Bernadette escrita por The Thief


Capítulo 1
Capítulo único: O Homem Na Floresta


Notas iniciais do capítulo

Link da música: https://www.youtube.com/watch?v=VyEaHN7QKik

Apesar do clipe ser bizarro (e eu sei que é). Eu gosto de como Bernadette (que eu vejo como a morte) é representada como algo bom, positivo e até mesmo libertador. Quis trabalhar essa ideia aqui, partindo pra uma coisa mais doida, menos preto no branco do que eu costumo fazer.



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Galhos quebrando, corvos, grilos, água corrente.

 Os sons que eu ouvia assim que despertei se assemelhavam aos de uma noite em uma fazenda distante da cidade. Mesmo assim, pareciam deslocados, fora de tom. Levantei do chão e olhei ao redor: uma floresta densa, não era possível se ver lua alguma, luz alguma. Tudo eram contornos quase sem contraste algum. Não conseguir distinguir onde eu estava no mundo era algo aterrador.

Um corvo passou rasante perto do meu ombro. Com o susto, quase caí novamente no chão. A agonia da cegueira começava a incomodar. Tateava as coisas ao meu redor, mesmo isso não sendo seguro em um ambiente de chão irregular e criaturas peçonhentas nos troncos das árvores. Tentava, em vão, não pensar em como vim parar aqui. Minha mente se encontra nebulosa, perdida em confusão.

Caminhava devagar, sem rumo. Esperava em algum momento achar uma clareira e me livrar da falta de visão, achar enfim a lua. Tive um estalo. Não era a melhor das ideias, mas foi o que eu consegui pensar: caminharia usando como guia o barulho de água, muito provavelmente do rio. “Se há rio, há clareira” pensei.

Sentia a terra mais arenosa no chão, o cheiro da água, a umidade no ar. Percebia o céu mais azulado, mais limpo, sem as infames cortinas de treva que as árvores formavam. Mesmo assim, não tinha lua alguma, e a luz era quase inexistente. Era estranho, tudo era estranho. Mesmo que a luz tivesse ficado mais forte agora, ainda não dava para ver nada. Isso não é normal, não deveria ser.

— Acho que fica mais fácil se você abrir os olhos — a voz era melodiosa, adentrava os ouvidos como uma canção triste.

— Abrir os olhos? Do que fala? Quem é você? — Virei-me na direção da voz. Podia ver um contorno na escuridão, embaçado, quase disforme... era uma mulher?

— Bastante perguntas. Não entendo... se está sofrendo tanto com a escuridão, por que não abre os olhos?

— Meus olhos já estão abertos. Novamente, quem é você?

— Sou Bernadette, uma guia. E se não consegue ver a beleza deste lugar, é porque está cego... homem prateado.

— Homem prateado? Estou... pintado de prata? Como enxerga se eu não consigo?

— Não me faça repetir, se não consegue ver a beleza deste lugar, é porque está cego. Abra os olhos de uma vez!

— Meus olhos já estão abertos! — Insisti, nervoso. Levei a mão aos olhos para confirmar.

O quê? Como assim? Meus olhos estão fechados, mas todo esse tempo eu jurava que estavam abertos. A quanto tempo eu estou assim? A moça toca em meu rosto. Sua mão é delicada, mas da ponta dos dedos parece sair uma substância viscosa. Isso deveria ser algo muito estranho, não? Eu deveria correr agora, ela talvez seja uma dessas lendas urbanas que te sequestra e arranca fora seus órgãos. Teria ela arrancado meus olhos para vender no mercado negro? Não, ainda os sinto aqui. Por que não consigo abrir os olhos? O que há de errado comigo? Estou confuso, estou cansado...

— Estou cego.

— Não foi o que eu te disse? Só que tudo bem, eu entendi agora.

— Você... entendeu?

— Aqui você não precisa mais se proteger... abrace a verdade, liberte-se. Eu fiquei curiosa por causa da sua pele prateada, no entanto agora eu entendo. Foi assim que aconteceu, não foi?

