A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 13
Capítulo 12




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/762115/chapter/13

Lorena

Chegamos na clareira pela manhã, e eu e Dorothea não estávamos sozinhas. Nós já tínhamos cruzado com outras pessoas nas trilhas, todas seguindo na mesma direção que a gente, mas já haviam muito mais pessoas aqui, arrumando e limpando o espaço. O lugar estava um caos... Assim que eu acordara, Dorothea tinha pedido minha ajuda para buscar as coisas que tinham ficado para trás, na clareira, durante a correria da noite passada. E, pelo que eu via ao redor, Dorothea não tinha sido a única a ir embora e deixar tudo para trás: havia coisas largadas por todos os lados, copos caídos no chão, pratos abandonados, cadeiras reviradas. Enquanto Dorothea tinha corrido para me procurar, muitos outros tinham fugido para suas casas. E dava pra ver como as pessoas ao redor, tentando arrumar a bagunça, estavam ansiosas. Muitas delas tinham uma cara cansada, os olhos inchados de uma noite mal dormida, as conversas aconteciam em sussurros, e não num volume alto, empolgado, de depois do festival. Estavam todos acanhados, e alguns se assustavam com qualquer ruído, mesmo que fosse só um graveto se quebrando sob os pés de alguém.

E pensar que era Byakko quem tinha assustado todo mundo...

Dorothea me puxou até as mesas no canto da clareira. Ontem à noite, ela estivera cheia de comida o suficiente para alimentar todos até o raiar do dia. Até a hora que eu tinha voltado para casa, ainda estava tudo na metade. Mas agora a mesa estava toda revirada, havia pegadas e penas ao redor dela, e quase toda a comida tinha sumido. Sem ninguém para os espantar e com o fogo morrendo, os animais tinham comido tudo durante a madrugada. Vários pratos e potes tinham sido virados e havia restos de comida espalhados no chão. Dorothea espantou os pássaros de cima da mesa, balançando os braços, e suspirou.

— Eu já devia ter imaginado que isso fosse acontecer — ela começou a recolher os cacos de uma vasilha de cerâmica que tinha sido derrubada. — Não sobrou nada.

Cheguei mais perto da mesa e comecei a pegar as vasilhas que ainda estavam lá, e inteiras.

— O que eu faço com isso? — Mostrei um punhado de pães que tinham sobrado, mas que tinham buracos de bicadas de gaivotas. Tinha muito mais que isso em outras vasilhas, tudo parcialmente comido pelos animais.

Ela pegou os pães, passou um dedo pelos furos e sacudiu a cabeça. Depois, jogou tudo no chão.

— Pode deixar o que tiver sobrado para os animais mesmo. Não vejo nada que pode ser salvo — Ela suspirou. — Pelo menos eles tiveram um bom solstício...

Dorothea se levantou, com as mãos cheias de cacos de cerâmica, e os jogou dentro de outra vasilha, uma inteira, para que ninguém se machucasse. Depois, começou a empilhar todas as vasilhas limpas que eram dela, enquanto eu jogava os restos de comida no chão.

Mais pessoas começaram e chegar na clareira. Algumas tinham vindo recolher suas coisas, como Dorothea, outros tinham voltado para retirar as decorações da clareira e ajudar com a limpeza. Parei, enquanto Dorothea empilhava suas vasilhas nos meus braços. Ela sempre preparava tanta comida que era normal Ed e Alice nos ajudarem a carregar tudo. Mas hoje, eu estava sozinha. Aff... Pelo menos as vasilhas estavam vazias e eu poderia levar tudo em uma viagem só.

— Ei, você conseguiu dormir alguma coisa?

Olhei para os lados, procurando quem tinha falado. Um garoto estava empoleirado num galho, desatando os nós que prendiam os tecidos coloridos da decoração, enquanto outro garoto, embaixo da árvore, segurava a outra ponta do pano. A conversa não era comigo, então.

