Labareda de Sombras ll A Rainha Vermelha escrita por Lisa Nogma


Capítulo 3
Capítulo 3




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   Capítulo 3                

    Lena

 

As diversas cores que resplandeciam o Palácio de Whatefire eram bem mais que conhecidas para Lena. Ela caminhava entre as poderosas casas e seus membros que as rodeavam. Seus vestidos coloridos, suas insígnias e medalhas perfeitamente adornadas em seus peitos faziam essas mesmas pessoas, aos olhos dela, serem enormes. Grandes. Como gigantes reunidos no céu para comemorar uma grande causa. O som da música clássica que tocava era bela, mas alta, quase ensurdecedora para Lena que tapa os ouvidos com força. O som da música se mistura com as diversas e diferentes vozes das pessoas no salão, virando uma bagunça de falas não entendíveis para ela. Tentando abafar os sons com as mãos, ela corre cada vez mais rápido em frente. Ela precisa sair dali, não suporta mais o barulho. Quando está chegando perto da saída, começa a ver as frestas de luz que saem da porta. Aquilo lhe traz alívio. Ela começa a correr mais rápido. Nunca desejou tanto na vida ter a sensação do silêncio que lhe esperava do lado de fora.  

 

Quando chega a centímetros de alcançar a porta um grito agudo se sobressai sobre o barulho que ela ouvia. Era uma voz... uma voz conhecida. Que gritava o seu nome. "Lena!". Os gritos da voz abafavam tudo que ela estava ouvindo antes. Ela olha para cima, para os gigantes coloridos, suas bocas se mexiam e eles se moviam como fantoches, mas agora mais nenhum som eles emitem. Estavam silenciados. Ela volta a olhar para o lado oposto, a voz continua incessantemente a chamando, clamando por ela na escuridão. Ela nem olha mais para a porta. Ele é mais importante. Então ela corre para o fundo do salão, corre como se sua vida dependesse disso. Seus pés fazem um barulho alto e contínuo no mármore frio ecoando em seus ouvidos, assim, como também, a voz que a chama pelo nome.   

 

Quanto mais ela corre para a voz, para a escuridão os sons dos gigantes

voltam, aumentam gradualmente sem cessar. Até que pararam de vez.

Seus pés a enganam, e tropeçam neles mesmo fazendo-a cair de cara no chão frio. Ela vira a cabeça para cima antes de pegar um grande impulso com as mãos e se levantar, mas percebe que olhos a observam. Grandes olhos. Olhos furiosos que a encaram. Ela nunca teve tanto medo em toda a sua vida. Lena então levanta rapidamente e começa a correr de novo. Não pode deixar que isso lhe atrapalhe, mas mãos grandes e pesadas a barram, segurando seus braços e pernas e a prendendo, a apertando, a sufocando.

Agora ela só consegue ouvir o seu grito ecoando pelo salão. Ela tenta se livrar das grandes mãos, mas parece que isso só faz com que o aperto seja cada vez maior. Agora ela não consegue mais ouvir mais nada. Nem a outra voz no escuro. Nem as vozes dos gigantes. Nem seu próprio grito. Já era tarde a porta estava fechada, a luz tinha sumido e as vozes apagadas.

Ela estava sendo sugada pela escuridão.

 

— LENA!! LENA!!

 

Sun a chama e a balança com força. Lena abre os olhos extremamente assustada e ofegante. Seus cabelos estão grudados em sua face e costas. Ela olha do seu peito até suas mão e arregala os olhos com pavor. Ela está completamente machucada, cheia de hematomas. Sua pele está cinza quase preta. Ela tenta se levantar rapidamente da cama, mas acaba parando e colocando uma das mãos na cabeça. Sua cabeça doía muito, quase insuportavelmente, e acaba  soltando um grunhido baixo de dor.

 

Sun e Angelika olham para Lena assustadas. Sun rapidamente diz algo baixinho e discretamente para Angelika que entende a mensagem quase silenciosa e sai rapidamente do quarto.

 

— Mais um pesadelo? — Sun chega mais perto e senta na ponta da cama.

 

— Não. Eu estou cansada, só isso.  

 

— Cansada?! Lena olhe para você, para seus braços. Você deve ter se coçado a noite toda.  

 

— O problema não é só esse, a minha cabeça dói muito. — Lena pressiona com mais força, agora com as duas mãos, às têmporas.  

 

Sun pega as duas mãos da amiga e as aperta delicadamente. Com o seu toque rapidamente as manchas vão desaparecendo assim como sua terrível dor de cabeça. Seu coração vai desacelerando devagar, ela sente sua mente mais tranquila e agora quase não lembra mais do sonho. Nunca teve certeza se o poder de cura que Sun tinha é que sempre apagava seus sonhos de sua memória ou se era ela mesmo que os guardava no fundo de seu esquecimento. Mas, não se importava muito com isso, pois independentemente do motivo agora eles não a atormentavam mais.

 

— Obrigada, não sei o que seria de mim sem a sua ajuda. — Lena diz para Sun quando ela termina o processo de cura. Lena levanta da cama desviando de sua amiga parada ali, ela veste seu robe, vai em direção ao guarda roupa e começa a fuçar-lo em busca de alguma peça apropriada para o dia, Lena não costumava separar roupas caras e excêntricas para ficar pelo casarão, mesmo com a reprovação de Apolena, ela sempre usava roupas que se sentisse confortável e que a aquece-se do frio extremo de Hovel, principalmente.

 

Ela pega algumas roupas e as coloca em cima do divã com pressa, até que para pôr um segundo e olha para o espelho da penteadeira e começa a respirar fundo, frustrada.

 

— Já tinha me esquecido de que dia é hoje. — Fala mais para si do que para Sun. Ela volta ao guarda roupa e começa a reabrir e revirar as gavetas. — Eu preciso de uma roupa para cavalgar até a vila...

 

— Lena. — Sun a chama enquanto Lena continua a falar e vasculhar as roupas desesperadamente.

 

— Preciso ver se os novos empregados já chegaram, se já sabem o que fazer....

 

— Lena!

 

Lena olha as horas no relógio da parede e se surpreende. — Pelas minhas cores! Era para você ter me acordado mais cedo, Sue!

 

— LENA! — Sun praticamente grita com Lena, que se assusta. Ela nem se lembrava qual foi a última vez que a viu elevar a voz desse jeito para quem quer que fosse. Lena para de fazer o que fazia e olha para a amiga, que está de pé a poucos metros dela, com seus olhos focados em Lena.

 

— Não deixe que isso te consuma. — Sua voz é seria, Lena percebe que isso não soou como um conselho, mas quase como uma ordem.  

 

— Não está me afetando, isso.. — Lena aponta para a cama vazia e bagunçada. — Não foi nada, você bem sabe que já aconteceu antes.

