A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 8
Capítulo 07




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Byakko

 

Vi-a se afastar através das portas entreabertas. Depois que Lorena deixou a praia para trás com seus amigos, parecia seguro sair. Ergui as mãos diante do rosto e observei-as minuciosamente. Não havia qualquer diferença. Entretanto por quê, então, eu as sentia tão pesadas e ao mesmo tempo vazias?

Outra coisa também parecia estranha: meu peito... pus a mão sobre ele, parecia pleno agora, onde eu nunca soubera que havia um buraco. Estava cheio de uma sensação cálida e serena que pareceu transbordar até meus dedos e acalmar um pouco minhas mãos. A mesma sensação que parecia vir da moeda toscamente esculpida que ela me entregara.

— Tem alguma coisa estranha... comigo.

— O que foi, mestre? — Um e Dois, as aldravas, perguntaram em uníssono.

— Byakko — eu corrigi. — Me chame pelo meu nome, por favor.

Eles se entreolharam, surpresos e reticentes, mas obedeceram.

— O que foi, Byakko?

— É quente — expliquei o melhor que podia, já que não sabia ao certo do que se tratava. — Aqui — apontei para o meu peito. — O que é?

Mais uma vez, os dois responderam juntos, rindo alto:

— É um coração.

Pensei na resposta deles como mais uma de suas brincadeiras, afinal, o avatar de um Espírito era apenas uma imitação superficial do corpo dos mortais. Ter um coração era coisa dos humanos, algo que não podia ser simulado. Eles já tiveram corações antes, lembrei-me, antes de perderem seus corpos e serem ligados à essas portas. Aquela devia ser, afinal, a sensação que eles conheciam de possuir um coração.

Voltei ao salão, e as portas se fecharam atrás de mim. Caminhei até o quarto onde deixara Lorena descansando depois de resgatá-la, mas hesitei sob a soleira. Este era um cômodo que eu nunca visitava, nem antes da tragédia, e muito menos depois. Mas era a segunda vez que eu deitava Lorena naquela cama — apesar dela não se lembrar, por minha causa. Eu também a deixara descansar lá, depois do incêndio, enquanto se curava.

Mas, por mais que o templo fosse o meu lar, e tivesse este significado para muitos outros Espíritos, nem eu, nem nenhum deles, precisávamos de um quarto. Espíritos não dormiam e não comiam, e por isso a cama e a mesa nunca me pertenceram. Eram de alguém que também vivera no templo, comigo.

Suspirei, pensando que devia arrumar aquele lugar também, deixa-lo como naquela noite, assim como fazia com o salão de orações, sempre que algo era movido ou se empoeirava. Entrei e ajeitei as duas cadeiras, limpei o pó sobre a mesa e fechei as janelas, antes que a maré voltasse a subir. Depois, estendi sobre a cama o cobertor Lorena nem chegara a usar, deixando-o bem esticado, e me abaixei para apagar o fogo da lareira. Foi quando me deparei com o espelho, fora de seu lugar. Eu mesmo o deixara virado contra a parede, eu me lembrava, mas agora conseguia ver meu reflexo outra vez.

Eu vi dezenas de rostos diferentes ­— a maioria assustadores — refletidos no espelho, alternando-se como as cores num caleidoscópio, pois, assim como não tinha um corpo mortal, também não tinha uma única face. Os Espíritos se parecem com aquilo que os Mortais pensam de nós. Alguns mudam menos, apenas quando diante de povos e culturas diferentes, ou com o passar do tempo. Mas, para aqueles como eu, a beleza está exatamente nos olhos de quem vê. Cada mortal que me vê, tem uma imagem diferente de mim, geralmente uma imagem torpe e tenebrosa do que pensam da morte, e era isso que o espelho mostrava. Não importava quanto tempo eu passasse diante dele, eu nunca me identificava com os milhares de rostos que via se alternando no reflexo.

Voltei a virá-lo, evitando olhar para as imagens que detestava tanto, e apaguei o fogo antes de sair do quarto onde provavelmente não voltaria tão cedo.

 

***

 

Eu andava em círculos impacientemente abaixo do beiral do templo. Mesmo do lado de fora, eu me fazia invisível. Se alguém olhasse na minha direção por acaso, de relance, não veria nada. A não ser que me procurasse e soubesse o que procurar. Não que muitas pessoas vivas se encaixassem nessa descrição. Mas Lorena se encaixava, e era por ela que eu esperava.

