Um Verão em Boulder City escrita por Carol Coelho


Capítulo 3
Parece que o Jogo Virou


Notas iniciais do capítulo

Oláaa, mais um capítulo fresquinho ^^ boa leitura



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E hoje eu estou só o retrato da desistência matinal caminhando na direção da padaria por dois motivos: (1) passei a última semana INTEIRA me arrumando de manhã para comprar pão em Boulder City na esperança de encontrar o atendente bonito e nada. Além do mais, mesmo que eu quisesse me arrumar eu não poderia porque (2) Joyce, que dormiu em casa noite passada com o consentimento de Abigail, ainda estava desmaiada no colchão quando eu levantei, me impedindo de pegar qualquer coisa no quarto.

Então, com a cara e a coragem encarei as ruas calmas de Boulder City com um short de bolinhas, chinelos e uma enorme camiseta do Mickey, levando de brinde um desastre no lugar do cabelo e olhos inchados de sono.

Quando o sininho acima da porta anunciou minha entrada, eu desejei me fundir com o chão para sempre. O rapaz estava bem ali atrás do balcão, me perfurando com seus olhos esverdeados e um sorriso brincalhão nos lábios, fazendo cair por terra minha teoria de que ele havia sido uma invenção da minha cabeça. Mas é claro que ele só ia aparecer novamente quando eu estivesse um lixo inapresentável. Tão típico. Apesar disso, respirei fundo e caminhei de nariz erguido até o balcão. Me pronunciei antes mesmo que ele tivesse a oportunidade de fazê-lo.

— Três pães, por favor — pedi sem ter coragem de olhá-lo nos olhos. Ao invés disso, me distraí com os doces exibidos no balcão.

Quando tive certeza que ele estava de costas pegando os pães, mirei-o. Infelizmente ele parecia bem real. Rapido demais, ele virou para mim novamente, capturando meu olhar enquanto pesava os pães no papel pardo. Hoje ele não parecia contrariado e entediado como da outra vez, muito pelo contrário: parecia em um boníssimo estado de espírito.

— Algo mais, menina? — perguntou com um sorriso brincando nos lábios enquanto anotava o total no papel.

— Não — respondi. — Obrigada.

Peguei o pão com uma mão e o papelzinho com a outra ou pelo menos tentei, já que ele resolveu fazer gracinha e desviá-lo de mim quando estava prestes a tocá-lo. Estreitei os olhos na sua direção e ele ampliou o sorriso, agora depositando a pequena folha na palma de minha mão estendida.

Marchei na direção do caixa sentindo seus olhos queimando minhas costas (e eu espero que sejam só as costas mesmo). Paguei pelos pães e praticamente voei porta afora, olhando rapidamente por cima do ombro para constatar que ele ainda me encarava com o sorriso na cara. Inferno!

Porque é claro que eu ia passar uma semana me arrumando de manhã á toa para encontrar com ele justamente no dia que eu estava um pedaço de lixo ambulante. Mandou bem, Vanessa!

Andei a passos rápidos pela rua de volta até a casa verde e entrei batendo a porta. Joyce estava jogada no sofá e se levantou prontamente quando eu passei feito um furacão.

— Nossa — comentou, me seguindo de pronto. — O que aconteceu para a madme chegar em casa assim? — perguntou.

— Nada, Joyce — respondi. — Cadê a Abigail? — perguntei alarmada ao não vê-la nos fundos da casa, onde passava o tempo todo.

— Só está no banho, garota, relaxa. Me conta logo o que aconteceu.

Bufando, me viro para a geladeira para pegar o leite e a geléia.

— Eu odeio Boulder City, você sabe — comecei. — Semana passada, quando eu cheguei, fui na padaria e vi esse cara.

— Que cara? — Joyce de repente parecia totalmente absorta na conversa.

— Um cara bonitinho — desconversei. — Enfim, durante a última semana inteira eu me arrumei de manhã para ir no caralho da padaria na esperança de dar de cara com ele de novo.

— Continue — pediu do fogão enquanto mexia seus ovos.

— Em nenhum dos dias ele estava lá. Então, eu estava a mais pura desistência essa manhã.

— E você foi assim para a padaria? — ela riu.

— É — concordei.

— E ele estava lá? — perguntou se virando para mim com as sobrancelhas erguidas.

— Não somente estava lá como me atendeu — resmunguei com um suspiro derrotado. — E ainda fez gracinha na hora de me entregar o papel com o preço.

Joyce explodiu em risadas com a colher em mãos. Minha expressão carrancuda não aguentou e acabei rindo com ela.

— Eu não acredito nisso — comentou.