 

— Pare de se enganar, Lena. Você bem sabe que não tem uma crise dessas a muito tempo, agora foi só seus irmãos chegarem para voltar tudo de novo.  

 

— Não é por conta disso! Você bem sabe.

 

— Eu sei sim, é por conta dela, da rainha. Mas sabe o que eu acho Lena?  Você está em casa, na sua casa, não precisa temer ela. Não deixe que ela derrote você!

 

Lena ri de toda a situação, quase incrédula com sua própria situação. Sun franze o cenho, não vê graça e nem entende o desespero por trás de seu sorriso.

 

— Ela já me venceu, Sue. A muito tempo. Eu só estou tentando juntar meus pedaços e seguir em frente. Como farei hoje, quando chegarem.

 

— É uma pena que ache isso, pois vai acabar te matando.  

 

Elas ficam ali sem dizer mais nenhuma palavra por um tempo. Esse era um assunto que mataram e enterraram desde que Lena se mudará definitivamente para Hovel. Lena não gostava de falar sobre e eles de perguntar, era sempre melhor deixar as coisas do jeito que estavam.

 

— Todos já estão prontos, está tudo em ordem lá embaixo e como você já bem sabe, está atrasada. — Diz Sun.

Sozinha no quarto, Lena tenta se acalmar e colocar seus pensamentos em ordem. Não é um bom dia para ter ataques histéricos como esse. As palavras de Sun ficam remoendo em sua cabeça o tempo todo "Não deixa que ela derrote você". Sabia que seu caso era perdido a anos, não poderia nem se quisesse apagar os machucados antigos de sua mente. As cicatrizes doíam e permaneceriam com ela por toda a vida. Ela era um erro. Um fracasso. Todos sabiam disso.   

 

Decide se arrumar de vez, começando por separar as roupas mais nobres que tem no guarda roupa. É óbvio que seu limite de escolha é limitado, não era como nos palácios que ia antes, onde sempre tinha muitos trajes novos e extravagantes para usar, até porque em Hovel o frio não perdoava ninguém, nem prateados, nem vermelhos, nem velhos, nem novos. Se proteger do frio era mais importante do que a aparência e na maioria das vezes o conforto falava mais alto do que a beleza das roupas.  

 

Por fim ela escolheu um vestido rose claro que lhe cobria todo o corpo, desde a garganta até os tornozelos, botas de couro, luvas e uma capa preta felpuda. A cor do vestido não era "ideal" para que ela usasse perante sua posição social no meio dos prateados, mas já que sua capa de frio a escondia quase por inteira, não se preocupou muito com isso.

 

Depois de pronta, ela desce e vai verificar como estão as coisas no casarão pessoalmente. E fica extremamente surpresa com o que vê. Tudo está em seu devido lugar, arrumado, com pessoas andando de uma lado para o outro. A muito ela não vê o casarão assim, as janelas estão com as cortinas totalmentes abertas deixando entrar a pouca luz que um dia nublado pode oferecer. A muito, Lena, não via a casa tão iluminada, manter a casa pouco iluminada era mais prático para ela e para quem trabalhava ali diariamente, além de manter a casa mais aquecida. Realmente parecia outro lugar aos olhos dela. Havia também flores coloridas que foram colocadas em cima de alguns poucos móveis, os detalhes deixavam todo o lugar mais vivo, como a tempos ela não via. Estava tão feliz que não conseguia deixar de estampar um sorriso de ponta a ponta do rosto.

 

Todos os criados que passaram por ela já estavam usando o "uniforme antigo". Vermelho. Lena odiava aquela roupa. Tanto quanto os que usavam odiavam. Era uma lembrança permanente de que eles eram inferiores para os prateados. Ratos. Sem nome, sentimentos ou histórias. Apenas aptos a servir os seus superiores. Os Prateados.  

 

Era difícil para Lena pensar que seu sangue a tornava um deles. E que ainda era filha do rei deles. Viverá tanto com os vermelhos e tão bem com eles que muitas vezes esquecia desse detalhe sanguíneo, mas ali em Hovel ela já não era a soberana prateada que vivia para ser servida pelos seus vermelhos. Ali era apenas uma prateada. Uma prateada esquecida por sua casa e esquecida pelos seus.  

 

Enquanto observa todos os detalhes do salão principal, Apolena vem a seu encontro com toda a postura de uma chefe superior. A capa vermelha de baixo de seu uniforme já está bem gasta e velha e ela não aparenta estar em um humor bom, Lena entende o porque.  

 

— Está tudo em seu devido acordo, “moja gospa” minha lady. Creio que vá querer comer alguma coisa antes de ir recepcionar Vossa Magestade nos portões da cidade.  

 

— Eu vou querer sim, diga para que coloquem qualquer comida em uma bolsa para que eu leve, vou aproveitar o tempo do caminho para comer. Não tenho a precisão da hora que eles vão chegar, então eu já vou indo para a vila.   

 

— Vai sozinha, "mala dama" pequena dama?  

 

Apolena diz com um pouco de preocupação na voz, o que faz Lena levantar levemente as sobrancelhas. Não é do feitio de Aponela ser assim.

 

— Sim, vou. Conheço muito bem o caminho.  

 

— Porque não leva Sun.  — Apolena hesita um pouco em continuar, quase como se estivesse infringindo seu próprio protocolo de conduta, arrumando um pouco mais a postura.  — Eu bem sei que ela não passa de uma vermelha qualquer, mas acho que não vão achar ruim e nem perceber a presença dela no local.

 

As palavras de Apolena ferem Lena como sal na feridas. Ela não queria de jeito nenhum escondê-los ali e brincar de casinha com a corte de seu irmão, mas era preciso parecer para que tudo que tinha conquistado permanecesse como era.  

 

— Eu irei sozinha. Não precisarei da ajuda de vocês agora, consigo ser cortês sem a ajuda de ninguém. E eu não quero parecer arrogante, Apolena, mas nesses dias, esqueça o que Anabel te instruiu a fazer. Enquanto o rei estiver aqui eu cuidarei de tudo. Depois, quando ele for embora, a casa voltará a ser toda sua.  

 

— Perfeitamente, madame. — Ela diz sem deixar tirar os olhos de Lena.

 

Apolena faz uma breve reverência impecável e sai. Parece que os dias não serão só cansativos para Lena.

Chegando ao portão principal da cidade, Lena desce do cavalo e fica a espera da realeza em um dos galpões do Forte da cidade. Como de costume a neve se estendia pelo chão como um longo tapete branco, mas, felizmente, não estava nevando naquele momento e por um milagre o vento estava fraco. Porém ainda frio. Não seria Hovel se não estivesse.  