Era mais difícil me esconder daqueles que já tinham visto a Morte. Visto meu rosto.

Parei diante das aldrabas.

— Vocês dois têm certeza de que ela não apareceu?

Os dois bufaram. Já era a terceira vez que eu fazia a mesma pergunta.

— Sim... — Eles repetiram, juntos.

Voltei a andar em círculos como um animal enjaulado. Já haviam se passado dois dias desde que Lorena se afogara e eu a trouxera aqui para se reestabelecer. No entanto, mesmo tendo lhe dito para que viesse no dia seguinte, como já costumava fazer, ela não aparecera. Nem ontem, nem hoje.

— Ela pode ter passado enquanto vocês dormiam — retruquei.

— O senhor já nos viu dormir desde que perdemos nossos corpos? — Um perguntou.

Parei, encarando-o.

— Não...

— Pois é! — Disse Dois.

Depois, ele se virou – o que podia, sendo uma cabeça presa a uma porta – para o irmão e cochichou:

— Se bem que a gente deu uma bela distraída ontem, né...?

— Psiu, cala a boca! — Um o revirou os olhos. — Você já viu como ela é barulhenta? Batendo na porta e gritando “Byakko, Byakko!”. Nós nunca deixaríamos passar isso.

Dois anuiu.

— É, você tem razão...

Eu começava a me enervar, pensando no pior, apesar de saber que, se ela corresse perigo, Damon certamente já teria me procurado. Mas ainda é dia, pensei, então ela ainda pode aparecer.

No entanto, a noite chegou e a maré subiu sem sinal de Lorena. Um e Dois cochichavam entre si as suposições mais estranhas do que poderia ter acontecido, o que não me tranquilizava em nada. Será que ela caiu num buraco? Será que bateu a cabeça? Será que comeu alguma coisa estragada? Pode ter adoecido, eles tagarelavam sem parar.

— Chega! — Disse, levantando-me. — Vou descobrir o que aconteceu.

Apareci sem aviso nos fundos da casa de Dorothea, ainda invisível. Não que pudesse enganar a senhora apenas com isso: se ela olhasse diretamente para mim, não haveria truque que me esconderia dela. Afinal, ela já me conhecia. Você não vai se aproximar dela, Dorothea dissera, na noite em que lhe entregara a menina, sã e salva do incêndio, e lhe contara a verdade. Os Espíritos já destruíram sua família. Fique longe dela! E aqui estava eu, quebrando minha promessa outra vez, pelo bem de Lorena. Por sorte, a senhora estava em seu quarto, eu vi através das janelas entreabertas de seu quarto. Ela estava sentada na cama, segurando algo fora do meu campo de visão. A janela de Lorena, entretanto, estava escancarada, e eu podia ver seu quarto iluminado pela luz fraca e trêmula de uma chama.

Lembrei-me da noite em que entrara lá atrás do amuleto que ela pegara do meu altar. O amuleto de Minty.... Se a luz do quarto de Lorena estava acesa, e se a própria Dorothea já descansava, devia estar tudo bem. Essa ideia me acalmou. No entanto, ainda mais agora, me perguntava porque a menina não aparecera no templo, se nada de ruim parecia ter acontecido. Dei um passo para frente, mas parei. Eu só estava ali para saber se ela estava bem, não é? Não invadiria seu quarto novamente. Mas só queria lhe perguntar o que tinha acontecido... se eu tinha feito algo de errado.

Fui me aproximando da janela. Já conseguia ver Lorena sentada sobre a cama, com uma vela no colchão ao seu lado, muito entretida com algo em seu colo. Não sabia ao certo o quê, pois seu corpo estava na frente, e de costas para mim e para o lado de fora.

— Ei.

Lorena deu um pulo de susto, derrubando o caderno que segurava no chão. Bateu seu cotovelo na parede entre nós e o apertou com força, por reflexo.

— Ai!

Quando se recuperou, virou e viu que era eu, fechou a cara, mas falou sussurrando, esperando que Dorothea não tivesse ouvido seu grito:

— O que pensa que está fazendo?!