— De jeito nenhum. — O garoto no chão respondeu. — Lá em casa ficaram falando sobre o que aconteceu a noite toda. Ninguém pregou olho. Mas eu não disse que estou com medo... Porque eu não tô — ele revirou os olhos.

O primeiro riu, desatando um último nó e jogando o tecido todo sobre o amigo.

— Arram..., sei.

Aquele mais perto de mim bufou, e quando conseguiu se livrar do tecido em cima da própria cabeça e jogar ele pro lado, tinha a cara amarrada.

— Tô falando sério!

O garoto na árvore pulou de volta para o chão.

— Nem tenta se fazer de corajoso, cara, todo mundo ficou apavorado — ele caminhou até o amigo e o ajudou a dobrar o tecido. — Não tinha como não ficar com medo. Os Rugidos foram assustadores.

— É, você tem razão... Meus pais conversaram sobre isso a noite toda. Queriam deixar eu e minhas irmãs trancadas em casa.

O que tinha subido na árvore riu e deu uma batidinha no ombro do amigo.

— Então você ficou mesmo acordado a noite toda porque tava com medo, igual quando contavam as histórias sobre a Praia Velha pra gente?

O outro corou, e deu um empurrão no amigo.

— Ah, cara... Sai do meu pé! Vai me dizer que conseguiu dormir depois daquilo? Sério?!

Os dois se afastaram, seguindo para a próxima árvore que precisavam arrumar, e não pude mais ouvi-los.

Dorothea colocou a mão no meu ombro, chamando a minha atenção.

— Não está muito pesado, Lorena?

Me virei para ela, piscando devagar. Ah, é, as vasilhas. Ela tinha empilhado quase tudo nas minhas mãos, enquanto carregava duas jarras de barro que serviam pra armazenar água fresca, uma debaixo de cada braço.

— Podemos fazer duas viagens, se quiser. Você ainda não parece bem...

Eu não estava muito melhor que o resto das pessoas por ali. Meus olhos também estavam inchados ­­­­­­­­– mas de tanto chorar – mesmo depois de algumas horas de sono, e eu podia sentir que estava pesado, mas nada demais. Não era isso que estava me incomodando. Só queria ficar deitava na minha cama, mas...

— Não, tudo bem. Eu dou conta.

Dorothea me analisou por um momento, mas assentiu. Ela começou a andar na frente, voltando para casa. Como a mesa com a comida ficava na ponta da clareira, tínhamos que atravessar ela toda para voltar às trilhas. Passamos pela fogueira, no centro do círculo de árvores, e por duas garotas agachadas no chão, recolhendo o carvão e as cinzas e ajeitando as pedras ao redor. As duas tinham o mesmo formato de rosto, o nariz reto, o cabelo cortado no mesmo comprimento, mas não tinham a mesma idade. Uma se chamava Beca, e a outra, Gisa...

— Fantasma? Você acha mesmo que aquilo parecia um fantasma? — A mais velha disse, sacudindo a cabeça. — Nem parecia ser humano.

Beca parou o que fazia para encarar a irmã.

— Mas, então, o que você acha que era aquilo?

Gisa suspira.

— Ninguém tem a menor ideia. Mas parecia...

— Lorena?

Levantei a cabeça. Tinha parado no meio do caminho para ouvir as duas meninas, e Dorothea agora estava alguns passos adiante, chamando minha atenção.

— Estou indo — respondi, suspirando e acelerando o passo.

Por que estava tão preocupada em ouvir o que os outros pensavam do que tinha acontecido? Eu tinha prometido pra mim mesma, na noite passada, que ia me esquecer dele..., de Byakko. E aqui estava eu, entreouvindo conversas sobre ele, como se me importasse.