 

Depois de mais de uma hora de espera, Lena com fome, se lembra de que trouxera com ela seu almoço e resolve comer. Estava de jejum desde cedo e não conseguiu comer durante o caminho. Estava ocupada de mais com seus próprios pensamentos que esquecerá da comer.  

 

Um lanche natural e um doce tradicional da cidade chamado Potica, uma sobremesa pouco açucarada, um bolo recheado de chocolate, com camadas de coco.  Ficou feliz por ver sua comida, esse era seu doce preferido e Angelika muito provavelmente fez para a alegrar. Ela tinha sorte de estar rodeada de pessoas como aquelas. Sua família.

 

Ela comeu sem muita pressa. Já estava ficando irritada com a demora da chegada. Ela não era a pessoa mais pontual do mundo, sempre deixava os outros a esperando, mas odiava quando a deixavam. Era um ultraje.  

 

Quando estava mordendo seu último pedaço no doce, um dos guardas do portão aparece na porta.

 

— "Gospodična" Chegaram.  

 

Num pulo Lena se levanta da mesa e arruma rapidamente as luvas de couro nas mãos. Segue em direção aos cavalos selados e monta no seu. É um costume antigo receber pessoas de alto escalão montada em um cavalo imponente, os antigos reis antes de seu pai faziam isso em Hovel, assim como as antigas casas que moravam aqui. Ela como representante dos prateados da cidade e dos antigos reis tinha que fazer o mesmo.  

 

Os portões se abrem e Lena consegue ver a frente os grandes carros fortes que carregam o rei e sua gente. São poucos até. Ela esperava mais gente.  

 

Antes de seguir mais para perto do portão com seu cavalo, o mesmo homem que anunciou a chegada do rei a chama educadamente.

 

— "Gospodična"

 

Lena olha para baixo para poder encara-lo. Ele é alto, mas em cima do cavalo ela fica bem maior que ele. Agora ela entende um pouco de onde vem o "força e poder".

 

— Sim?!

 

— Senhorita, desculpe incomodar, mas... — Ele pensa um pouco para falar quase envergonhado. — É... sua boca está suja, madame.  

 

Lena não podia se ver naquele exato momento, mas sabia que suas bochechas transpareciam ainda mais a cor de seu sangue, ardendo de vergonha.

 

— Obrigada, senhor. — Ela limpa com pressa os cantos da boca com as costas da mão e volta a olhar para a frente, tentando esquecer o ocorrido. Que vergonha.

 

Ela avança para mais perto dos carros e consegue ver alguns sentinelas que se organizam para a saída do rei do carro.  

 

Ela estava nervosa. Não queria transparecer isso de jeito nenhum. Mas estava. Seu coração estava acelerado, mas ela se concentrava em olhar mais para frente do que o escuta-lo. Era mais prudente.  

 

A primeira pessoa que seus olhos pescam é Maven. Ele sai de seu carro forte, grande e maior do que o dos outros. Maven está crescido. Mais alto. Suas roupas pretas e vermelhas contrastam com a vegetação ao seu redor. A coroa brilha em sua cabeça, resplandecendo, com o ouro recém polido. Ele é o primeiro que caminha em sua direção, seguido por Evangeline Somos e seu irmão. Atrás deles apenas mais alguns sentinelas que Lena recordava vagamente dos rostos. Eram de grandes casas de Norta; Rhambos e Provos. Além de algumas prateadas, certamente damas de companhia de Evangeline.  

 

Lena passa mais uma vez os olhos sobre aquelas pessoas, mas agora cuidadosamente. Elara não está aqui. A rainha mãe não veio para acompanhar o filho na viagem. Isso deixa Lena surpresa. Deixar o filho dela sem sua supervisão, ainda mais num momento delicado como esse, era surpreendente para Lena. Ou Elara achava essas viagens desinteressantes demais ou Hovel não era uma cidade a sua altura. De qualquer forma não ter ela ali deixava o coração de Lena mais leve. Muito mais leve.

 

Maven chega mais perto, a centímetros de Lena, mas ela não sai de cima de seu cavalo. Ele é o rei, mas eles têm o mesmo sangue, o mesmo maldito pai, ainda que ela seja considerada uma inferior para eles. Uma bastarda.  

 

— Magestade. — Lena o salda com um reverência delicada com a cabeça. — Seja bem-vindo a Hovel. — Senhores, ladys. — Ela se dirige aos demais que seguiam o rei.  

 

Lena volta seus olhos negros para Maven outras vez. Lena não sabe discernir se era por conta do ângulo em que o olhava, mas vira uma pessoa diferente da que conhecia. Ele parecia confiante, e mesmo olhando de baixo, imponente, de um jeito que Lena nunca o vira antes.  

 

— Agradecemos que aceitou de muito bom grado a nossa estadia nessa cidade tão charmosa e certamente veemente, que um dia já abrigou tão poderosos Calores. — Maven ergue um pouco o queixo para falar com Lena a olhando nos olhos. Sua voz é formal e quase entediante, como se ele já tivesse dito essas mesmas palavras mais de dez vezes nos últimos dias. Lena não duvidara de que ele tenha realmente dito, afinal eles já tinham andado o país todo praticamente. Mas ao contrário de suas palavras secas seus olhos brilhavam e se destacam entre os cílios negros.  

 

Lena quebra rapidamente o contato visual com Maven. Ele é seu irmão, sua família e ela o amo por isso, mas não pode se esquecer de que ele também é um mentiroso e um traidor da coroa que possivelmente só estava ali para algo absurdo. Precisava tomar cuidado. Ela agora observa os nobres ao redor dele, tirando os sentinelas que tem seus rostos escondidos atrás de máscaras pesadas, todos os outros aparentam estar entediados e cansados da viajem de onde quer que tivessem vindo. Evangeline, mesmo com seu vestido cintilante, ordenado em prata e seu cabelo perfeitamente arrumado, não conseguia deixar de esconder a cara emburrada que trazia consigo.  

 

— Como poderia eu negar visitas tão desejadas como essas? — A frase saiu um pouco mais sarcástica do que Lena espera, ela olha para Maven de soslaio e consegue pegar um pequeno sorriso que ele lutou bravamente para se conter. — Hovel é a cidade berço da realeza. Os reis de Norta, mesmo que não morem mais aqui, pertencem a essa terra. — Lena consegue pegar Evangeline terminar seu revirar de olhos, sem sequer disfarçar. Lena não rir apertando o máximo possível os lábios. Ela a odiava muito.  

 

— Peguem, por favor, seus cavalos, Majestade, Senhores, ladys. Vou acompanha-los até o local onde vão ficar. — Lena gesticula mostrando os cavalos já selados para que se dirijam a eles.  

 

— Cavalos? — Evangeline questiona, sua feição sugere repulsa total. O que deixa Lena com ainda mais raiva da petulância dela.  

