Um Verão em Boulder City escrita por Carol Coelho


Capítulo 19
Visita ao Centro Comuniário


Notas iniciais do capítulo

Um pouquinho mais tarde do que o de costume, mas está aqui hahaha
Boa leitura ♥



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Acordei na quinta feira com Joyce me cutucando. Ela acabou dormindo aqui depois de muita insistência de Abigail para que eu me divertisse um pouco. Joy me quebrou com cinco palavras sussurradas (“Você não precisa se punir”) e nós acabamos por dormir próximo das quatro da manhã. Não fazia sentido nenhum ela estar me cutucando pois ainda estava cedo.

— Que foi? — perguntei sonolenta, reprimindo um bocejo.

— Abigail saiu, disse que ia comprar pão. Me pediu para te acordar.

Suspirei aliviada. Mais um dia sendo poupada de andar meia hora até a outra padaria da cidade. Me sentei na cama passando os dedos pelo cabelo e encarei Joyce, ainda de pijama, sentada no colchão.

— Dormiu bem? — perguntei de uma forma automática.

— Sim — respondeu, esticando as costas.

Ficamos em silêncio por alguns minutos enquanto eu ouvia o movimento matinal na rua fora da minha janela. Situei meu cérebro confuso de sono: já eram nove e vinte da manhã. Dois de agosto. Eu só tinha mais vinte e oito dias em Boulder City. Agora que eu havia retornado ao meu castigo eu podia me permitir uma contagem regressiva.

— Vamos comigo no Centro Comunitário hoje? — perguntou Joyce. — Minha tia sempre faz umas doações na primeira semana do mês e eu tenho umas roupas para levar.

— Claro — concordei. — Vou pedir para Abby antes. E vejo se ela tem algumas doações também.

Joyce revirou os olhos em um sinal claro de sua irritação. Eu sabia o que aquela revirada queria dizer: “Você sabe que não precisa pedir cacete de permissão nenhuma, sai dessa, Vanessa! Mas tá, eu sei que ela vai concordar mesmo”. Você percebe que tem bastante afinidade com uma pessoa quando consegue pescar no ar o significado até dos olhares que ela dá.

— Muito caridoso da sua parte — comentei, me levantando para dobrar a coberta de cama.

— Eu sou muito caridosa sim, ok? — retrucou. — Acho bom você saber… a Milena vai com a gente.

— A-há! — exclamei. — Eu sabia que toda essa bondade não vinha tão de você assim!

— Claro que vem — ela falou, se virando de costas para mim. Eu nunca vi Joyce corando na vida, afinal sua pele escura disfarçava o rubor muito bem. — Ela é só um adendo. Não me envergonha, Vanessa.

— Eu? — fiz a ofendida. — Te envergonhar? — perguntei com a voz carregada de sarcasmo. — Jamais.

— Engraçadinha — ela deu um risinho sem graça na minha direção.

— Eu não posso demorar muito, viu? — alertei. — Não quero deixar a vó sozinha por muito tempo.

Ela deu aquela revirada de olhos novamente, mas não me contrariou.

Descemos as escadas ainda de pijama e colocamos a mesa para o café bem na hora que Abigail irrompia pela porta com uma embalagem parda que outrora eu associei à felicidade. Agora era só um papel cheio de comida deliciosa que fazia um nó surgir na minha garganta.

Ela desembrulhou os pães enquanto Joyce fazia ovos mexidos. Eu peguei o suco e o café instantâneo.

— Olha só esses pãezinhos, Nessa — vovó indicou três daqueles pãezinhos que eu adoro com açúcar e canela. Fechei a cara na hora.

— Não gosto de canela — menti, colocando o suco na mesa.

Joyce colocou os ovos lá também e comemos em silêncio, com um clima pesado. Eu sabia que não ia conseguir fugir do tópico “menino da van amarela” com a minha avó, mas eu preferia evitá-lo ao máximo.

Quando terminamos de tomar café, Joyce retirou o pijama emprestado e voltou para suas roupas de ontem.

— Passo mais tarde para te buscar, ok? — perguntou quando eu a deixei na porta.

— Ok — eu sorri e a abracei. — Até mais.

— Até, Nessa.

Quando ela dobrou a esquina eu fechei a porta com um suspiro. Abigail estava do outro lado do corredor, escorada no batente da porta da cozinha me encarando com um olhar avaliador.

— Que foi? — perguntei.

— Vai sair hoje, então?

— Vou só com a Joy ali no Centro Comunitário, tem problema? — caminhei na sua direção.

— Você sabe que não — ela rebateu. Eu contraí os lábios.

— Você tem alguma coisa para doação?

— Devo ter. E o rapaz da van amarela?

Era agora. Respirei fundo, correndo os dedos pelos cabelos ainda embaraçados. Passei por ela e escorei à pia da cozinha, na intenção de lavar a louça suja de ontem e de hoje.

— Nós não… estamos mais saindo — informei olhando para baixo.

Ouvi um muxoxo impaciente de minha avó e alguns passos pesados na direção da porta do quintal dos fundos, à minha direita.