Eu tinha meus próprios problemas para resolver, e outras coisas me perturbando. Não tinha medo de Byakko, tinha medo do Espírito de sorriso de cobra que tinha invadido meu quarto. Era Isméria que me assustava... Desde que acordara hoje, isso não saía da minha cabeça. E se ela voltasse? Eu não conseguia acreditar que ela só queria conversar. Ainda me lembrava do jeito que ela tinha me olhado, na noite anterior: como se tivesse algo que quisesse muito ter, mas não pudesse levantar a mão e pegar. Porque, pelo que eu tinha entendido, Byakko quebraria seus dedos se ela tentasse me tocar... Se é que um Espírito podia ter seus dedos quebrados. O que importava era que tinha ficado claro que Byakko tinha corrido para me proteger dela, e que Isméria não ia tentar bater de frente com ele. Eu nunca tinha parado pra pensar se Byakko era um Espírito poderoso..., até agora. Era quase como se eu nunca tivesse olhado pra ele dessa forma; eu sempre tinha tratado ele como um amigo — bufei ­– e tinha acabado deixar essa parte de quem ele era escapar. Até a noite passada. Depois de vê-lo confrontando Isméria, e os rugidos... Mas isso não importava mais.

E eu ainda tinha um problema: Isméria estava atrás de mim, e eu tinha mandado Byakko embora. E, não, eu não ia correr atrás dele só porque estava com medo. Eu tinha enterrado o amuleto e todas as outras coisas debaixo da casa, e pregado a tábua solta da maneira que eu podia. Não ia abrir aquilo de novo, e ter que encarar tudo outra vez, como na noite passada. Eu não precisava de Byakko. As pessoas tinham formas de afastar Espíritos malignos há séculos, certo? Ervas, fogo, rituais... A questão era que Byakko não era exatamente como as histórias contavam dos Espíritos. Eu tinha aprendido como algumas lendas sobre eles eram superficiais e furadas desde que conhecera ele, Tâmi, Mab... Não duvidava que algumas das coisas que usavam para afastar os Espíritos fossem inúteis, na verdade. E eu não podia correr o risco. Não queria correr o risco... Então, eu precisava perguntar para alguém que realmente saberia me ensinar como afastar um Espírito. Precisava falar com um deles.

Depois de levar as coisas de volta para casa e ajudar Dorothea a guardar tudo, eu saí outra vez. Eu podia ter ficado amiga de Mab, mas, todas as vezes que nos encontrávamos, ela estava com Byakko. Além disso, Sonho sempre aparecia só quando queria, Mas Tâmi... Ela não podia se afastar de seu rio, pelo que tinham me contado, então era fácil encontrá-la. Eu só não sabia se ela sairia da água para me ver. Antes de toda aquela confusão acontecer, Byakko e Mab tinham saído para se encontrar com Tâmi no solstício. Será que ela sabia de tudo o que tinha acontecido depois disso?

Pulei de pedra em pedra até chegar ao meu lugar de sempre, onde eu costumava conversar com Tami desde a primeira vez que ela tinha aparecido pra mim. Olhei ao redor, só pra me certificar de que estávamos sozinhas, antes de chama-la. Estava claro, pelas conversas que tinha ouvido na clareira, e pelo olhar no resto do pessoal, que hoje eu não veria muitas crianças brincando por aí. Eu já mal tinha visto alguma delas na clareira, acompanhadas dos pais...

— Tâmi?

Sua cabeça pelada brotou de dentro d’água. Primeiro, ela só emergiu até a altura dos olhos, e olhou ao redor. Quando me viu, Tâmi se levantou, emergindo até a cintura. Ela se aproximou, com as mãos estendidas em direção ao meu rosto, e tocou minhas bochechas. Não estremeci dessa vez. Já tinha me acostumado com o fato de o Espírito do rio ser meio cego como um morcego, então ela sempre me tocava, para ter certeza de quem era. Tâmi podia não ser completamente cega – ela via luzes, formas, silhuetas e poucas cores – mas não podia confiar apenas em sua visão. Dessa vez, suas mãos escorregaram para os meus ombros, me puxando mais para perto – o tanto que era possível sem me derrubar na água – e Tâmi praticamente colou seu rosto no meu.