— Vim procurar você — sussurrei também.

Ela ainda segurava o próprio braço.

— Por quê?

Desviei o olhar.

— Você não apareceu no templo. Disse que voltaria...

Ela desatou suas sobrancelhas e relaxou sua postura, parecendo bem mais amigável agora.

— Ah...

De pé, a janela batia nos meus ombros. Pulei e pendurei-me nela com os braços esticados, como se fosse passar minhas pernas pelo batente e entrar, mas só fiquei assim, com os pés dependurados.

— Por que não apareceu?

Lorena suspirou, passando a mão no cabelo.

— Porque estou de castigo. Por ter me “jogado no mar sem pensar nas consequências” — ela repetiu as palavras que eu imaginava terem sido pronunciadas por Dorothea, gesticulando muito como se a imitasse. — Dorothea não me deixa sair de casa desde que voltei toda molhada aquele dia. Me fez lixar e envernizar aquela maldita canoa velha todinha até brilhar. Só fui terminar hoje quando já estava escuro. E a gente nem usa aquilo! Nós trocamos peixes com os pescadores em troca de pão. Ela faz um pão delicioso, sabe? Mas agora estou com meus braços doendo...

Ela parou um instante para recuperar o fôlego, depois de falar sem fazer uma pausa, e massageou os próprios ombros.

— Enfim... Me desculpa não ter aparecido.

— Tudo bem — eu a tranquilizei. — Só vim pra saber como você estava.

Virei-me para partir, mas ela me chamou de volta.

— Espera — pediu, com a mão estendida como se esperasse me segurar. — Pode ficar mais. Eu não consegui sair, mas, já que está aqui, podemos conversar. Ou... Você precisa voltar e ir dormir também?

Levantei uma sobrancelha.

— Eu não durmo.

Ela me encarou, boquiaberta.

— Nunca?

Confirmei com um aceno.

Ela bocejou e esfregou as pálpebras que começavam a pesar.

— Nooooossa...

Soltei meu peso de volta no chão, dobrei os joelhos, pulei e me sentei sobre a janela, me apoiando nas ombreiras.

— Mas você não pode ficar acordada como eu. Está cansada.

E tinha as mãos calejadas, certamente pelo trabalho braçal que fizera enquanto estava de castigo.

Lorena assentiu, sentindo o cansaço. Abaixou-se, pegou o caderno que caíra no chão com as páginas abertas e o guardou sob a cama. Do mesmo lugar, tirou um gato branco de pelúcia do qual me lembrava bem, ­– do incêndio – apesar de não imaginar que ela ainda se apegasse tanto a ele. Até entrar em seu quarto para recuperar meu amuleto e vê-la dormindo com o bicho em seus braços, pensava que ela já o teria abandonado com a idade. Era reconfortante ver que, mesmo depois de um ano, ela ainda tinha o mesmo hábito. Ainda era uma criança, afinal.

Coçou sua cabeça, olhando para mim.

— Agora que vou dormir, você vai embora?

— Posso ficar aqui até você cair no sono, se quiser, Lóris.

Ela sorriu.

— Por favor.

Lorena puxou a coberta por cima do próprio corpo e se deitou de lado, virada para a janela e para mim.

Com o trabalho pesado que fizera, ela não demorou a dormir. Seu rosto estava relaxado, sua respiração serena escapava de sua boca entreaberta e ela parecia estar num sono profundo e sem sonhos. Mesmo assim, a ideia de ir embora começava a me angustiar. Seu sono viera tão rápido... Mas Damon está por perto, disse à mim mesmo, ele vai cuidar dela. E me confortei com a ideia de que amanhã, tendo terminado seu castigo, ela viria me ver.

Ia me virar para partir quando senti, atrás de mim, alguém se aproximar. Era uma aura conhecida, mas não era um amigo; alguém que eu não queria perto de mim, e muito menos de Lorena, mas o qual, pelo visto, eu nunca conseguia evitar por tempo demais.

—Yasuko... — Disse seu nome em voz alta antes de me virar, deixando claro que já o notara.

Ele deu um passo para fora das sombras e para perto da casa, o que me enervou, mas não se aproximou mais. Não precisávamos estar lado a lado para ouvir um ao outro.

— Irmão... Vim conversar.

