A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 9
Capítulo 08




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Lorena

 

2 anos depois

A noite de solstício de verão nem tinha chegado ainda e eu já estava com água na boca. A cozinha de Dorothea estava agitada desde que o dia tinha raiado e, agora no meio da tarde, eu já conseguia sentir o cheiro do resultado. Nessa noite, a comida era sempre muito vibrante e temperada; havia ervas e frutos em abundância e, para minha felicidade, nada de comer bichos vivos no jantar. Nem tinha anoitecido ainda e eu já conseguia visualizar o peixe pescado hoje que Dorothea estava assando no forno de pedra, e sentir o gostinho de fumaça nas escamas crocantes. Hmm...

Dorothea passou pelo meu quarto na mesma hora, bateu na porta aberta para chamar minha atenção e eu levantei a cabeça. Ela estava parada no corredor, secando as mãos em um pano que trazia nos ombros.

— Você acha que pode me ajudar, querida? Falta pouco pra terminar, mas preciso de mais lenha e não quero deixar nada se queimar hoje.

Como se ela já tivesse queimado comida alguma vez.

— Claro — Respondi, deixando meu caderno de lado na cama.

Encarei as páginas marcadas pela papoula que Byakko tinha me dado há três anos. O nome dele, no topo da página, tinha ficado já algumas páginas para trás: todas cheias de coisas sobre o Espírito do templo abandonado. Era um novo hábito que eu tinha adquirido. Antes, eu ocupava meus cadernos com coisas sobre mim, um diário de coisas que eu tinha vivido e que não queria esquecer. Então, eu anotava tudo, já que não sentia que podia confiar na minha própria memória. Mas, agora, eu também tinha várias páginas com coisas sobre Byakko. Inclusive sua papoula branca.

Espíritos não envelhecem, eu tinha escrito no alto dessas páginas, e sublinhado a frase várias vezes. E, mesmo assim, nos dois anos que tinham se passado Byakko mudara tanto quanto eu. Ele também tinha crescido e, agora que eu tinha quinze anos, nós tínhamos exatamente a mesma altura. Eu sempre ia visita-lo no templo, quando conseguia uma folga nas minhas tarefas. E ele vinha me ver em casa, durante a madrugada silenciosa, quando aqueles sonhos estranhos começavam a me atormentar. Já havia meses que isso acontecia: em algumas noites, eu sonhava com o que parecia ser minhas lembranças. Mesmo que, como na vez em que eu tinha me afogado, fosse difícil me lembrar dos detalhes. Além disso, não importava quantas vezes os mesmos sonhos se repetissem, os rostos das pessoas no meu passado pareciam ter sido apagados da minha mente, e deixado apenas um buraco. Um buraco que eu encarava toda vez que sonhava com eles.

Nessas noites, quando acordava assustada, eu encontrava Byakko sentado no batente da janela, de braços cruzados, sobrancelhas franzidas, lábios contraídos e perdido em pensamentos. Quando ele me via acordar, relaxava e dizia que tudo ficaria bem. Era sempre essa a expressão perdida, e o olhar sem foco, que ele tinha quando achava que eu não estava olhando. Então, nós conversávamos até que eu me acalmasse e caísse no sono outra vez. Sempre que eu me levantava, na manhã seguinte, ele já tinha ido embora. Mas deixava uma papoula branca na janela, como um lembrete de onde tinha passado a noite...

— Lorena, a lenha! — Dorothea gritou da cozinha, me apressando.

— Ah, já vou!

Fechei o caderno, para não correr o risco de Dorothea ver algo que não devia, e o escondi debaixo do travesseiro, antes de sair do quarto. Atravessei o corredor e passei pela cozinha, tentando não me distrair pelo cheiro da comida. Saí da casa e andei até os fundos, onde nossa lenha ficava armazenada debaixo de um pequeno alpendre, protegida da chuva. Infelizmente não tinha pedaços cortados para caberem no fogão, só os tocos inteiros. Droga..., bufei, já procurando o machado. Peguei um par de tocos, a lâmina, chequei o fio e comecei a cortar a lenha. Só precisava do bastante pra Dorothea terminar o jantar.