— Não... — me debatia, não sabia o porquê, mas aquela fala me incomodava profundamente. — Pare! Não me faça dizer em voz alta.

Do que eu estava falando? Dizer o que em voz alta? Ela me irrita tanto, tudo isso me irrita tanto. Eu não quero mais estar cego nesta floresta, não quero estar com essa estranha chamada Bernadette, não quero que ela continue a me perseguir com suas verdades não ditas, com suas charadas não concluídas, sua voz triste, as mãos viscosas.

— Abra os olhos... faça isso parar.

— Bernadette, se eu abrir os olhos, essa angústia.

“Oh! Bernadette, tu és minha liberdade?” Mal a conheci e minha mente já formula perguntas constrangedoras, pensa em acatar seu pedido. Que poder magnético o desta mulher cujo nem mesmo o rosto sei como é. Talvez se abrisse os olhos, pudesse enfim desvendar o enigma de sua aparência. Tenho medo, indago a mim mesmo há quanto tempo estou aqui, no conforto de seu toque. Na minha razão, estou certo de que não se passou mais de quinze minutos desde que despertei nesta floresta e encontrei Bernadette, por outro lado, parece que estou ajoelhado com suas mãos em meu rosto durante toda uma eternidade. Não admito em voz alta, todavia aquele pequeno gesto era calmante e amedrontador ao mesmo tempo: era maternal e desconhecido simultaneamente.

 A incapacidade de enxergar parece estar tomando também a minha capacidade de perceber a passagem do tempo. Se bem que, quando percebi? Olhando toda a minha vida, em algum momento eu verdadeiramente olhei com atenção para o tempo que se passava? Não, não tinha tempo para isso. Sou um homem de vida corrida, atarefado. Quando não tenho o que fazer, arrumo o que fazer. Meu pai sempre me disse que tempo é a coisa mais preciosa que temos, irrecuperável, então eu deveria procurar ao máximo fazê-lo valer a pena. Por isso eu não desperdiço tempo, por isso eu sempre estou atarefado.

 Eu fiz o meu tempo valer a pena. Fiz o meu tempo valer a pena? Sim, eu fiz.

Eu fiz?

Em uma ação impulsionada por aquelas pequenas reflexões, forcei-me ao máximo. Quebrei as barreiras de remela como se fosse o muro de Berlin, que me separava do mundo civilizado, da existência civilizada. Abri os olhos com tudo. Vi primeiramente o rosto dela. Bernadette. Olhos pequenos, marcados de maquiagem escura. Cabelo curto, raspado dos lados, com uma grande franja reta e lábios pintados de roxo. Era linda, aquele tipo de beleza que você encontra em editorias de moda. E então, observo ao meu redor.

Mesmo a noite, as cores eram vivas. O rio, cristalino, parecia emitir luz de seu interior. As folhas das árvores pareciam todas beijadas pela relva, mesmo que a terra não anunciasse chuva recente. Encontrava ali a beleza em todas as suas formas e essa perfeição me convidava ao repouso, ao descanso.

— Bernadette, tu és minha liberdade — externei a frase constrangedora que construí em minha mente. Ela, que conheço faz pouco tempo. Ela que é como família para mim. — Celebro o dia que mudaste minha história de vida.

— ... e morte. Sua história de vida e morte. Por que foi assim que aconteceu, homem prateado.

— Eu sei — toquei a grama, o lugar onde fui alcançado e onde vi findar minha vida.

— Você sabe o porquê? — Levantou-me do chão, queria que eu caminhasse a seu lado.

— Não importa o porquê. Levantamos o véu — tudo estava claro para mim agora, não era mais preciso indagar, duvidar sobre minha conduta em vida. — Estamos sós, isso é tudo que precisamos.

Ela chorou lágrimas de máscara de cílios, negras, densas. Sim, estamos sós e não há para onde correr...

nem ninguém para culpar.


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Notas finais do capítulo

Bem, é isso. Espero que tenham gostado!