 

— Sim, cavalos. Porquê? — Lena rebate, apertando ainda mais o sorriso falso em sua boca. Suas bochechas já doíam.  

 

— Porque não vamos nos carros? Certamente é mais apropriado para um rei. — Evangeline tentando parecer culta, suavizado a voz, agora no centro das atenções certamente não quer passar a impressão de estética.  

 

— Acredito que tenha passado despercebido alguns pontos, não muito atrativos, admito, mas de grande relevância para a geografia de seu próprio país nas aulas que tinha quando criança. Porém vou explicar. — Lena ergue um pouco mais o queixo ficando ainda mais alta para aqueles que a olhavam do chão. Tira com delicadeza uma mecha de cabelo que o vento trouxe para mais perto de seu rosto. — Hovel é uma das cidades mais altas de Norta. Sua vegetação é extremamente espessa e a única terra livre que possui é sempre escondida por vários centímetros de neve. Que como pode ver é incessante por conta da altitude e por conta da cidade ser rodeada de montanhas. As estradas daqui são extremamentes íngremes, estreitas e perigosas. Por isso, nenhum veículo consegue chegar para além da cidade, nem mesmo por dentro dela.  

 

Lena observa Maven em sua visão periférica, mas não consegue captar sua expressão pois ele está olhando para seus próprios pés. Não é muito difícil de imaginar ele rindo. Diferente de Evangeline com sua sobrancelha totalmente franzida. Evangeline sai de perto do irmão chegando mais perto de Maven, num movimento sugestivo, lembrando a Lena de que ela ali é a noiva do jovem rei.  

 

— E além dos cavalos há algum outro jeito de chegarmos a sua querida casa? — Evangeline pergunta aparentando estar cada vez mais sem paciência e irritada.  

 

— Tem sim. — Lena diz, vendo no fundo dos olhos dela uma sombra de alívio e prossegue. — A pé.  

 

Algumas tosses são ouvidas para abafar qualquer que fosse o riso. Lena levanta levemente a sobrancelha em vitória. Não deixaria Evangeline desprezar a sua cidade quando bem entender e na frente de todos. Evangeline já furiosa vira a cabeça para trás com um olhar cortante, quem quer que fosse que fiz isso iria lhe pagar. Ela caminha em direção dos cavalos selados deixando todos para trás. Ela já não tinha muito o que fazer parada ali.  

 

Antes do rei seguir para acompanhar a sua noiva, ele volta a olhar para Lena e ela o dá um meio sorriso que retribui sem dizer nada. Não se assusta com o gesto, Lena sabia que poderia muita coisa ter mudado, mas algumas coisas ainda pertenciam iguais.  

 

A viagem até o casarão passou mais rápido do que imaginara. Os cavalos seguiram em um ritmo rápido. Os sentinelas do rei, diferente dos outros seguiram a pé todo o percurso. Eles eram prateados, mas mesmo assim subordinados do rei, não estavam a altura de tamanho "luxo". Lena não se importava e nem sentia pena deles, sabia que era assim.  

 

Já no casarão cada qual foi para seu devido quarto. Não houve muita comunicação entre eles e Lena, e ela também não procurou muito entreter os convidados afinco. Para as mãos do rei e seus representantes Hovel não era um lugar lucrativo ou produtivo, então Lena não precisaria ficar de conversa afiada sobre negócios e o cansaço deles mostrou também que não estavam muito a fim.

 

— Esse vestido é realmente espetacular. —  Angelika dá um passo para trás, depois de terminar de fechar o deixo do vestido de Lena, para poder admirar ainda mais como um todo.  

 

— Esse é menos extravagante do que os outros. Acha que está muito? — Lena a questiona olhando para ela pelo espelho de sua penteadeira.  

 

— Extravagante? — Blanka rebate confiante enquanto finaliza uma trança bem feita nos cabelos de Lena. — Você está deslumbrante. Certamente vai deixar aquelas cobras morrendo de inveja, principalmente com esse penteado perfeito que eu acabei de fazer.  

 

— Dessa vez eu preciso concordar com ela. — Angelika complementa, observando agora junto com Blanka, Lena totalmente arrumada.  

 

Lena sorri e cora com os elogios, não está acostumada a isso. — Obrigada. Obrigada, meninas. Os elogios devem ser para vocês, fizeram um ótimo trabalho. — Ela observa com mais cuidado o penteado e a maquiagem no espelho.  

 

— Merecemos mesmo, porque a gente arrasou. — Angelika dá um tapa não muito sutilmente no braço de Blanka. Lena sorri com as duas. — Mas acho que ainda falta uma jóia, ou algo assim nesse pescoço. Porque não coloca um, Lena? Afinal é o rei que está aqui e mesmo essa sendo a cidade dos antigos reis, não é todo dia que recebemos um aqui. — Diz Blanka abrindo várias caixinhas que estão espalhadas na penteadeira.  

 

Lena observa seu pescoço nu e concorda mentalmente com ela. Precisava de algo mais.  

 

— Eu tenho umas jóias na outra cômoda...  

 

— Deixa que eu pego. — Angelika intervém antes de Lena se levantar da cadeira. Ela pega uma caixa retangular de veludo preta guardada lá e leva até Lena. — Essa?  

 

Lena concorda com a cabeça enquanto ela abre a caixa para ver o que tem dentro. Um conjunto de pedras negras fundidas no ouro, formando um colar magnífico que esbanjava beleza e poder.  

 

— É lindo. — Diz Angelika de boca aberta enquanto tira o objeto da caixinha e o coloca no pescoço de Lena. — Eu nem sabia que você tinha esse tipo de coisa.

 

Lena levanta levemente um canto dos lábios. — Eu posso ser uma prateada exilada, mas ainda assim sou filha de um rei.  

 

Eram poucos os colares que ela ganhara da corte. Em Hovel nunca tinha tantos eventos para usa-lo como no Palácio de Whatefire.  

 

— Não sabia que você tinha esse tipo de coisa. Esse colar deve valer uma fortuna. — Diz Blanka encarando Lena pelo espelho. — Você bem que poderia me emprestar, né?  

 

— Blanka! — Exclama Angelika totalmente perplexa. — Como você pode ser assim tão pidona? E outra, aonde você ia usar uma coisa dessas? — Ela diz cruzando os braços.

 

Blanka dá de ombros. — Eu não acredito que há momentos especiais para se usar esse tipo de coisa, como a chegada do rei — Ela faz aspas com a mão. — Você tem que mostrar pra todo mundo ver mesmo. Ostentar.

 

Lena ri sem parar das palavras de Blanka enquanto Angelika nega devagar com a cabeça.   