Eu também tinha adquirido outro hábito nesse meio tempo: o de anotar tudo o que conseguia me lembrar desses sonhos estranhos, dessas minhas memórias que voltavam picadas, toda noite. Isso mais ou menos na mesma época conheci Mab, o Espírito dos Sonhos, que Byakko tinha chamado para perguntar sobre os meus sonhos estranhos. No entanto, ela tinha dito que não eram sonhos comuns. Ou que, pelo que sabia, não eram os seus sonhos. Nem ela nem Byakko discutiram muito o assunto na minha frente, então tudo o que eu podia fazer era torcer para que, finalmente, eu estivesse me lembrando. E registrar tudo com cuidado, com medo de me esquecer outra vez.

Enxuguei com as costas da mão o suor que começava a escorrer da minha testa. Também afastei o cabelo meio molhado do rosto e da nuca, antes de me abaixar para pegar a lenha cortada. Enchi os braços com a madeira e voltei para a cozinha.

— Muito obrigada, querida — Dorothea deu um passo para trás, se afastando do fogão e enxugando suas mãos outra vez. — Pode deixar tudo aí no chão e mexer a panela, por favor?

Ela se abaixou para enfiar a lenha na fornalha quente, pedaço por pedaço, atiçando o fogo para que não esfriasse muito com a madeira que ainda não tinha virado carvão. Dorothea praguejou baixinho, levando a mão às costas. Ela já vinha reclamando das dores a um tempo, mas continuava insistindo em cuidar do fogo ela mesma. Tudo para que eu não ficasse nervosa e acabasse me queimando, como tinha acontecido na vez em que insistira em acender o fogão mesmo assim. Isso já tinha muitos anos, mas Dorothea era cabeça dura... Nem parecia notar que eu não era mais uma criancinha assustada.

— Mexa bem e não deixe grudar no fundo — ela me repreendeu quando viu que eu estava mexendo devagar demais, distraída.

Dorothea terminou de ajeitar o fogo na fornalha e se levantou com um gemido. Deu um passo para trás para abrir a porta de pedra do forno, checou o peixe e os pães e voltou a fechar tudo com um aceno, fechando os olhos para sentir o cheiro.

— Está quase pronto — ela anunciou, voltando até mim para retomar o controle das panelas.

Dorothea olhou bem para a calda, passou a colher de pau no fundo para saber se eu tinha mexido direito, e soltou um suspiro de aprovação. Depois, se virou pra mim:

— Faz tempo que não vejo você com seus amigos. Eles vêm pra cá antes do festival? Dois pares extras de braços jovens seriam muito úteis pra levar tudo pra clareira.

Ela tinha razão, e eu mesma já tinha percebido isso havia um tempo: de repente, eu começara a passar mais tempo entre os Espíritos – com Byakko, Mab, Tâmi, Um e Dois – do que com meus velhos amigos. Quando Ed e Alice passavam em casa para me ver, eu quase sempre já tinha saído para ir ao templo. E, quando eu os via, não sabia como explicar para os dois o porquê de andar tão sumida. Mas o festival seria a ocasião perfeita para me redimir. O solstício de verão era o dia em que casais juravam amor eterno, que os pais pediam proteção a seus filhos recém-nascidos, as pessoas dançavam e se divertiam. Era uma festa que todos deviam comparecer, e prometi a mim mesma que eu passaria a noite com Ed e Alice.

— Ah, sim — respondi. — Ed e Alice vão passar aqui antes do anoitecer. E você sabe que eles nunca recusariam acesso privilegiado à sua comida, né?

Dorothea riu.

— É verdade. Não posso me esquecer de separar a comida para vocês três.

Ela colocou um pouco da calda na palma da mão, assoprou e provou. Depois, tirou a panela pesada do fogo e a levou até a mesa para descansar. Me entregou a colher para lamber, e disse:

— Está na hora de você se arrumar, então. Eu consigo cuidar do resto agora, querida.

Assenti e voltei para o meu quarto para trocar de roupa e esperar pelos meus amigos.

 

 

Byakko

 

— Mestre, a menina também não vem hoje? — Um perguntou, através da porta.

Levantei minha cabeça rápido demais ao ouvir ele dizer “menina”, e a bati na madeira em que me sentara apoiado. O estalo ecoo pelo templo, e o golpe acidental fez as portas tremerem.

