Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 18
O convite




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O convite

Embora fosse hora do desjejum, o castelo estava rodeado por uma neblina densa e a noite escura estendia-se pelo horizonte. Todos os funcionários estavam bem agasalhados, não seria diferente com os famosos deuses infernais. Hades agora usava uma capa mais grossa, de pele de urso, que cobria os ombros e aquecia o corpo. Uma das mãos segurava a xícara fervente. Seus olhos, porém, estavam fixos na deusa das flores, curiosos e felinos. 

Perséfone estava estranha, notou, e tinha certeza de que não era apenas uma impressão boba e preocupada de um coração zeloso graças ao amor. Haviam olheiras proeminentes no rosto juvenil, acompanhadas de uma expressão apática de quem tivera uma péssima noite. Para piorar, ela não havia dito nada além de um mísero bom dia. Ninguém pareceu notar a indisposição da moça, mas Hades a conhecia bem e sabia que algo não estava certo.

As coisas correram bem durante a refeição, mas isso só até Nyx perceber que a jovem mal tocara na comida.

— Vamos, querida, só essa maçã. — insistiu pela milionésima vez; Perséfone suspirou pesadamente e repuxou o canto dos lábios em um sorriso torto.

— Já estou satisfeita, Nyx.

— Não dá para ficar satisfeita só com uma tortinha. — reclamou — Vai, querida. Só essa maçã e juro que não peço para comer mais nada.

Perséfone, relutante, acabou por aceitar. Abocanhou, sentindo o gosto doce preencher a boca com certo desgosto.

— Ficaria ainda mais satisfeita se comesse um pouco mais.

— Tento recompensar no jantar, pode ser?

A oferta foi tentadora, tanto que a deusa maior aceitou. Ninguém mais tocou no assunto. Nyx junto dos filhos tagarelavam. Hécate mantinha-se quieta, com a mesma expressão de poucos amigos; rolava os olhos para os comentários eventuais dos irmãos e as vezes os desviava para Hades.

É claro que Perséfone notou os olhares discretos da deusa da magia. Mais uma vez, aquele incomodo terrível retornou, um frio que atingiu seu estômago em cheio. Não sabia o que era – a única coisa que sabia era que, de fato, detestava a sensação.

Hécate estava sentada ao lado de Hades e, embora os dois não conversassem, não tinha como negar que formavam um casal harmonioso. Eles eram bonitos juntos, combinavam de alguma forma, Hécate com sua áurea cheia de pompa e arrogância e Hades com o olhar sombrio.

Ela era muito bonita, Perséfone observou, infeliz. Talvez a mulher mais bonita que já vira, depois de Afrodite, com aqueles olhos ametistas ferozes e encantadores, os lábios grossos pintados de vermelho e o rosto cheio de ângulos bonitos que davam um toque coquete. Isso sem mencionar o bom gosto. Hécate havia escolhido para aquela manhã um vestido de mangas com um caimento incrível, destacando cada curva de seu corpo.

Era evidente que Hades se apaixonaria por uma criatura tão encantadora como Hécate. Quem não gostaria de uma mulher tão bonita?

O pensamento só serviu para deixa-la ainda mais deprimida. Ela não era tão bonita quanto Hécate, nem tão...

Espera.

Sacudiu a cabeça, os olhos levemente arregalados. O que raios estava pensando?

— Está tudo bem? — do outro lado da mesa, Hades mantinha as sobrancelhas arqueadas, achando as atitudes da moça um tanto quanto peculiares. Nunca a vira daquela forma. — Você parece um pouco pálida, querida. Dormiu bem? Se o quarto não estiver confortável, podemos te mudar para outro.

— Está tudo bem. — piscou sequencialmente, sentindo as bochechas esquentarem. Apertou a xícara entre os dedos, envergonhada por ter sido pega no flagra tendo pensamentos tão... errados. — Só tive um pesadelo de madrugada, nada demais. Não precisa se preocupar.

— Se precisar de qualquer coisa, sabe que pode contar conosco. — ele falou, ignorando a risada de escarnio que as ultimas palavras causaram em Hécate.

Estava claro que não podia contar com todos. Ainda assim, manteve a postura.

— Sei disso. Obrigada.