 

— Eu posso até te emprestar o colar. — As duas olham mais atentamente Lena pelo espelho. Lena levanta uma das mãos sugerindo calma. — Desde que você nos diga quem é seu namorado misterioso.  

 

Angelika desata a rir do comentário e antes que Blanka pudesse rebater elas ouvem sons de batida na porta e se silenciam. Lena confirma sutilmente para que alguém abra a porta e Angelika vai até lá.  

 

É Maven.

 

Ele entra cautelosamente no quarto. Está muito elegante com seu traje preto. A roupa é chique mas não tão oficial como ele usara a tarde. As cores da casa Calore se destacam na roupa, mesmo elas estando presentes em apenas alguns detalhes das estampas. Sem a coroa pesada ele parece um pouco menor, parecendo mais o irmão que Lena lembrava.

 

— Falando sozinha? — Ele fala observando o quarto.  

 

Lena franze brevemente o cenho. Ela não entende de primeira suas palavras. Ela não estava sozinha ali.  

 

Ela levanta rapidamente da cadeira e abre um sorriso simpático, mas sem graça para ele. — Claro. Sabe como é, né. Depois de se morar tanto tempo sozinha você aprende a conviver com você mesmo e com suas próprias loucuras.  

 

Com um pequeno olhar sugestivo, Angelika e Blanka fazem uma sutil reverência e saem rapidamente. Lena já tinha se esquecido de como os prateados tratavam os inferiores, vermelhos. Literalmente como se não existissem aos olhos deles.  

 

— Eu bem que entendo. Depois que você foi embora eu não tive muitas companhias boas e tão animadas como a sua. — Ele calmamente fala colocando uma das mãos no bolso. Ele ri de algo que lembra — Já também me peguei falando com as paredes.

 

— Ora, não vai me dizer que com um Palácio daquele tamanho você não achou alguém para se divertir? — Lena puxa um pouco a barra do vestido para poder andar. O vestido não é tão longo, mas para alguém que a muito tempo não anda de vestido todo cuidado é pouco.

 

— Você bem sabe que não. — Sua voz sai triste. Maven a encara com olhos tristes, como se Lena já pudesse decifra-los.  

 

— Pensei que nos encontraríamos apenas lá embaixo. Aconteceu alguma coisa? — Seu coração se aperta, mas ela desvia o olhar e tenta trocar de assunto.  

 

— Não, eu apenas queria conversar com você longe dos outros.  

 

Lena enrigesse, suspeita pelo que vem pela frente.

 

— Sou rei agora. — ele continua. — Não vim aqui só a passeio — Ele dá um passo para mais perto dela. — Não precisa mais ficar aqui, Lena. Trancafiada nesta cidade esquecida, sozinha e sem ninguém. Volte comigo para whitefire, as coisas não serão mais como antes. Tem a minha palavra, farei com que paguem muito caro aqueles que te insultarem de qualquer forma.

 

— Se fizer isso terá que trocar todos os membros de sua corte. — O deboche em sua voz é real.  

 

— Eu falo sério. — A convicção em sua voz é real, mas ela duvida disso mesmo assim, as coisas não eram tão simples como parecem. — Minha mãe e eu já conversamos sobre isso, muitos dos ex-chefes do meu pai não servem para os novos planos desse novo governo que irá nascer comigo...

 

— "Sua mãe e você" você quer dizer sua mãe, é claro. — Lena rebate.

 

A surpresa de Maven com a interrupção dura poucos segundos, ele a ignora e continua. — Além de que muitos não acreditam na traição de Cal, tenho quase certeza de que eles planejam alguma coisa contra nós, principalmente os Samos. Eles sempre almejam roubar a coroa, talvez eles vejam nessa sucessão repentina algum tipo de chance, mas enfim, eu tenho outro planos para eles.  

 

Ouvir Maven chamar o irmão mais velho deles de traidor deixa o coração de Lena ainda mais despedaçado, ele não sabe que ela já sabe da verdade e a mentira só faz com que ela levante mais a guarda contra ele.  

 

— Diz que eles estão planejando contra você e ainda pretende se casar com Evangeline? Por algum acaso esse seu plano é suicida, por que eu não vejo outra finalidade para ele.

 

— Mantenha seus aliados por perto, e seus inimigos ainda mais. — Ele caminha para perto da lareira do quarto. Maven não precisa do calor das chamas para se manter aquecido, é um perfeito Calore, mas certamente as chamas o atraíam. — Por isso, preciso de você comigo.  

 

— Precisa que eu esteja ainda mais perto? — Lena diz chegando mais perto dele.  

 

Maven olha para ela, o reflexo das chamas dançam em seus olhos. — Engraçadinha. Preciso de você lá comigo por que é minha família. Lá é a sua verdadeira casa. — Ele vira o tronco totalmente na direção dela. — Nosso pai não achava que era. Ele podia até não te achar a altura, mas o que ele achava agora não importa. Ele está morto. — A raiva em sua voz é evidente. Lena sempre soube que Maven era bem negligenciado pelo pai deles, não menos que ela, lógico, mas era. Ele era um príncipe, um filho "verdadeiro" e ainda sim bem esquecido. Ambos sabiam que Cal era o favorito, quando crianças até tiravam vantagem disso, mas agora era diferente. Mesmo assim, Lena não deixa de se assustar com tamanha a raiva que Maven guarda disso.  

 

Ele deve ter percebido a expressão séria e pensativa no rosto de Lena e a observa ainda mais, seus olhos param de observar sua expressão séria para focar em sua roupa. — Não vai precisar mais usar essa cor de vestido. Bege nunca combinou com você.  

 

As sobrancelhas de Lena se levantam mais rápido do que gostaria e ela se reprova por isso.

Maven a conhecia muito bem. Desde que quisera frequentar os bailes e festas da corte essa era a única cor que Lena poderia usar. Quando se é uma bastarda não há muitas cores a escolher e como não podia usar as cores da casa de seu pai e nenhuma cor mais que fosse de qualquer família interessante patenteou o bege para si, essa seria sua cor, sua marca.

 

— Você virou rei Maven e não piloto da máquina do tempo. Não pode mudar o passado.  

 

— Posso fazer muita coisa agora. Posso dar um jeito nisso — Ela aponta para sua roupa — E não só nisso, mas nessa situação toda é só vir comigo.

 

Lena olha para os próprios pés, precisa manter seus pensamentos em ordem. Nunca ninguém fizera ou se importará com ela assim, até mesmo ele, já estava conformada com sua vida, tudo já tinha ficado para trás, mas mesmo assim seu coração ainda se apertava.

 

— Sua mãe já sabe disso tudo? — Ela questiona. — Não consigo vê-la concordando com isso.  

 

Ele reluta e parece escolher bem as palavras antes de prosseguir. — Ela saberá em breve. Mas certamente não fará objeções quanto a isso.  