— Ah, que bom, é mesmo você... Fiquei com medo de que Byakko não chegasse a tempo de evitar o pior — ela me puxou para baixo, pelos braços, fazendo-me sentar. — Eu nem sei o que seria dele se tivesse perdido você também.

O que Tâmi queria dizer com isso? Byakko nem se importava. Se ele se importasse, não teria escondido a verdade de mim. Não teria sorrido na minha cara e fingido que estava tudo bem. Não mesmo. Por que Tâmi falava como se eu fosse especial para ele, sendo que eu não significava o bastante pra Byakko ter sido sincero comigo? Não, eu pensava que éramos amigos, enquanto ele não sentia nem que me devia uma explicação, como se eu fosse uma qualquer...

Corei e virei meu rosto, antes de me lembrar que Tâmi não conseguiria reparar na cor das minhas bochechas nem que estivesse olhando pra elas. Eu podia estar viva, mas isso não significava que Byakko não tinha me perdido... Ela só não sabia disso.

Tâmi soltou minhas mãos e continuou:

— Eu sabia que tinha visto aquela cobra rondando por aqui. Sabia que ela devia estar procurando por você...

Levantei a cabeça para encarar o Espírito.

— Espera..., você sabia que ela estava atrás de mim? Mas por quê?!

Tâmi fechou a boca, escondendo seus dentes afiados. Ela se encolheu um pouco, mergulhando até a altura dos olhos, e suspirou, fazendo bolhas na água. Depois, se levantou até tirar a boca da água.

— Eu sabia porque já a vi tentar antes. Eu te mostrei, quando nos conhecemos... O dia em que você quase se afogou no meu rio.

É, eu me lembrava das imagens que Tâmi tinha compartilhado comigo, e do meu eu do passado se afogando. Mas eu pensava que tinha sido um acidente, que eu tinha caído na água sem que meus pais vissem... E então eu me lembrei do rugido que eu pensara ter sido coisa da minha cabeça, mas que eu tinha mesmo ouvido no final da cena, quando tudo ficou escuro. Então Byakko também estava lá, naquele momento...

Não, não tinha sido um acidente, e perceber isso sacudiu meus ossos.

Agora, mais do que nunca, tudo o que eu queria era aprender a me proteger de Isméria.

— Tâmi, eu preciso lhe perguntar uma coisa...

Ela inclinou sua cabeça.

— Sim?

Limpei a garganta, pensando na maneira mais objetiva de ter a resposta que queria.

— Existe alguma maneira de manter Isméria afastada? Algo que impeça ela de... me pegar?

— Você tem Byakko, não? — Ela perguntou.

Não. Sacudi a cabeça. Não, não e não, eu não tinha. Eu não precisava da ajuda dele.

— Eu quis dizer algo que eu possa fazer. Sozinha — fechei as mãos apoiadas nas minhas pernas. — Como um humano pode manter um Espírito afastado? Quero saber as coisas que funcionam de verdade.

— É-é difícil dizer... — Tâmi gaguejou.

Senti meus olhos arderem e meu estômago se retorcer.

— Então não existe nada...?

Tâmi estendeu os braços molhados e segurou minhas mãos.

— Eu não disse isso, pequena Thanat. Há muitas, muitas maneiras. O problema é que cada Espírito é diferente; o que funciona para um dificilmente vai funcionar para outro, nem vai ter os mesmos efeitos.

Engoli em seco.

— Eu não quero afastar todos os Espíritos, só quero afastar Isméria. Existe alguma coisa que eu possa fazer?

Tâmi assentiu e depois sorriu, mostrando os dentes.

— Sim, menina. E eu posso lhe ensinar como.