O sorriso que ele abriu em seguida a deixou levemente envergonhada – e encantada. De fato, Hades tinha um sorriso lindo.

Ainda pensava nisso após o desjejum, caminhando pelos corredores, em direção a biblioteca. Suspirou pesadamente, a imagem do deus pairando na mente, perseguindo-a.

— Devo estar enlouquecendo. — essa era a única explicação plausível para tais pensamentos. Meneou a cabeça, preocupada, o barulho das sandálias contra o piso de pedra ecoando. — Ficar presa nesse castelo por tanto tempo não está me fazendo bem.

— Nesse caso, você deveria tomar um ar.

Ela gritou de susto ao escutar a voz que, embora conhecida, foi inesperada. Tânatos gargalhou alto da reação da deusa, que ainda ofegava mantendo uma das mãos sobre o peito.

— Quer me matar?

— Desculpe. Não foi intensão minha.

— Tenho a impressão de que foi.

— Não vou mentir que, no fundo, foi sim.

— Palhaço.

— Obrigado.

— Isso não foi um elogio. 

Ele sorriu torto. Ao recuperar a dignidade e ajeitar a postura, ela arqueou as sobrancelhas.

— Por acaso está me seguindo?

— Óbvio que não. Só estávamos indo na mesma direção, coincidentemente. — deu de ombros. Perséfone suspirou. Estava tão pensativa que sequer havia escutado ou sentido a presença dele. — E o que é que se passa nessa sua cabecinha? Você está estranha hoje, não pense que não reparei.

— Tive um pesadelo e acabei dormindo mal. 

— Desculpa esfarrapada, mas fingirei que acredito.

A deusa rolou os olhos, mas não desmentiu. A verdade é que passara a noite em claro remoendo o antigo relacionamento do deus dos mortos com a feiticeira. 

— Vai fazer o que agora?

— Quer mesmo saber? — questionou. Ela sentiu uma dúvida sincera. Tanatos não parecia ser o tipo de pessoa que saía por aí tomando decisões corretas. Como a resposta foi o silencio, e silencio consente, ele continuou. — Vou ao meu escritório fazer uma lista. Hoje é dia de Hermes vir ao castelo.

— Oh. — arqueou as sobrancelhas. Era verdade. Hermes aparecia no castelo uma vez por mês para poupar os residentes de ter que subir desnecessariamente ao mundo dos mortais. — O que pretende pedir?

— Só algumas coisinhas para o aniversário de Hades. Não fazemos comemorações ou coisas parecidas como no Olimpo, mas um presente sempre é bom, não é mesmo?

— Aniversário? — arregalou os olhos. — Quando é o aniversário dele?  

— Daqui dois dias. Assim como o do seu pai, da sua mãe, da minha mãe e da maioria dos deuses primordiais. — havia um quê de sarcasmo na voz máscula ao dizer a última frase. Ela ficou péssima, porque Tânatos a encarava como se estivesse diante de um extraterrestre. — Sério, Perséfone, você é muito desligada.

— Em minha defesa, — ofegou, ofendida por levar sermão logo dele, a pessoa com menos moral que ela conhecia para dar sermão em alguém. — eu não faço ideia nem de quantos dias estou aqui. É sempre noite. O tempo passa de um jeito estranho.

— Ok, tudo bem. Você não é tão ignorante assim. 

— Vou levar isso como um elogio.

Eles continuaram tagarelando, mas separaram-se assim que chegaram na entrada da biblioteca. Perséfone de repente parou, pensativa, e procurou pela pintura abandonada atrás das prateleiras – a pintura que pretendia presentear a Hades há algum tempo. Já que queria tanto dar a pintura, porque não entregá-la no aniversário dele? 

Estava horrível, mas com um pouco de técnica dava para ajeitar. O pouco que aprendera nas aulas de pintura no ateliê com o deus serviria para resolver o problema.

Assim, após organizar o material que havia guardado nas gavetas da escrivaninha, Perséfone começou a brincar com os pinceis, fazendo esboços, misturando cores e ajeitando os traçados.

Pintar era divertido. Mais do que técnica, exigia atenção. E isso ela tinha de sobra, ainda mais com tão pouco para fazer durante o dia. Nem viu o tempo passar e, quando deu por si, era fim de tarde e havia manchado todo o vestido com uma vastidão de tintas coloridas.