 

— Tem certeza? — Ela o questiona novamente. Ela aposta que não e o olhar inseguro dele a faz ter certeza disso.

 

— Não se preocupe com isso agora, terei tudo sob perfeito controle em breve.  

 

Os poucos segundos que pairavam entre eles pareceram horas. Nesse pouco tempo ambos ficaram olhando um para cara do outro tentando decifrar a mensagem através  do silêncio que cada um tentava dar. Para Lena era totalmente estranho o ter ali depois de tanto tempo. Tempo esse que o deixou quase desconhecido para ela. Ela queria lhe contar muitas coisas e perguntar também. Mas não sabia se deveria.  Ele ainda era Maven, mas não era. Estava diferente, mudado. Ela tinha tanto receio.

 

Os pássaros voam e fazem barulho na janela, atraindo o olhar dele para lá. Parece pensativo, admirador e questionador.  

 

— Arrume suas coisas, partiremos amanhã. -

Ele diz voltando a olha-la, quebrando o silêncio de uma vez. Sua voz estava mais forte, diferente, ele não estava pedindo.

 

Lena suspira fundo e dá as costas para ele indo de encontra a janela.  

 

— Eu não vou.  

 

— O que? — Sua voz sai incrédula. Provavelmente ele não esperava por isso.

 

— É isso mesmo, eu não vou. — Ela volta a olhar para ele. — Essa é a minha casa agora, Maven. Meu lar. Eu aprendi a viver aqui, a conviver comigo mesma e com o que sou. Antes era um martírio, mas agora não é mais. Não preciso da sua piedade ou a de qualquer outra pessoa, eu estou bem.  

 

Seus olhos azuis estão céticos. Parece não acreditar.  

 

—  Está escutando o que está falando? Estou te convidando para voltar para casa e você diz que prefere ficar aqui?

 

— Isso mesmo!  

 

— O que há com você?

 

Em segundos Maven se altera e parece não estar tão contente com a decisão que Lena tomou, fica nervoso. Ele anda de um lado para o outro passando as mãos em seus cabelos negros. Parece pensar no que fazer, como convencer ou que falar, Lena apenas o observa cautelosamente, já vira assim uma vez quando criança e não era em um bom momento.

 

— Você vai vir sim, não sabe o que está falando. — Ele dá sua cartada.

 

— Sei sim. Não irei com você a lugar nenhum. Não sou obrigada a nada.

 

— É sim. Eu estou mandando. Eu sou o rei. — Suas palavras saem alto como um trovão, dentro do quarto. Ela vê fúria em seus olhos, mas também desespero.  

 

Ele deve ter percebido sua expressão de extremo espanto, pois solta os ombros e tenta conter a raiva.  

 

— Eu preciso de você. — Ele diz mais controlado, mesmo assim é inevitável sentir o calor sendo sugado do ar.  

 

— Cal também precisava de você e, onde esteve? — Lena não se contém e solta o desafiando de vez, tinha que perguntar. Não seria ela se não o fizesse.  

 

Para sua surpresa Maven ri com deboche de seu comentário. Ele causa medo nela. Ele não é de fazer isso sabendo que ela está falando tão sério. Ele estava muito parecido com a mãe.

 

— Cal é um traidor! Ele matou o próprio pai. Eu estava lá. Ele é um assassino frio, sem escrúpulos. Como pode defende-lo?

 

— Como posso defende-lo? Crescemos juntos, Maven. Lembra? Nós três. E sei muito bem que ele jamais faria uma coisa dessas, ele amava o pai demais para poder fazer isso. Eu posso ser uma pessoa descontrolada e até mesmo uma aberração para o meu próprio povo, mas conheço muito bem as pessoas. — Ela hesita, antes de continuar. — Ou talvez conhecia.  

 

Maven não precisa de muito tempo para perceber que ela estava falando dele, mas sua expressão não se abala. Pelo contrário, ele a encara mais firmemente.  

 

— Ele esteve aqui, não é mesmo? — Ele passa os olhos por todo o quarto como se alguém  estivesse ali entre eles. — Ela está aqui?

 

— Não seja ridículo, do que está falando? Não tem ninguém aqui. — Lena tentar disfarçar, mas nunca fora uma boa mentirosa. Ele sabia que ela estava mentindo.  

 

Ele segue em sua direção e antes mesmo que perceba ele segura um de seus braços exigindo uma resposta.

 

— ONDE ELA ESTÁ, LENA?! — Seus olhos a encaram com uma ferocidade que ela nunca  tinha visto antes.

 

— EU NÃO SEI DO QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO! — Ela o encara com a mesma intensidade que ele. Já não consegue reconhecer o homem à sua frente. Seria ele mesmo seu irmão?

 

Ela tenta tirar o seu braço do aperto dele, rompendo a distância, mas ele não deixa.  

 

— Não pense que continuo sendo um bobo, eu sei que você conversou com ele. Você confia sempre confiou nas palavras dele, não seria diferente dessa vez, sem contar que apenas ele poderia colocar você contra mim.

 

— Eu não preciso que ninguém me convença de NADA! E você está me provando isso claramente. — Ela diz isso olhando dele para seu braço, puxando-o com mais força para se livrar de seu toque.

 

Ele olha para seu braço percebendo o que estava fazendo a solta em um segundo. Lena coloca a mão contrária no lugar em que ele estava segurando. Estava doendo, mas não ao ponto de deixar um hematoma.  

 

Ele fica encarando ela esfregando o braço, desnorteado. E seus olhos que passavam fúria a poucos segundos atrás já pareciam não saber o que estava acontecendo. Como se sua mente tivesse apertado um botão e o outro Maven, o que Lena conhecia, tivesse voltado a seu estado normal.  

 

Ele não diz mais nenhuma palavra e nem ela. Talvez não houvesse mais nada o que dizer naquele momento.  

 

A noite que se passa por eles é tediosa. Eles se falam o mais cortês e monótono possível na frente dos outros, depois do ocorrido e do pedido. A culpa e o ego são caminhos que andam juntos.

 

Apenas comentários fúteis e provocativos saíram da boca de Evangeline, os quais Lena soube responder a altura, já estava acostumada com o jeito de ser dela, e certamente ela não era daquelas que deixaria insultos passar em sua própria casa. Lena não deixou de apreciar disfarçadamente o anel na mão dela, não era uma jóia qualquer. Ela não sabia qual era o plano que Maven tinha em mente, mas certamente ele o estava levando muito a sério.  

 

Como Lena é a única moradora prateada da cidade, Maven não tinha discursos a dizer e nem muito do que esconder o real motivo de estar ali. Certamente não é um lugar que um rei viria para apresentar sua futura noiva. Ou ele estava ali para leva-la com ele, como o disse, ou ele estava atrás de Sun. O que confirmava as acusações de Cal e a menina Barrow sobre ele.  