— Você não devia fazer isso. Ele deve estar arrasado — comentou ao cruzar a soleira.

Eu não precisava de ninguém para me lembrar que eu havia exagerado um pouco. Sim, eu reconheço isso. Sim, ainda acho que fiz o certo, só podia ter sido mais delicada. Mais verdadeira, era o que Joyce diria.

Eu ainda não via sentido em atolar o menino em todos os problemas que haviam me levado até Boulder City. Eu gostava do que tínhamos porque era leve, muito diferente da minha experiência anterior. Charles cobrava muito de mim, sua presença exigia muito esforço. Eu me sentia na necessidade de fazer o mesmo, o que resultou em um relacionamento desastroso que, eu acredito, foi o primeiro passo que eu dei em direção a um verão em Boulder City. Eu não queria que o mesmo acontecesse comigo e com Luke, então é melhor a gente cortar fora antes que estrague.

***

Às três em ponto, ouvi um carro buzinar na rua. Uma sacola grande e pesada de doações estava ao lado da porta de entrada. Ao espiar pela janela, vi Joyce parecendo muito descolada com óculos escuros e o braço para fora de um conversível vermelho olhando para a casa. Ao seu lado uma moça ruiva mudava a música no rádio. Obviamente era Milena.

— Estou indo, vó — gritei. — Não vou demorar!

— Até mais tarde, Nessa — ela gritou de volta do quintal.

Enfiei o celular e a chave no bolso do macaquinho e arrastei a sacola para fora. Joyce abriu a porta do passageiro e afastou o banco para que eu jogasse a sacola lá junto das outras três que se amontoavam no banco traseiro, fazendo sobrar o espaço exato para acomodar meu corpo.

— Oi — eu falei tímida.

— E aí? — a moça saudou, sorrindo para mim pelo espelho retrovisor. Suas bochechas eram cheias de sardas e ela tinha covinhas. — A Joy fala muito de você, Nessa.

Não consegui evitar corar. Eu gostei da forma como ela disse meu nome, cheia de intimidade como se nos conhecessemos há séculos.

— Sou bem menos maluca do que ela faz parecer, certeza — eu sorri de volta quando Joyce bateu a porta.

Milena deu partida no carro e nós avançamos pelas ruas de Boulder City na direção do Centro Comunitário. Uma música sobre um sábado de sol tocava no aparelho de som e o vento jogava meus cabelos em todas as direções. Ninguém falou muito durante o percurso, só uns pedidos ocasionais de troca de música e comentários aleatórios sobre a paisagem.

O Centro Comunitário de Boulder City era uma casinha colonial de três andares. Algumas crianças circulavam pelo andar térreo, dava para vê-las pelas muitas janelas abertas. Uma mulher com avental passou carregando uma bandeja cheia de bolachas em pacotinhos individuais e colocou à uma mesa. As crianças avançaram e começaram a comer.

Nós três descemos do carro e fomos carregando as sacolas de doações para dentro. As crianças com a boca cheia de bolachas nos miravam curiosas, provavelmente questionando-se sobre o conteúdo das nossas sacolas. Eu sorri simpática para um menininha de olhos muito azuis que me fitava de um jeito intenso que só criança sabe fazer. Entregamos nossas sacolas para a mulher que apareceu para nos recepcionar e, em troca, ela deu um picolé para cada uma.

Fomos nos sentar à sombra de uma árvore frondosa, plantada bem na frente do Centro, para poder aproveitar nossos picolés de frutas da forma que eles mereciam ser aproveitados naquela tarde de verão.

— A Joy me disse que você vai começar a cursar filosofia — eu disse para Milena, tentando puxar assunto. Na mesma hora seus olhos brilharam e ela sorriu amplamente.

— Sim! Começo em setembro — respondeu feliz. — Filosofia é muito a paixão da minha vida. Você curte fazer o que, Vanessa?

— Eu sou das artes — falei. — Gosto de desenhar, pintar, estudar história da arte, essas coisas.

Mostrei as fotos de alguns dos meus desenhos para Milena que pareceu bastante impressionada. Fiquei corada quando ela começou a me elogiar. Joyce dava risada da minha cara de pateta. Eu nunca soube lidar bem com críticas, mas isso eu acho que ninguém sabe. Agora lidar com elogios era uma coisa totalmente além das minhas capacidades.

— Que dia gostoso, não é? — perguntou Milena abrupta assim que o assunto sobre minha arte se encerrou.

O dia realmente estava gostoso: o calor não era massacrante e o céu estava sem nuvens. Eu nem tive tempo de me virar para responder que sim, o dia estava maravilhoso porque ouvi um barulho molhado que indicava claramente que elas estavam se beijando. Ah, ótimo. Agora eu estava de vela.

Tentei me distrair enquanto terminava meu picolé, mas ele encontrou seu fim rápido demais. Apaguei algumas fotos antigas da galeria do celular só pra ter alguma coisa pra fazer enquanto aguardava a boa vontade de alguém me levar para casa.