 

***

 

Saí do rio já tarde, com a noite caindo, e com uma lista enorme de coisas que eu precisava conseguir e de etapas que precisava seguir à risca. Não era nada que eu conseguiria arrumar pela manhã seguinte e pronto. Não, eu ia levar dias para conseguir tudo, se tivesse sorte. Mas uma coisa eu podia fazer assim que chegasse em casa, pelo que Tâmi tinha me explicado, e que me deixaria dormir mais tranquila; algo que eu já tinha visto no templo, mas não sabia que tinha mais de um significado. Cheguei na casa de Dorothea e me surpreendi por não a encontrar lá, em lugar nenhum. Suspirei. Teria que procurar o sino sozinha, então. Entrei no quarto de Dorothea e vasculhei por todos os seus baús mais antigos, cheios de coisas velhas, roupas de frio pesadas e outras que precisavam de algum ajuste ou remendo. Depois de espirrar algumas vezes e revirar o baú até o fundo, eu encontrei o sino do tamanho de duas mãos fechadas lá no fundo. Ele costumava ficar na porta, há muito tempo, servindo de campainha para a casa, mas seu suporte tinha quebrado, e eventualmente Dorothea se esquecera de arrumá-lo – como tantas outras coisas no baú. O que importava era se ele estava inteiro: sacudi o sino e senti meu coração dar um salto ao ouvir o badalo tocar lá dentro. Ele ia servir.

Mas eu ainda precisava de algum jeito de pendurar o sino na entrada. Comecei a procurar pela casa por algum talho de madeira que pudesse servir de estaca, e um pedaço de corda. Os templos são sagrados, Tâmi tinha dito, mesmo para outros Espíritos. Ela tinha explicado como o sino na entrada do templo servia para mais de uma coisa: os humanos o tocavam por respeito, os Espíritos o tocavam por obrigação. Ninguém podia entrar num templo sem anunciar sua presença ao dono do lugar, mas, para os Espíritos, essa regra era escrita com magia, na entrada de qualquer templo. Cortei um pedaço da corda que amarrava a lenha na cozinha, prometendo a mim mesma de conseguiria uma nova para Dorothea depois, e cortei um galho fino de um pedaço de lenha para servir de estaca. Com o sino na mão, um banquinho e uma lamparina acesa, eu corri até a porta e saí.

Já estava escuro, e tudo o que eu tinha para trabalhar era a luz do fogo. Subi no banquinho para alcançar o topo da porta e enfiei o lado mais estreito da estaca no vão entre o batente e a parede; não tinha muito espaço atrás dela porque não eu tinha tempo para fazer nada mais elaborado, mas eu só precisava de uma frestinha para poder passar a corda e dar um nó. Passei a corda pelo aro no topo do sino e amarrei as duas pontas, pendurando-a na estaca de madeira em seguida. O sino ficou pendurado logo abaixo do batente, no meio da passagem, o suficiente para não passar despercebido, mas alto o bastante para ninguém bater a cabeça. Desci, e entrei em casa para procurar uma faca ou qualquer outra ferramenta pontuda. Acendi as lamparinas da cozinha pelo caminho e peguei uma faca pequena sobre o fogão à lenha, mas que ia servir, e voltei para a entrada. Fechei os olhos, tentando visualizar o símbolo que Tâmi tinha me mostrado.

O Espírito levantou a mão molhada e desenhou com os dedos, na pedra seca e escura, três linhas entrelaçadas que eu nunca tinha visto antes. Depois, levantou a cabeça e me encarou.

— Você precisa colocar esse símbolo na entrada, de alguma forma permanente, para que não seja apagado fácil, entendeu?

Assenti.

— Esse é um símbolo crido pelos Espíritos?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não, mas vai servir. Você perguntou como os humanos faziam: essa é uma maneira criada por eles.

Abri os olhos, com o símbolo ainda na mente, e comecei a talhar o batente da porta, desenhando-o. A primeira linha reta, a segunda inclinada, a terceira se entrelaçando com as outras duas. Pelo que Tâmi tinha explicado, era ele que obrigaria um Espírito a ter que anunciar sua presença antes de entrar, mesmo que esta fosse apenas uma casa e não um templo.