Ao invés de deixar a tela abandonada na biblioteca em meio as prateleiras, resolveu leva-la aos aposentos para guardar com todo cuidado, afinal, a tinta ainda não estava seca e qualquer movimento estragaria todo seu trabalho duro.

Foi com esses pensamentos que Perséfone carregou a pesada tela para o quarto. Colocou-a no chão, ao lado da cama e observou-a. Não era a melhor pintura do mundo, mas daria para o gasto. O importante é a intensão, não?

Após um bom tempo no banho quente, vestiu-se em uma toga simples que chegava ao calcanhar, jogando por cima um xale quentinho que serviria para proteger seu pobre corpo do frio invernal do Submundo.

Pretendia dormir um pouco antes da refeição noturna, mas foi surpreendida por uma batida leve na porta.

Surpreendentemente, era Hades quem estava parado ali, encostado no batente, com uma expressão preocupada no rosto.

— Olá, meu bem.

— Hades! Que surpresa. — foi realmente uma surpresa. Há algum tempo ele não aparecia em seu quarto.

— Estou incomodando? — coçou a nuca, espiando o cômodo por cima da cabeça dela.

— Imagina. — ela deu passagem. — Entre.

Ele o fez. Perséfone sequer pensou no que estava fazendo, até realmente fazê-lo. Há algum tempo, se Hades tivesse entrado em seu quarto para conversar, encararia como algo normal. Mas de alguma forma, agora, no atual momento, pensar que estavam sozinhos em um quarto fez com que ela sentisse uma tensão no ar.

Uma eletricidade estranha.

Algo que causou borboletas em seu estômago.

Ela engoliu o seco, sentindo o suor escorrer nos dedos das mãos e arrependeu-se internamente pelo convite tão inocente que fizera. Mas não tinha mais volta, ele já estava diante dela feito uma muralha, com seus ombros largos e olhos profundos.

Ao contrário dela, que estava confusa com aquelas sensações tão inusitadas e desconhecidas, Hades sentia-se nervoso, porque passara a noite anterior em claro pensando no que Nyx havia lhe dito sobre mudar de estratégia, e agora, diante do amor de sua vida, vendo que não havia muitas opções além de acatar aos conselhos da deusa da noite, finalmente resolvera dar um primeiro passo para o que seria a situação mais estranha que já vivera.

— Bom, eu vim aqui — ele afastou a gola do pescoço. Apesar de parecer normal, com as feições duras, internamente ele só desejava enfiar a cabeça em algum buraco. — para fazer um convite.

— Convite?

— Bom, quero te convidar para jantar. Amanhã.

— Jantar? — ela não entendeu, já que eles sempre jantavam.

— É. Um jantar diferente.

— Ah, que ótimo! — aquilo definitivamente a animou. Seria bom fazer algo diferente, para variar. — Já comunicou aos outros?

Hades a encarou por um minuto – acredite, pareceu uma eternidade. Isso tudo em silencio, como se pensasse na resposta. Perséfone não entendeu o motivo da demora.

A verdade é que o deus estava prestes a explodir, pensando que as palavras seguintes, uma vez jogadas no ar, não teriam mais volta. Mudariam o curso da situação, talvez até mesmo a maneira que Perséfone o veria – e ele não queria que ela tivesse uma visão negativa dele.

Ele realmente não queria. Temia que isso fosse acontecer.

Não podia mantê-la presa ali com ele para o resto da vida, embora seu lado egoísta desejasse isso. Precisava agir. Precisava mostrar que o que queria ia além da amizade.

E, para isso, o primeiro passo seria necessário.

Ele respirou fundo, resolvendo dizer logo. Se passasse mais um segundo refletindo sobre o assunto, acabaria desistindo.

E se tinha algo que ele odiava, era a covardia.

— Acho que você não entendeu. — coçou a nuca, tímido.

— O que quer dizer?

— Os outros não irão. — a sombra da compreensão surgiu no rosto de Perséfone. — Será um jantar nosso. Só eu e você. Então, Perséfone... você aceita? 


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Notas finais do capítulo

Eai? O que acharam?