Orgulho para denises escrita por Lyn Black


Capítulo 1
Denise


Notas iniciais do capítulo

Se eu fico emocionada com esse texto? Sim.
Espero que gostem!
Nunca esqueçam que existir como LGBTQ+ já é um ato de resistência e ninguém pode tirar isso de você.
Boa leitura.



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orgulho para denises

por lyn black -  capítulo único

 

Ela cutuca o espelho, na espera de que seu reflexo se desdobre em quem ela deveria ser. Na próxima vez que sua mão entra em contato com ele, há uma brutalidade triste. Denise encara os olhos murchos, a pele oleosa e seu corpo; busca sedenta encontrar o que faltou nela para ser completa. O que faltou em sua cintura para sentir algum tipo de vontade de beijar algum garoto, qualquer que fosse? Será que era efeito colateral de não ter comido os vegetais quando criança? Tarde demais, pensa. A menina se olha sem opção, não consegue quebrar essa parte dela sem destruir todo o resto. E, se ela se destruir, do quê valerá além de mais uma cova no cemitério?

Nas ruas, anda de capuz, tem medo de que alguém a enxergue como é. Tem medo de muitas coisas. Tem medo do escuro. Tem medo de não ter mais uma casa. Tem até medo de nunca ter um coração partido. Seu pior medo, porém, é olhar nos olhos de desconhecidos abraçada naquela bandeira arco-íris que vê no Instagram. Sua mão é guiada por um inconsciente, uma ânsia por ser preenchida por tantas cores, mas Denise se retém. Não pode se dar ao luxo de ter esperança, pensa amarga. Ainda é nova, mas já sentiu tantos chicotes que assusta aos velhos que levantam seu queixo, exigindo que os olhe nos olhos enquanto brigam com ela.

Denise não deveria ser tão bruta, dizem. A mãe já cansada encosta na batente da porta, a mão firme na cruz, esperando sua menininha despertar daquele suplício de uma vida.  Está explícito de alguma forma que ela não será o que a mãe, Carla, sempre quis. Muito menos o que Roberto, o pai, sempre aspirou. Talvez porque Denise seja sua própria pessoa, não uma extensão dos desejos de seus pais, mas ela se retorce na cama.

Terá colo caso for vista encarando demais sua melhor amiga, mais do que uma melhor amiga deveria fazer? Terá um ombro para choro se gritarem para ela na rua “sapatão, fanchona, nojenta”? E se bateram nela, terá consolo em algum lugar, mesmo na Terra, onde possa descansar em paz? Denise sabe que não, e Denise sabe que dói.

Escrever sobre isso é tão seguro quanto o possível, mas esconde seu berro sufocado embaixo das tábuas de sua cama. Ela não é doente, jura por todas as divindades que já teve contato. O mundo que é. Tem que haver muito ódio para querer privá-la de tanta coisa. É incrível como algumas marcas constroem quem Denise é, e por isso ela se enraivece quando a amiga de infância diz que se alguém está sendo discriminado e atacado com a santa prece, que se retire do recinto. Denise aprendeu que não existem lágrimas suficientes para tampar a falta de amparo, mas ela chora desenfreadamente e se faz uma cachoeira. Precisa liberar fisicamente tanto peso, tanta maquiagem e tanta dor de ter que fingir gostar do filho do amigo de seu pai.

Um dia, Denise ganha um peso leve: é a idade. Esta se desdobra em asas reconhecidas por governo, e ela se distancia aos poucos, ainda dolorida, quebrada, mas com algo no peito: orgulho. Denise aprendeu por debaixo de sua pele repleta de cicatrizes e propositais arranhões que ela precisa se amar acima de todos que ama porque só ela estará com ela mesma até o final da sua vida, em todos os momentos. Ela aprendeu que vai se aceitar ainda cada vez que se enxergar no espelho como é.

Dói, dói, mas não disseram uma vez que amar é doloroso? Ela odeia esse ditado, mas prefere usá-lo se for sobre se amar. Há coisas que nunca vão deixar de perturbá-la: suas bases, a família que finge que ela não existe, a casa que deixou para trás. Ainda se pega se recriminando, e Denise sabe do fundo da alma que é doloroso, mas viver como ela é supera qualquer dor. Esse é o poder da liberdade.

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.

Denise não tem mais medo de que vejam como ela tem aquele arco-íris brilhando através de cada poro dela, mas também não aguenta quando a resumem a ele. Ao mesmo tempo, nem mesmo sua fala parece ser levada a sério nesse quesito. É engraçado como apontam para ela nas estatísticas de lesbofobia, mas a negam o holofote.

Ela se acostuma a estar por si mesma nesse mundo, e tem orgulho de ser quem é. Ela sabe quantos outros são mortos, torturados e impostos a miséria de sofrimento por serem como ela. Fora da heteronormatividade. Fora do que se entende por gênero. Ou ambos. Os muitos pontos fora da curva que incomodam tantos. Incomodam só por serem. Então ela encontra gente como ela, e gente que tenta entender do seu lugar o que ela, Denise, passou, e dá as mãos para essas pessoas.

Sim, ela vai gritar com muito orgulho e também muita alegria sobre a sua identidade. Ela se torna essa faceta da sua identidade quando é exposta a violência verbal, física e psicológica. Ela se torna essa faceta de sua identidade quando ama outras mulheres, e quando pensa em se relacionar romântica ou sexualmente com outras mulheres. Nada mais justo do que lutar com toda sua boa energia para que tantas outras, outros e outrxs possam se enxergar nos espelhos com enormes sorrisos nos rostos, diferente do que ela passou.

É junho, e como todo mês, toda semana e todo dia, Denise se levanta da cama e, inconscientemente se relembra do orgulho e amor que construiu. A diferença é que nesse mês, além de orgulho, vai ter ainda mais barulho, mobilização, festa e muita cor, e um dia reservado e intitulado por causa desse orgulho. Muita gente se encontrando, falando e causando. Causar virou verbo intransitivo, Denise pensa risonha, e ela bem sabe que o que ela ainda vai causar por aí.

 

 


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Notas finais do capítulo

Suas vidas importam, não estamos sozinhos. Um beijo enorme em cada um que chegou até aqui!