— Não acredita em que? — perguntou Abigail, surgindo pelo corredor.

— Nada, vózinha — desconversei voltando a recehar meu pão com geléia, prendendo um sorriso.

O resto do café da manhã se passou em um silêncio profundo. Logo após comermos, Joyce foi embora pois às quintas feiras precisva ajudar sua tia com a mercearia. Prometi passar lá para lhe fazer companhia mais tarde.

***

— Nessa, vem cá! — ouvi minha avó gritar do jardim dos fundos.

Prontamente coloquei meu celular para carregar e o joguei em cima da cama antes de sair do quarto e descer rapidamente as escadas enquanto prendia meu cabelo em um rabo de cavalo pois o calor estava me matando.

— Oi — disse, passando pela porta da cozinha para o dia iluminado.

— Escada — ela disse, a empurrando para mim e andando na direção da árvore, puxando o carrinho de metal com a casa de pássaros já remontada e pronta para ser pendurada.

Revirando os olhos, a seguro firmemente próxima da árvore enquanto Abigail a escala com a casa em mãos. A barra de seu vestidinho verde bate em meu rosto e eu acabo dando risada. Não sei o que eu faria sem essa mulher na minha vida. Com um movimento rápido, ela engancha a corrente da casinha em um galho da árvore, retirando do bolso do avental um pacote de alpiste e o derramando no espaço da casinha. Após admirar brevemente seu trabalho concluído, ela desceu da escada limpando as mãos no avental e empurrando para longe o carrinho.

— Eu sugiro que você aproveite para visitar Joyce hoje — comentou, fechando a escada. — Porque amanhã nós temos médico.

— Nós? — indago, retirando a escada da mão dela quando ela tenta a erguer. Repreendo-a com o olhar enquanto encosto a escada no muro alto do quintal que fazia divisa com o quintal vizinho.

— Sim, você é minha cuidadora, tem de me acompanhar — falou com um sorriso brincalhão. — Então, menina, aproveite o dia de hoje porque amanhã eu tenho consulta marcada — recomendou, dando um tapinha em minha bunda. — Anda, vai, vai — resmungou, me expulsando.

— Ok, senhora — ri enquanto me afastava.

Peguei a chave extra do chaveiro ao lado da porta e corri escada acima para resgatar meu celular. Ao pegá-lo na mão, vejo uma chamada perdida da minha mãe. Franzindo os lábios, retorno. Após uns três ou quatro toques, ela atende.

— Oi, filha! — ela diz animada do outro lado da linha. — Como estão as coisas?

— Oi, mãe — respondo, me sentando na cama. — Tudo em paz. E aí?

Pergunto apenas por perguntar. Ainda estou bastante chateada por eles terem me despejado nesse fim de mundo praticamente sem motivos. Eu amo muito os meus pais, porém eles são muito radicais e tendem a ficar autoritários quando contrariados.

— Por aqui tudo ótimo. Como está sua avó?

— Bem — respondo com um suspiro. — Vamos no médico amanhã.

— Como assim médico? Você acabou de falar que estava tudo bem, Vanessa!

— E está! — me apresso a esclarecer. Rosemary é explosiva. — É só uma consulta de rotina acho. Foi o que ela me disse, mãe, eu não sei. Ela só me falou que tinha uma consulta marcada e precisava de acompanhante.

Ela bufou do outro lado da linha, me fazendo revirar os olhos. Era uma mulher maravilhosa e determinada, mas irritantemente cheia de si. Rosemary não aceita ser contrariada e tem um gênio muito forte. Em sua ilustre carreira como advogada, isso a ajuda imensamente, porém esse também é o principal motivo das nossas brigas porque eu também não abaixo a cabeça facilmente.

— Ah, bem — resmungou. — Então tá certo. Espera aí, seu pai quer falar com você. Um beijo, tá?

— Tá bom, mãe. Beijo — respondo. Como sempre, muito curto e impessoal. Tão típico.

— Oi, gatinha — meu pai fala animado do outro lado da linha. — Aproveitando o verão?

Nesse momento eu quero explodir de raiva, porém sei que isso não vai me ajudar em nada. O que eu realmente quero dizer é que estou ODIANDO o verão. Eu havia planejado um emprego para custear uma parte da minha faculdade ou para comprar um carro ou só para ter um dinheiro para mim. Eu havia planejado ir em todas as festas de ex-veteranos do meu colégio. Eu havia planejado tantas maratonas de séries com Marjorie, minha melhor amiga em Bakersville. Enfim, eu havia planejado um maravilhoso verão de paz e auto melhoramento para o último ano e tive todos os meus planos brutalmente dilacerados por pais que não conseguem ser contrariados.

