um bando de bruxos fora da lei? — afirmou, amarga.

— Faz mais de um mês que nós não somos mais o público geral — apontou Katherine, se sentindo animada com a possibilidade de ajudar — Você não acha que, se tem um lugar com alguma informação sobre seus pais, é aqui? Quer dizer, você viu o tamanho daquela biblioteca?

Elizaveta piscou, absorvendo a informação. Parecia desnorteada.

— Mas seria como procurar uma agulha em um palheiro do tamanho de uma casa — disse finalmente, exasperada — Tem mais chance de eu virar Czarina do que achar essa informação em tempo hábil.

— Eu posso ajudar — respondeu Katherine, sentindo uma confiança que não lhe vinha com facilidade — Isso é, se eu não for eliminada amanhã. E, claro, se você quiser também.

Elizaveta, depois de pensar um pouco, sorriu de verdade antes de responder:

— Duvido que você saiba no que está se metendo, mas eu aceito. Vamos pensar nisso como a oportunidade do destino nos provar que ele existe.

*

Na manhã seguinte, quando Katherine recebeu um convite para mais um encontro com o czareviche, dessa vez acompanhado de um ingresso para assistir a orquestra municipal tocando no final da semana, ela soube que teria algum tempo antes de ser eliminada. Se aquilo era um sinal de que o destino tinha aceitado o desafio, só o tempo diria.

 


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Notas finais do capítulo

É isso! Não farei promessas sobre quando o próximo capítulo sai, mas, se a vida me ajudar, vai ser logo kkkkkk. Espero que estejam saudáveis e bem dentro do possível. Se cuidem! ❤



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