Respirei fundo, me lembrando das palavras que o Espírito do Rio tinha me feito decorar. Depois, falei uma por uma em voz alta, como ela tinha ensinado:

— Agora, se quiser entrar, vai ter que tocar o sino.

Passei os dedos pelo símbolo que eu tinha acabado de riscar na madeira, me perguntando se algo ia acontecer. Se as linhas iam brilhar, ou qualquer coisa mágica. Mas não aconteceu nada.

— Se fizer tudo isso, Isméria terá que anunciar sua presença se quiser entrar para te pegar em casa, com a mesma pompa que teria que dedicar a qualquer outro Espírito. Ela vai detestar isso. Vai fazer o que puder para nunca ter que tocar o sino e te tratar como uma de nós...

— Lorena?

Levantei a cabeça na direção da trilha que levava à casa. Dorothea vinha por ela, voltando com uma tocha na mão. Ela se aproximou e parou na minha frente.

— O que está fazendo aqui fora? — Ela olhou para o alto, acima da minha cabeça, e de volta para mim. — Você arrumou o sino da entrada?

Encarei o chão e segurei as minhas mãos atrás das costas.

— Ah, é, eu estava procurando algumas coisas velhas e encontrei ele. Achei que não ia fazer mal voltarmos a ter uma campainha nessa casa.

Dorothea passou por mim e tocou o sino, sorrindo.

— Oh, querida, faz tanto tempo que ele quebrou que tinha até me esquecido. Você não precisava ter feito isso.

— Não foi nada — respondi.

Dorothea pegou o banquinho que eu tinha trazido, se levantou e entrou em casa.

— Você me fez um favor, e eu cheguei em casa tão tarde hoje que nem consegui fazer o jantar...

Ela começou a vasculhar os vasos de barro onde armazenava comida, pão e frutas.

— Ah, tudo bem...

Nem era como se estivesse com fome. Parecia que eu não ia conseguir comer nada enquanto não tivesse certeza de que o que Tâmi me ensinara ia funcionar de verdade.

— Na verdade, eu estou com sono, só isso — completei.

Dorothea se virou e me encarou, com os olhos arregalados.

— Mas vai dormir sem comer nada?

Ah, não... Essa cara. Ela não ia me deixar escapar tão fácil assim.

— Eu comi quando cheguei — menti, olhando para o lado, procurando alguma coisa... Ah, o cesto no canto do fogão. — Eu comi pão.

Ela estreitou os olhos.

— De verdade...?

Engoli em seco. Da próxima vez que Isméria aparecesse, eu queria que Dorothea estivesse em casa, com esse olhar.

— Eu juro.

Ela devolveu os vasos para o seu lugar e espanou as mãos sujas de migalhas.

— Tudo bem, então — ela apontou um dedo na minha direção. — Mas amanhã, nada de pular o café da manhã. Não importa o que você tenha que fazer.

Grunhi por dentro. Eu tinha tanta coisa pra fazer na lista que Tâmi tinha me passado.

— Sem problemas.

Me virei para sair e Dorothea pigarreou.

— Boa noite — ela disse, de braços cruzados e batendo o pé no chão.

Voltei até ela e lhe dei um abraço.

— Boa noite.

Ela sorriu.

— Durma bem, querida...

 

***

 

Eu acordei no meio da noite com um daqueles pesadelos outra vez... Me levantei, ofegante, e enxuguei meus olhos. Depois, comecei a tatear a janela aberta, sentindo falta de alguma coisa, procurando onde me apoiar.

Vai ficar tudo bem, a voz soou na minha cabeça quando me lembrei da careta preocupada no rosto de Byakko se transformar num sorriso.