Sei que existem problemas piores que os meus no mundo, porém infelizmente estão todos fora da minha capacidade de resolução. O que está dentro dela é essa família sufocantemente preocupada que não consegue deixar que eu tome minhas próprias decisões sobre o meu próprio futuro, aprenda com meus próprios erros e saiba lidar melhor comigo mesma quando eu quebrar a cara. Resolver esse problema não vai me render um prêmio Nobel da paz, eu sei. Mas vai me render alguma paz de espírito e isso é tudo que eu quero no momento, além de encerrar logo essa maldita ligação.

— Melhor do que eu esperava — é o que digo para ele. Não é uma mentira total, afinal eu tinha Joyce.

— Há, minha garota! Fico feliz que esteja aproveitando bastante — Jeremy fala e eu quase consigo ver um sorriso em sua face. — Curta bastante, ok? Mas não muito, porque você ainda está de castigo.

Reviro os olhos querendo atirar na minha própria cara. Tão típico e tão idiótico. O retrato de famílias felizes que você vê fazendo piadinhas e se entendendo bem em comédias, comédias românticas ou aqueles filmes de drama que te fazem chorar. Bem, eu quero chorar. Chorar de raiva e frustração. Eles são tão desesperados em parecer uma família feliz que acabam não se importando se a família está de fato feliz. Tão preocupados em encher o peito para dizer para todo mundo que eles conseguiram! Conseguiram criar muito bem a filha deles. Criar uma filha que tomou todas as decisões certas, mas não porque ela quis, claro que não. Porque obviamente foi impelida a tal, afinal as crianças não é mesmo? Sempre querendo afundar o caminho brilhante de futuro que os pais traçam para eles.

— Hahahah, certo pai. Vou desligar agora, ok? — digo, forçando uma risada. — Beijo, até mais.

— Um beijo, minha querida. Amamos você — ele respondeu e eu desliguei no mesmo momento.

Respirei fundo algumas vezes para me acalmar. Esses contatos que tínhamos durante meus recorrentes "castigos" sempre me deixavam assim porque eles sempre faziam questão de frisar que uma boa parte do poder de decisões sobre/para a minha vida ainda se encontrava nas mãos deles e isso matava todo o espírito independente-adolescente-rebelde que eu tinha em mim como todos os outros jovens da minha idade.

Resolvo não deixar que isso me abale ainda mais do que já abalou. Já surtei por causa deles sem os ter por perto mais do que seria aceitável. Balanço a cabeça para afastar os pensamentos sobre eles e a culpa que geralmente os acompanha. Levanto da cama e me olho no espelho grande na parede oposta à cama, avaliando se eu deveria trocar o clássico conjunto de short jeans e camiseta básica por algo mais elaborado, mas fico com preguiça. Apenas aperto mais o rabo de cavalo na cabeça, pego meu celular o colocando em modo avião para que a bateria dure até a mercearia e marcho para fora do quarto, saindo de casa logo em seguida.

Respiro o ar fresco da rua e me coloco a andar na direção da mercearia de Georgia que por uma feliz coincidência (ou não) fica bem em frente à padaria. Paro na calçada, bem ao lado do mercadinho. O sol forte do meio da tarde junto da cor amarela das paredes me faz esteitar os olhos colocar uma mão na frente do rosto para impedir que os raios inibam minha visão do interior do estabelecimento à minha frente. Vejo o rapaz sentado preguiçosamente atras do balcão, com uma caneta brincando nos dedos de forma distraída, como se nem precisasse de comandos para fazer aquele movimento.

— Muito ocupada? — a voz de Joyce me sobressalta, vindo de trás de mim.

Quando me viro na direção dela, ela está sorrindo com um caixote pesado nas mãos.

— Mulher, você me mata desse jeito — comento, pousando a mão sobre o peito em um gesto dramático.

— Então aquele é o seu interesse na padaria? — ela pergunta, imitando meu ato de estreitar os olhos.

— É sim — concordo, retornando à minha pose observadora.

Agora ele se levanta e comenta algo com Don, que está atrás do caixa, o fazendo dar risada. Então, ele simplesmente se vira na direção da rua. Me destituo da minha pose observadora junto com Joyce que segura a risada enquanto ruma para a mercearia comigo em seu encalço.

— Bom, meus parabéns. Agora ele te acha uma maluca — Joyce comentou, depositando o caixote em cima do balcão.

— Nenhuma novidade — respondi com um suspiro, jogando meu corpo no banco alto ao lado do balcão onde Joyce analisa as frutas dentro do caixote.

Ela pega uma maçã e me entrega, com um sorriso simpático.