— Ai... — Dois deixou escapar, como se a pancada tivesse sido nele e não em mim.

Não era a primeira vez que isso acontecia. Eu não sentia nada, nem a dor, quando batia em algo assim. Esse corpo não passa de uma mentira..., lembrei-me. Não importava o quanto Dois achava que conseguia simpatizar com a dor da pancada.

Mesmo assim... Levei minha mão até a cabeça e toquei o lugar da batida, instintivamente. O que era essa sensação? Essa ardência que estava sentindo agora, como um comichão? Massageei a pele durante alguns segundos, remoendo essa coisa estranha, até que a sensação passasse.

Isso já aconteceu antes?

— Byakko? — Um me chamou outra vez.

— O quê?

— A menina não vem hoje? — Ele repetiu sua pergunta, um pouco mais pausadamente desta vez.

Baixei minha mão.

— Não... Ela está ocupada com o solstício de verão.

Era hoje o festival. Lorena tinha ingenuamente me convidado para a celebração e eu, tolo, fiquei tão feliz que quase aceitei... Eu ainda me lembrava da época em que os Espíritos se faziam presentes nos festivais, ao invés de só ouvir, de longe, as preces sussurradas. Eu me lembrava de quando os templos tinham sido construídos e os Espíritos tinham um lar entre os humanos. Me lembrava de quando eu tinha um lar, e tinha um povo para proteger. Então, quando ela me convidou, eu quase disse sim. Queria ter tudo aquilo de novo, sim... Mas não podia. Aquele tempo tinha passado, e as pessoas que viviam na ilha agora não eram o povo com quem eu convivera.

Um suspirou.

— Então por que você está sentado na porta como se estivesse esperando por ela?

Levantei-me, olhando através do salão todo, até encarar o painel atrás do altar. Fitei os dois animais esculpidos: eu e... Sacudi a cabeça. Eu tinha banido Yasuko do templo há muito tempo, e ainda assim eu deixara sua imagem continuar na parede. Por quê?

Tudo tem que ficar igual, repeti para mim mesmo. Tudo tem que ficar como naquela noite. Eu não posso me esquecer...

E, de uma forma dolorosa, olhar para o vulto escuro do meu irmão me lembrava do que ele tinha feito. Do que ele tinha me custado...

Virei as costas para a imagem dele e apoiei minhas mãos abertas nas portas duplas. Suspirei e descansei minha cabeça na madeira também, fechando os olhos. Quando voltei a abri-los, eu empurrei as portas e avancei um passo para fora.

Um e Dois ficaram surpresos quando me viram saindo, e mais ainda quando me sentei na varanda, de frente para eles.

— Estou preocupado... — Respondi.

— Com o quê? — Dois perguntou.

Cruzei os braços ao redor do meu corpo, como se pudesse extinguir o frio na barriga que já sentia há algum tempo, desde que aqueles sonhos de Lorena tinham começado.

— Não sei exatamente... É só um pressentimento ruim, eu acho.

Nem eu nem Mab tínhamos descoberto ainda de onde aqueles sonhos..., os vislumbres de lembranças que Lorena andava tendo, vinham. Considerando a maneira que eu tinha tirado as memórias dela, deveria ser impossível que ela se lembrasse de algo sozinha. A não ser que alguém estivesse interferindo... E isso me deixava inquieto. Será que a Serpente...

Não. Ela não tem esse poder, lembrei-me.

Mas isso nunca a impediu antes..., outra voz, mais pessimista, rebateu.

Rosnei, fazendo Um e Dois se entreolharem. Por fim, os irmãos apenas suspiraram e Um sacudiu sua cabeça.

Além disso, eu não conseguia tirar aquela última conversa com Yasuko da cabeça. Por que você a salvou?, ele tinha perguntado. A menina pulou no mar por conta própria, teria uma morte natural, e mesmo assim você a salvou. E eu respondera que estava cumprindo minha promessa. Não a de protege-la, mas a de não deixar que Lorena se fosse sem lhe devolver o pedaço que tinha tomado dela. E, mesmo assim, quando a tirara da água eu não tinha nenhum compromisso em mente, nenhum juramento, só desespero. Eu fora capaz sentir que ainda tinha uma faísca dentro dela, que eu tinha conseguido salvá-la a tempo, mas eu só conseguira sentir medo ao encarar a pele azulada de frio dela. E sentir um aperto gelado no meu peito que eu nunca tinha experimentado antes.