 

— Posso entrar? — Disse Angelika abrindo a porta de seu quarto.  

 

Já era de manhã. Lena não conseguiu dormir a noite toda, seus pensamentos eram muitos. Eles fervilhavam em sua mente a jogando de um lado para outro. Ela até tentou ler um livro, mas as palavras muitas vezes não passavam de borrões e ela sempre tinha que voltar para tentar ler novamente. Até que o dia clareou, mas as cortinas grossas do quarto escondiam o pouco de luz que o céu nublado fazia.

 

— Claro, nem percebi que já estava de manhã. — Ela se levanta do chão, onde estava, perto da lareira.  

 

— Não dormiu à noite? — pelo comentário, suas olheiras devem ser fundas.  

 

— Não. Eu não consegui. Estou preocupada com Sue, como ela está? — Lena não estava mentindo. Ela também estava preocupada com Sue. Sabia que a amiga estava protegida em um dos cômodos secretos do casarão, mas ela não sabia até onde estava a determinação de Maven em encontra-la. Se quisesse poderia revirar e desfazer a cidade para a achar, a levaria e não poderia fazer nada.

 

— Ela está bem. — Angelika a tranquiliza. — Fiquei com ela uma boa parte da noite, ela está tranquila, já que eles estão indo embora. Posso até dizer que ela está mais tranquila que você. Aconteceu alguma coisa?  

 

— Não. É só cansaço mesmo e a Evangeline, ain, me estressa. — Ela não gosta de mentir para as pessoas, mas era melhor manter sua guerra interna apenas para si.  

 

— Ela é realmente muito insuportável. Ninguém quer ir servi-la no quarto, estamos tendo que tirar na sorte. Uma das novas foi ontem a noite e chegou chorando. É difícil se submeter a isso sem poder fazer nada.  

 

— Eu sinto muito. Espero que ela vá logo embora, acho que nunca desejei tanto isso.  

 

— Nada dura para sempre, como diz minha amada vozinha. Daqui a pouco tudo voltará ao normal. — Angelika sorri ao seu consolo.  

 

— Eu espero. — Ela deixa Angelika fazendo o seu serviço e segue em direção a suíte. Precisava tomar um banho e se livrar da canseira e da dor que seus músculos carregavam.  

 

A água quente para ela era como uma conselheira silenciosa, uma observadora de seus pensamentos, que a acalmava e a ajudava a tomar o melhor caminho a ser seguido. Era certo que ela amava as pessoas de Hovel, a muito tempo eles a acolheram e a aceitaram como uma deles, não poderia deixa-los a deus dará, precisavam dela ali. Mas Lena não poderia mentir para ela mesma. A verdade é que não sentia falta das pessoas do Palácio, mas sentia falta de sua família de sangue. Maven. Cal. Anabel. Porém, agora eles estavam distantes e mais divididos do que nunca. A decisão de ficar era a melhor e a mais correta a se fazer. Mesmo sendo essa contraria a vontade de seu irmão, além do mais, ele tinha mudado e essa surpresa também era inesperável, mas real e visível para ela.

Era ainda bem cedo quando Lena acaba descendo para se encontrar com os convidados da casa, estava com sono e preferia ficar na cama mesmo sabendo que não iria dormir até que fossem embora, mas precisava ficar lá com eles.

"Já estão indo embora" ela repetia até se convencer disso.

No grande salão a mesa estava posta, ela olha para as comidas com pena, não por conta da comida, pois tudo estava visualmente excepcional, mas por saber que estava tirando comida de pessoas que não tinham nada para dar a aqueles que nem sequer agradeceriam pelas guloseimas extravagantes e difíceis de fazer. Na mesa ela espera por eles, mas ninguém aparece. Os empregados enfileirados a sua frente a deixam nervosa, parados em pé como estátuas, sem poder se dirigir uma só palavra a ela, tornando a situação ainda mais constrangedora. Lena fica esperando-os  por mais tempo do que alguém com amor próprio esperaria. Eles estavam na sua casa e estavam a desrespeitando, caçoando da sua cara. Só porque eram a realeza, só porque achavam que podiam. Todos eles.

Ela levanta da cadeira bruscamente fazendo com que o atrito da madeira da cadeira com o taco faça um barulho estrondoso no grande salão silencioso.

Estava triste e frustrada, mas muito mais furiosa.

Estava mais do que decidida a colocar as cartas na mesa, iria fazer prevalecer a sua vontade, não sabia o que Maven queria e se naquele momento estava a procura de sua amiga para mata-la, então foi a procura de saber, precisava de resposta e não de suposições.

Subiu as escadas até o quarto onde Maven estava, até aquele momento ele não tinha a procurou mais, mas para ela isso não significava nada. Sabia que o que estava fazendo era arriscado, porém, ela confiava em sua convicção.  

 

Ele não estava em seu quarto então vasculhou em todo o casarão, perguntou a todos os criados, mas ninguém o viu. Até mesmo os seus guardas não estavam com ele, ainda continuavam parados em frente ao seu quarto como se ele estivesse lá, mas ela sabe que não estava. Como o rei poderia ter sumido da vista de todos assim?

 

Lena então vai para o lado de fora do casarão. Era o único lugar que ele poderia estar nesse momento. E ela estava certa. Um pouco distante da casa, bem no começo da floresta existe um banco longo de madeira que, Lena junto com Sun ainda crianças, tinham construído, quando nomearam aquele lugar como o preferido delas. O banco ficava embaixo de uma enorme cerejeira que a anos se sustentava firme, mas congelada. Quando pequena a Senhora Lorwall contava que a muito tempo atrás, nos dias menos frios e mais amenos da cidade ela florescia e em seus longos galhos caiam flores lindas e rosas. Eram tantas as flores, que quando caiam o vento as levava para toda a cidade, colorindo toda Hovel por alguns meses. Ela dizia que era como uma benção, uma lembrança de que em meio a neve e o frio, ainda existia esperança, leveza e cor nessas terras.  

 

A neve deixa seus passos silenciosos e quando encontrou Maven ele não a percebe chegando perto. Ela para um pouco atrás dele, que estava sentado no banco com as mãos apoiando o rosto.

Ela por um tempo fica lá o observando e se surpreende com o que vê. Pensativo ele move seus lábios, mas não emite nenhum som deles.

Estava falando sozinho?   

 

Depois de algum tempo ele percebe sua presença, endireita as costas e finge que está fazendo qualquer coisa, mas a surpresa nos olhos de Lena a entrega, não consegue segurar risada e acaba rindo baixo.  