— As coisas sempre são movimentadas assim por aqui? — pergunto com sarcasmo ao mirar a mercearia vazia de tudo.

— Só de segunda à domingo — respondeu Joyce se afastando com o caixote para a seção de hortifruti, me deixando sozinha no balcão, ao lado do caixa.

Um jazz suave emanava das caixas de som posicionadas em locais estratégicos para propagar o audio por igual no ambiente.

— Tem algum carregador aqui? — pergunto, indo para trás do balcão ao me lembrar que meu celular beirava seus vinte por cento de bateria.

— Na minha mochila atrás do balcão — ela responde.

Agaixo para procurar o carregador na mochila azul que está jogada no chão. Ouço Joyce conversando com algum cliente qualquer enquanto sigo mal sucedida em minha busca pelo carregador no buraco negro caótico que ela chama de mochila.

— Cacete, Joyce, que baderna — comento para mim mesma para não atrapalhá-la com a clientela.

— Nessa, pega as cerejas em conserva pro rapaz por favor — ouço Joyce pedir bem no momento que encontro o carregdor.

— Claro — concordo, plugando o apetrecho na tomada e conectando a outra ponta no meu celular que se ilumina.

Ao me levantar, sinto vontade de agaixar novamente e permanecer agaixada para sempre. Os olhos esverdeados do rapaz da padaria estão me encarando enquanto ele aguarda que eu pegue as cerejas em conserva, cujo paradeiro eu desconheço totalmente. Aquele olhar fez esmaecer dentro de mim a pergunta sobre a localização das cerejas que eu ia gritar para Joyce.

— Parece que o jogo virou, não é mesmo? — ele pergunta, sorrindo de canto, se referindo ao fato de que eu o estava atendendo e não o contrário.

Ah, merda. Aquele sorriso.

Sorrio de volta para não parecer idiota. Eu definitivamente não estava preparada para aquilo.

— Cerejas em conserva, certo? — pergunto, tentando passar a imagem de que eu tenho a situação sob o meu total controle e ele concorda com a cabeça.

Sem ter a mínima noção do que estou fazendo, sigo minha intuição e vou para o corredor dos doces. Errado. Dobro ao final dele e me deparo com salgadinhos. Errado de novo. O próximo é o corredor dos cacarecos. Errado mais uma vez. Que inferno! Já estou quase em desespero quando acho a geladeira dos refrigerantes, onde ao lado brilha a gloriosa prateleira das frutas em conserva.

Com um suspiro aliviado, pego o pote de cerejas e gravo na minha mente o preço: $6,00. Volto para o balcão, onde o rapaz me aguarda observando cada movimento. Algo confortavelmente gelado se enrosca na minha barriga quando eu passo ao seu lado, indo para trás do caixa. Digito na antiquada máquina o valor das cerejas.

— Algo mais? — indago, olhando novamente em seus olhos.

— Não, obrigado — ele responde cordial, ainda ostentando o sorriso de lado.

— São seis dólares — digo.

Ele me entrega o dinheiro certo e, seguindo a minha intuição, finalizo a compra.

— Não sabia que você trabalhava aqui — ele comenta enquanto eu coloco o pote junto da nota fiscal dentro de uma sacolinha branca.

— Eu não trabalho — respondi, feliz em poder olhar para outro lugar que não seu rosto. — Só estou ajudando a Joyce.

— E qual seu nome? — ele pergunta. Contraio os lábios em um quase sorriso.

— Vanessa — respondo, entregando a sacola em suas mãos e finalmente o encarando de novo.

— Foi um prazer, Vanessa. Atendimento nota dez — o rapaz fala com ênfase no meu nome, erguendo as sobrancelhas grossas antes de se afastar com a sacola, sem me dar a oportunidade de lhe perguntar como ele se chamava.

Quando ele sai pela porta para o dia iluminado, um suspiro aliviado deixa meu corpo sem permissão. Joyce aparece sorridente no balcão.

— Joyce, você é uma vaca — xingo com um sorriso na cara.

— Menina, olha só a oportunidade que eu te dei! — ela se gaba enquanto coloca o caixote vazio ao lado do balcão. — Você tem que vir aqui todos os dias, sério.

— Amanhã não posso, vou acompanhar minha avó no médico — falo, sem conseguir parar de sorrir igual uma idiota.

— Abigail está bem? — ela pergunta, preocupada de repente.

— Sim. Só rotina — esclareço.

Ela senta do outro lado do balcão e começamos a papear sobre coisas aleatórias. Na minha cabeça, a imagem daquele sorriso queima como uma brasa. Ah, merda.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, nos vemos sexta feira no próximo capítulo :-)