Puxei minha mão de volta como se tivesse me queimado. Eu tinha mandado ele embora, e ainda assim não conseguia fazer o mesmo com as lembranças dele. Não conseguia tornar seu rosto um buraco na minha memória, do mesmo jeito como eu via meus pais quando sonhava com eles. Tinha me flagrado procurando o amuleto no meu pescoço várias vezes ao longo o dia, entreouvindo conversas sobre ele e a noite do festival, pensando em todas as vezes que deveríamos ter nos encontrado durante o dia, e agora...

Eu não conseguia tirar da cabeça como ele tinha me consolado e me abraçado todas as vezes que eu tinha chorado por sonhar com o vazio das minhas memórias. Não conseguia não tentar imaginar o que se passava na cabeça dele quando me via sofrendo por sua culpa, o que se passava por trás dos seus olhos. E ainda assim, noite após noite, ele tinha escondido a verdade de mim. Por quê?

Eu não sabia como lhe dizer...

Sacudi a cabeça, tentando me livrar das imagens da noite anterior. Eu não queria seguir por esse caminho... Não mesmo.

De repente, um ruído me fez levantar da cabeça. Prendi a respiração, tentando descobrir o que tinha sido, mas só havia silêncio. Devia ter sido coisa da minha cabeça... Então, mais uma vez, eu ouvi. O som metálico do sino na entrada.

Congelei. Eu não tinha tido tempo de arranjar mais nada da longa lista de proteções que Tâmi tinha me ensinado durante a tarde, e ela tinha sido clara: o sino não era uma barreira, era um alarme. Um que mexeria com os nervos de Isméria, com seu orgulho, mas nada que pudesse impedi-la fisicamente de entrar e me pegar. Ela teria que tocar para entrar, Isméria ainda poderia entrar.

Olhei para a janela, tentando deduzir quão rápido um Espírito seria capaz de correr, até que me lembrei de uma coisa: Dorothea estava no outro quarto, dormindo. O que Isméria faria com ela, quando descobrisse que eu tinha fugido? Eu não queria apostar minhas pérolas para ver... Dorothea não tinha nada a ver com isso.

Saí da cama e andei até a porta do quarto, espiando através do corredor. Só conseguia ver um pedaço da cozinha, atrás do fogão, e não vi ninguém. Mas ouvi um sussurro:

— Alice, para com isso! Vai acabar acordando alguém!

Saí para o corredor e andei devagar até a cozinha.

— Olha só, eu consigo alcançar o sino agora! Lembra que eu não conseguia antes? — A voz de Alice respondeu.

Ouvi Ed suspirar.

— A gente tinha 8 anos, nenhum de nós conseguia. Solta isso!

Entrei na cozinha e soltei o ar com força quando tive certeza de que eram meus amigos mesmo. Os dois estavam na entrada, Alice segurando a corda que eu tinha pendurado no badalo do sino, e Ed puxando seu braço, tentando fazê-la soltar. Assim que me viram, Ed se virou para Alice com as sobrancelhas franzidas.

— Eu disse que você ia acordar alguém com isso!

Alice fez uma careta também.

Caminhei na direção dos dois, balançando as mãos espalmadas na frente do corpo, tentando tranquiliza-los.

— Não, não, eu estava acordada — Puxei os dois para dentro e fechei a porta. — O que vocês dois estão fazendo aqui numa hora dessas!

Ed apertou o próprio ombro, olhando para os lados.

— Ninguém consegue dormir.

— É, desde o solstício... — Alice completou.

Ed deu de ombros.

— Você nem deve ter ouvido, né? Já estava em casa na hora que aconteceu, longe da praia...

— Não... — Deixei escapar. — Eu ouvi, sim...

— E o que você achou?

Alice empurrou Ed para o lado e praticamente se debruçou sobre mim.

— Você ia sempre naquela praia, né? E até já entrou no templo. Você já viu alguma coisa estranha? Já viu um monstro?

Levantei uma sobrancelha, tentando me desviar do dedo que Alice tinha colocado no meu peito.

— Monstro...?