Não queria, mas conhecia aquele garoto sentado no banco no meio a neve falando sozinho, sua raiva se dissipa quase que completa, como poderia continuar depois disso?

Ela senta no banco gelado e ele vai mais para o lado dando espaço para ela.  

 

Ambos ficam parados em silêncio por um breve momento. O vento bate nas árvores e uiva para eles. A paisagem é reconfortante, mas a situação não.  

 

— Me desculpe. — Ele rompe o silêncio antes dela. As palavras impressionam Lena e ela volta sua cabeça abruptamente em sua direção. Mas ele ainda continua olhando para frente.

 

Ele suspira, se inclinando para frente, cobrindo seu rosto com as mãos.  

 

— Não tive a intenção. Não quis... não quero te ferir. — Suas mãos abafam as palavras, mas Lena as entende bem.  

 

É difícil não se assustar com as palavras. Com ele ali, naquele banco ao seu lado, lhe dizendo aquelas palavras, nem parecia a mesma pessoa da noite passada. Como se uma outra identidade dentro dele o assumisse naquele momento.  

 

— Bem, aquilo não foi nada. Já passou. — Ela diz devagar. Viera ali para resolver as coisas de forma rápida, mas vendo ele assim, não teria sequer coragem de agir com tal maneira.  

 

— Não diga isso, não minta. Está com ódio, furiosa. Diga. — Ele volta a sentar corretamente, agora com os olhos nela.  

 

— Não. Não estou. — Lena não estava mentindo. Era verdade que estava brava e  desconfiada dele, mas ódio, não.

 

Seus olhos azuis brilham com suas palavras, mas ela também pode ver desconfiança neles. Ou talvez seja ali fosse o seu próprio reflexo neles. É difícil saber.

 

— Depois de todo esse tempo. — Sua voz sai fraca, porém ainda audível. — Você nunca mais me procurou, me retornou. Nunca consegui entender o porque. Até pensei que o tinham te impedido de me escrever de volta, mas descobri que essa ordem nunca foi dada, você era livre, sempre fez o que quisera.

 

Lena fica sem ar com a informação. Suas cartas nunca chegaram até ele. Como isso poderia ter acontecido? Talvez ela soubesse a resposta, mesmo assim não conseguia acreditar.

 

— O que? Como assim? — Lena rebate confusa. — Eu sempre te escrevi, desde o momento em que me mudei para cá. Sempre pensei que você não quisesse mais me responder. Que tinha me esquecido de vez, como os outros.  

 

A expressão dele vai de surpresa a certeza em segundos.

 

— Jamais esqueceria. Nem que me obrigassem a isso — Ele diz mais sério, pensativo.  

 

Lena se levanta e começa a andar de uma lado ao outro. Precisa pensar. O ar quente de sua respiração se destaca no ar. Maven observa atentamente cada movimento seu.  

 

— Está me dizendo que todo esse tempo esteve tentando manter contato comigo e não conseguiu? — O fôlego em sua voz sai, mais nítido do que esperava. Ela culpa o frio, não quer mostrar seus sentimentos assim tão abertamente.

 

— Sim, Lena. Como ousa pensar que deixaria você aqui, nesse lugar sem ninguém? Depois que foi embora sempre argumentava com Cal, para que ele convencesse nosso pai a voltar atrás na decisão, para que deixassem trazer você de volta, mas ele era irrevogável. Tentamos muitas vezes, tentei muito mais do que Cal inclusive, mas as minhas palavras não tinham nenhum peso para meu pai na época.

 

Lena volta a sentar ao lado dele de novo. Agora é ela que se encurva e coloca as mãos no rosto. Mas já é difícil manter as lágrimas dentro dos olhos, ela não pisca para que elas não escorrem pelo rosto.

 

Pensar que tudo o que sentiu, por todo esse tempo, foi causado por uma grande mentira deixava ela abalada, mas não mais do que o fato que isso a afastou das pessoas que amava. A tortura da solidão a deprimida a cada dia, até que ponto tinha chegado?

 

Maven coloca uma de suas mãos no antebraço de Lena, segurando uma pulseira de ouro fino que usava, era um presente que ele dera a ela em seu aniversário de 15 anos,  ele dera para que pudesse substituir o dispositivo de chama que os Calores usavam, ela amava aquele presente, nunca tirava de seu pulso. Sua toque em contato com sua pele é quente e reconfortante, mas não é o suficiente para devolver a compostura de Lena. Mesmo que a história das cartas seja verdade, como ela poderia perdoá-lo? Ele ainda tinha planejado a morte de seu pai. Confiava em Maven, mas também o conhecia e sabia que ele era um bom mentiroso. Quando se mora e vive entre os prateados esse é uma matéria que a vida lhe ensina sem dó nem piedade. E ele era expert nisso, era um príncipe e filho da Elara, estava muito bem preparado para a corte.

 

— Agora já está tudo bem, pode voltar comigo. Não precisa mais o temer. — A voz de Maven sai calma e suave.  

 

Lena volta a uma posição mais aceitável a uma dama prateada. Ela enxuga rapidamente os olhos lacrimejados.  

Ela queria ir, mas não poderia mudar o seu agora, as pessoas que conhecerá daquela cidade confiava nela, não podia decepciona-los.

 

— Não posso. Isso pode ter acontecido, e eu nem posso acreditar. Mas, não podemos apagar o passado. A minha vida está aqui agora. Hovel é minha casa. Não mudarei minha decisão. Sinto muito...  

 

O silêncio paira sobre eles novamente. Ela acredita que ele esperava uma resposta diferente. Mas, ela não estava mentindo. Pertencia ali e não os abandonaria por ele.  

 

— Não te obrigarei a nada. — Ele levanta derrotado e segue alguns passos na direção do casarão. Maven é um menino mimado, mas já está acostumado a receber nãos, diferente de Cal — Desde que tudo se deu a meu favor, a única coisa que realmente quis não foi colocar a coroa na cabeça e sim trazer você de volta. Não te impedirei de voltar, Lena. Lá também é a sua casa, pode ir me ver qualquer dia, se assim desejar.  

 

Lena contém o desejo profundo de pensar e relutar mais sobre a sua decisão, porém não o faz. Ela tem mais medo por ele do que por ela agora. Não é fácil viver entre as cobras, mas ele sobreviverá, não precisa dela.

 

Maven segue de vez para dentro do casarão, não demora muito até que sua silhueta suma em meio ao caminho branco, recoberto pela neve. Lena permanece mais alguns minutos ali no banquinho, pensando. Até que o frio a vence,  deixando seu nariz e os dedos cinza. Queria que as coisas não fossem tão complicadas, queria poder voltar ao passado.










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Notas finais do capítulo

Olá,
Finalmente o capítulo 3! Espero atualizar o próximo o mais breve possível, aproveitem. :)



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