Encostei a cabeça no tronco da árvore. As duas estavam do outro lado e eu conseguia ouvir alguns risinhos e palavras bestas sussurradas. Desejei Luke ali pra me fazer companhia. Sacudi a cabeça para afastá-lo dos meus pensamentos e mirei o céu azul totalmente desprovido de nuvens. Tentei focar meus pensamentos na minha contagem regressiva para voltar para casa. Ao mesmo tempo que eu não queria deixar Abigail sozinha eu não queria mais passar um dia em Boulder City. Não quando todas as esquinas me traziam lembranças e vans faziam meu coração disparar.

— Nessa? — a voz de Joyce me tirou dos meus devaneios deprimentes. Vinte e oito dias, fiz questão de me lembrar. — Vamos?

— Vamos — concordei de pronto, pulando do meu lugar, grata pela interrupção.

Voltamos para o conversível, agora com o banco traseiro desocupado. Fomos conversando aleatoriedades todo o caminho de volta. Passamos pela avenida principal. Não consegui evitar que meus olhos corressem até a padaria. Para o meu choque, ele estava lá. Carregando alguns sacos de lixo para a calçada. Não me viu, estava com a cabeça baixa focado no serviço. Haviam alguns indícios de barba por fazer em seu rosto, um claro sinal de relaxamento. Não parecia estar mal, mas também não parecia brilhar e exalar sua leveza e bom humor por aí.

Tão rápido quanto ele apareceu em meu campo de visão, ele sumiu. Respirei fundo e quando dei por mim, Milena estava parando o carro à porta da casa da minha avó.

— Entregue — ela sorriu para mim pelo retrovisor. Joyce ergueu o banco para que eu descesse.

— Obrigada pelo passeio — agradeci com um sorriso simpático. Milena acenou com uma mão. Joyce caminhou comigo até a porta e me deu um abração.

— Fica bem, amiga — sussurrou no meu ouvido. Apertei-a de volta. — Mas se lembre sempre de que a decisão foi sua.

— Se cuida, tá? — pedi, ignorando o peso que aquelas palavras causaram. — Até mais, Joy.

— Até.

Ela voltou para o carro e eu acenei para as duas, vendo o veículo se afastar. Quando o conversível de Milena virou a esquina, e eu abri a porta de casa. Abigail fazia barulho do quintal dos fundos, então constatei que tudo estava bem. Peguei uma garrafa de água na cozinha e fui deitar no quarto. Mal encostei a cabeça no travesseiro, ouvi meu celular tocando. Meu pai estava me ligando.

— Alô? — atendi de mau humor.

Oi, filhota! — ele saudou com seu típico bom humor. — Como estão as coisas aí?

Tudo bem por aqui, pai — respondi. — E vocês como estão?

Ah, na correria como sempre — ele riu. — Pegamos um cliente particularmente difícil, sabe?

Ele tagarelou um pouco sobre o caso que eles estavam defendendo naquele verão, outro dos motivos que me mandaram para a casa da minha avó. A cada frase eu revirava os olhos. Era tão típico ele embarcar em uma maravilhosa jornada contando sobre a vida dele.

— Ah… calma aí, filha — ele se interrrompeu. Ouvi a voz de Rosemary murmurando alguma coisa para ele. — Sua mãe mandou perguntar como sua avó está.

Engoli em seco. Era a hora de decidir se eu contava ou não sobre o nosso incidente. Respirei fundo.

— Está sim — optei pelo que me causaria menos problemas. — Cuidando do jardim, como sempre.

Que ótimo! Ela tá bem sim, Ro! — ele falou para minha mãe. — Mamãe está mandando um beijo.

— Manda outro pra ela — sorri um pouco. Eu estava quase com saudades deles. Esse mês de afastamento talvez fizesse bem para nós três.

— Estamos com saudades.

— Eu também estou — falei. Me apressei a acrescentar: — Um pouquinho.

— Só um pouquinho? — brincou.

— É — confirmei.

Ainda está brava por causa do castigo, não é? — sussurrou. Ele sabia que se minha mãe ouvisse ele conversando comigo sobre isso ela ia fazer questão de pegar o telefone e frisar novamente todos os motivos pelos quais eu estava ali.

— Só quero ir pra casa — suspirei, passando a mão pelos cabelos.

O verão está quase acabando — me tranquilizou. — Logo logo você está aqui de novo.

— Sim — concordei. — Mal posso esperar — pontuei com um pouco de sarcasmo. Por mais que não quisesse ficar em Boulder City, voltar para casa também não era de todo agradável. Traria de volta aquela discussão e eu preferia evitá-la.

Bom, vou desligar. Nós temos muito trabalho pra fazer aqui — ele riu. — Até mais, Nessinha!

— Até, pai.

Encerrei a ligação. Caí na cama e fitei o teto branco com algumas manchas de infiltração. Eu queria existir em um plano em que eu não precisasse ficar em Boulder City e que eu também não precisasse voltar para Bakersville. Eu queria que as coisas fossem um pouco mais fáceis.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Desculpa mesmo pelo ritmo paradinho dos capítulos, em breve as coisas voltam a se agitar novamente, eu prometo. Não desistam de mim e da Nessa!
Até sexta que vem o/