— É, um monstro — ela respondeu. — O que mais poderia fazer barulhos como aqueles?

Ed deu um passo à frente e virou Alice pelos ombros.

— Quem te disse isso?

— É o que algumas pessoas estão dizendo. Todo mundo está com medo.

Respirei fundo.

— Não tinha nenhum monstro lá, Alice. Não é o que...

— Mas você nunca viu nada? — Ela me interrompeu.

Engasguei. O olhar de Alice parecia me perfurar, e Ed também estava me encarando agora. As pessoas não podiam descobrir sobre Byakko, ainda mais agora. Do jeito como todo mundo estava assustado, eu não tinha nem ideia do que poderiam tentar fazer com ele...

Sacudi a cabeça. Eu não tinha nenhum motivo para botar a mão no fogo por ele, mesmo assim...

— Não — menti. — Eu nunca vi nada de estranho.

Alice cambaleou para trás e puxou uma cadeira para se sentar. Ela pôs a lamparina que carregava sobre a mesa e escondeu o rosto nas mãos.

— Se você tivesse visto alguma coisa, teria nos contado, né? — Ela sussurrou.

Engoli em seco.

— Sim... — Desviei o olhar. — É claro que sim.

Ela sacudiu a cabeça ainda abaixada, e depois me encarou.

— Mas então... Não faz sentido. Só alguma coisa enorme poderia ter soltado aqueles rugidos. Algo assim jamais passaria despercebido. Onde ele poderia se esconder?

Me abaixei e fiquei cara a cara com Alice. Só agora, tão perto do fogo e dela, eu vi as olheiras debaixo dos seus olhos. Ela estava exausta... Não devia ter dormido direito na noite do Festival, e nem esta noite, pelo visto, já que estava aqui, agora. Eu e Ed tínhamos ido para casa antes de tudo acontecer, mas ela tinha ficado no festival, bem perto da Praia Velha. Quão assustador não devia ter sido pra ela ouvir Byakko aquela noite, tão de perto, e não saber o que tudo aquilo significava? Era isso – esse medo e desespero – que todos os outros também estavam sentindo? Segurei o rosto dela nas minhas mãos.

— Alice, você precisa descansar. Ficar acordada assim só vai te deixar ainda mais ansiosa. Não precisa ter medo.

Ela fungou.

— Como você sabe...?

Suspirei e sorri, como me lembro de que Byakko fazia, todas aquelas noites, apesar de esconder a verdade dentro de si, antes de dizer:

Vai ficar tudo bem...

— Você vai ter que acreditar em mim dessa vez...

Alice assentiu.

— V-você... — ela gaguejou. — Se importa se eu passar esta noite aqui com você?

Ajudei ela a se levantar, segurando sua mão.

— Claro que não me importo.

Me virei para Ed enquanto Alice se ajeitava e pegava sua lamparina de volta.

— Vai querer ficar também? — Perguntei para ele.

Ed corou, desviou o olhar e escondeu as mãos atrás das costas.

— Não, não, não, eu estou bem, sério. Eu vou... — Ele encarou o chão e suspirou. — Eu vou voltar pra casa. Meus pais não sabem que estou aqui...

— Você sabe que eles não se importam, né? Vamos, a gente sempre fazia isso.

Ele deu de ombros.

— É, mas... — Ele ficou em silêncio, como se pensasse no que dizer. Então, sacudiu a cabeça e continuou: — Você sabe, as coisas estão mais agitadas do que de costume. É melhor não deixar eles preocupados.

Alice pegou Ed pela manga da roupa.

— Você pode avisar meu pai? — Ela pediu.

Ele deu um sorriso pequeno, meio acanhado.

— Claro — respondeu. — Boa noite pra vocês.

Ele se virou e começou a andar para a porta. Mesmo que Ed estivesse de costas, saindo, acenei para ele, mas me engasguei com o que ia dizer, antes que as palavras saíssem da minha boca:

Até amanhã...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Pele do Espírito" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.