Isso já está indo longe demais..., Yasuko me dissera. Eu conseguia me lembrar bem da maneira como ele tinha me encarado: com seu olhar de “se você não consegue fazer nada a respeito, eu vou”. Mais uma coisa pra me tirar a calma... Porque, da última vez que Yasuko tinha “tomado uma atitude” sobre algo, Um e Dois acabaram aqui, comigo: sem seus corpos, sem seus nomes, metade parte da decoração e metade porteiros mal-humorados, presos a um pedaço de metal em uma porta. Agora, eu tinha que proteger Lorena da Serpente, desvendar o mistério sobre os sonhos da menina e ainda me ocupar de descobrir o que Yasuko estava tramando.

Suspirei, cobrindo minha cabeça com as mãos e escondendo meu rosto entre os joelhos dobrados.

Fiquei sentado tanto tempo assim, imóvel, que logo anoiteceu. Mesmo de cabeça baixa eu conseguia ver a luz mudar para o vermelho do sol poente e, então, se apagar.

— Byakko?

Senti a energia de Mab antes de levantar a cabeça e vê-la através dos meus dedos. Sonho estava de pé entre as portas abertas do templo, no escuro, de frente para mim. Ela inclinou sua cabeça, encarando minha postura, meu corpo largado no chão.

— Será que eu cheguei tarde demais?

Abaixei minhas mãos do rosto e cruzei meus braços, apoiando-os nos meus joelhos.

— Por quê?

Mab avançou um passo na minha direção.

— Tâmi mandou um recado. Mas você tem que me prometer que vai ficar calmo.

Levantei uma sobrancelha. Mab também levantou a dela em resposta. Fiquei de pé e me apoiei no guarda-corpo atrás de mim, segurando o corrimão de pedra.

— Qual o recado? — Insisti.

Ela suspirou.

— Tâmi acha que viu a Serpente perto do rio. Disse que não conseguiu enxergar direito, mas que a energia era a mesm...

Um estalo a interrompeu, e Mab sacudiu sua cabeça para mim. Virei meu rosto e vi que eu apertara o guarda-corpo com tanta força que tinha rachado a pedra de um lado ao outro, e a esfacelado em alguns pontos, perto de onde tinha deixado marcas de garras... Levantei minhas mãos e os pedacinhos de mármore grudados na minha pele caíram no chão.

— Você sabe que nem sempre o que Tâmi vê é confiável — Mab apontou os próprios olhos. — Ela é quase cega como um morcego, se lembra?

Concordei com um aceno de cabeça, olhando para baixo.

— Desculpa...

— É o seu templo — ela rebateu.

Mab deu de ombros e se aproximou de mim, se apoiando no corrimão também.

— Ela não aparecia desde o incêndio. Por que voltaria agora?

Levantei meu rosto para encarar ela.

— Eu não sei... Mas ela não costuma aceitar nada inacabado, certo?

Mab ajeitou a túnica que eu vestia, puxando o medalhão para cima. Eu podia parecer ter quinze anos agora, como Lorena, mas ainda estava longe de me ajustar naquelas roupas, que continuavam um pouco grandes, principalmente nos ombros e no comprimento.

— Ela não se importa com as vidas que tira, não é? Tudo o que a Serpente faz, ela faz para te punir.

Anuí.

— Porque eu me importo...

Sonho abriu a boca para dizer alguma coisa a respeito, mas eu a interrompi, segurando-a pelo pulso. Fechei os olhos para me concentrar e ouvi, bem no fundo da minha mente, alguém chamando meu nome.

Byakko..., eu ouvi a voz de Lorena.

Seu tom não indicava urgência ou medo, mas senti frio dentro de mim mesmo assim. Primeiro, Tâmi tinha visto a Serpente, e agora Lorena estava me chamando através do amuleto que eu tinha lhe dado. Não podia ser uma coincidência...

Num instante, eu desapareci do templo e me materializei na clareira do festival.


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