Ainda com a minha mão no batente da janela de Lorena, apertei a madeira tão forte que devo ter deixado marcas.

— Este não é um bom lugar para conversarmos.

Ele tentou olhar através da janela, mas logo voltou a me encarar.

— É o único lugar que temos para conversar, considerando que fui banido daquele templo onde você se esconde todo o tempo...

Rosnei para ele, que pareceu se divertir em ver minha forma vacilar com a raiva, mostrando algo assustador por baixo da pele de criança com a qual Lorena me via.

— Você não merece entrar lá... Imagino que não preciso lembra-lo do porquê.

— Não, não precisa — rebateu com um tom enfadonho.

Lorena se mexeu e murmurou, apesar de continuar profundamente adormecida. Estávamos perturbando seu sono. Precisava tirar Yasuko dali.

— Vamos conversar em outro lugar...

Desapareci, imaginando que não demoraria sequer um instante para Yasuko me seguir.

Num átimo, estávamos os dois juntos outra vez, agora na praia, mas um pouco distantes de meu templo. Um e Dois também tinham seus motivos pessoais para não gostar de meu irmão, e tê-los por perto enquanto Yasuko conversava sobre o que quer que fosse só pioraria tudo. Além disso, eu não queria lhes trazer lembranças ruins, nem ser lembrado de um passado que não fora capaz de remediar...

— Pronto, estamos a sós. O que precisa me dizer? — Cuspi impaciente, deixando claro que queria que aquilo terminasse rápido.

— A menina Thanat...

Estremeci. Apesar de ter aparecido na casa dela, a última coisa que eu esperava que ele quisesse conversar era sobre Lorena.

— Por que você a salvou, dias atrás?

— Estava apenas cumprindo meu juramento — respondi apressadamente.

Ele estreitou seus olhos.

— Não, não estava. Seus votos eram de proteger a linhagem de Thanat da Serpente. Mas a menina pulou no mar por conta própria, teria uma morte natural, e mesmo assim você a salvou. Por quê?

Ele chiou diante do meu silêncio, soltando o ar por entra as presas:

— Por quê, Byakko?!

Trinquei meus dentes.

— Eu não posso deixar ela ir assim... — Respondi, sendo julgado pelo olhar frio de Yasuko. — Eu lhe tirei as memórias, e não posso deixar que ela morra sem tê-las de volta. Não posso deixa-la partir assim, incompleta...

Acabei usando sem querer a mesma palavra com a qual a menina constantemente se definia, como ela dizia se sentir. O que era culpa minha. Encarei o chão antes de continuar:

 — Eu prometi a mim mesmo que lhe devolveria seu passado.

Yasuko soltou um ruído exasperado entre os dentes.

— Então faça isso agora!

Sacudi minha cabeça com força, com os olhos fechados.

— Não! Preciso ter certeza de que ela está pronta para isso. Quando seus pais morreram, ela não estava preparada. Sequer conseguia entender o luto e a mor... — Engasguei com a palavra que me representava. — Não conseguia entender a ausência de sua família... Preciso observá-la mais de perto para saber.

Meu irmão me encarava com seu olhar insondável, pensando muito, mas sem dizer nada. Por fim, ele sacudiu sua cabeça devagar, de olhos fechados.

— Isso já está indo longe dema...

— Quem está aí?

Uma voz distante interrompeu o que ele dizia.

Nós dois nos viramos para olhar na mesma direção.

Alguém, provavelmente um insone, passou pela praia, à alguma distância de nós, mas o suficiente para ouvir nossas vozes baixas sendo levadas pela brisa do mar. O humano tentava ver algo na noite sem lua, mas éramos invisíveis para ele. Mesmo que não tivéssemos tido a mesma cautela com o que dizíamos.

Yasuko rapidamente desapareceu de meu lado, numa lufada de fumaça escura que logo se dispersou.

Fechei meus punhos, deixando minha forma vacilar. Deixando que qualquer um me visse. Estava com raiva de Yasuko, eu sei, mas queria que se afastassem. Queria ficar sozinho.

Sem resposta, e vendo somente meu vulto e meus olhos brilhantes surgirem de repente na escuridão, quem quer que fosse apressou seu passo para longe dali, carregando consigo mais uma história de vozes e fantasmas para contar sobre a Praia Velha.


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