A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 12
Capítulo 11




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Byakko

Rastejei até o espelho no canto, ainda com o rubi nas mãos, e o desvirei, ficando ajoelhado na frente do meu reflexo. Levantei a mão até meu rosto, sem tirar os olhos da minha própria imagem, e segui o rastro das lágrimas com meu dedo, deixando uma mancha de sangue na minha pele. Pela primeira vez, eu não vi meu rosto mudar no espelho, como uma ilusão. Não vi minha imagem se alternando entre várias aparências num piscar de olhos. Não vi garras, presas, nem ossos, nem as milhares de faces assustadoras que eu tinha pra muitos dos mortais. Eu só vi um rosto muito jovem, humano, com olhos muito tristes. O rosto que eu tinha só para ela.

O que estava acontecendo?

Tentei ignorar o rubi que pulsava entre meus dedos, num ritmo angustiante. Pela primeira vez em muito tempo, eu tentei me concentrar na máscara que queria usar momentaneamente, em um dos meus muitos rostos, e tentei encarná-la. De olhos fechados, eu senti um calor sob a pele, um formigamento na ponta dos dedos, e pressão ao redor de mim. Não porque o espaço do quarto ficou pequeno para o meu tamanho, mas porque, pela primeira vez, eu senti resistência ao mudar. De uma maneira física. Como se, de repente, eu fosse muito mais sólido do que um Espírito geralmente é.

Quando abri os olhos, eu vi minhas pupilas fendidas, as garras, as presas e o pelo prateado. Mas, quando soltei o fôlego, eu vi a transformação me abandonar junto do sopro que escapou pela minha boca: comecei a encolher, a névoa girava ao meu redor, e me vi de volta à forma humana, contra a minha vontade.

— Não... — Coloquei as mãos sujas de sangue no vidro como se pudesse descobrir o que tinha de errado nisso tudo só de tocá-lo. O problema tinha que ser o espelho... — Não, não, não...

Escorreguei e voltei a me apoiar de quatro no chão. Fechei os olhos e me forcei a tentar outra vez. Senti a queimação de novo, o formigamento, a pressão sobre os meus membros. E então, quando não pude segurar mais, eu rugi, sentindo a transformação se dissipando sem nem precisar abrir os olhos e ver meu reflexo.

— O que está acontecendo...?

Tentei outras duas ou três vezes. Depois, tentei com outras formas, outros rostos... Saí do quarto correndo, me afastando da pedra, da sua magia e daquele som de coração que parecia ecoar dentro de mim. Tentei de novo, e senti a rocha e os entalhes das pilastras cedendo sob as minhas garras. Eu rugia, tentando segurar aquela forma mais tempo, por mais que a detestasse. E, mesmo assim, quando pisquei eu tinha a altura e a forma humana outra vez.

Enxuguei meu rosto.

— Não... Por que isto está acontecendo?

Lorena

Rolei na cama, me deitando de bruços. Isso foi o suficiente para sentir o amuleto contra o meu peito e reviver tudo o que tinha acontecido. Tinha sido ele, todo esse tempo. Byakko tinha tirado minhas memórias e escondido isso de mim por anos. Eu nem sabia quantas vezes tinha dito pra ele como me sentia sobre isso. Que faria qualquer coisa para ter minhas memórias de volta. Ele tinha me visto acordar chorando várias vezes quando sonhava com meus pais, mas não conseguia ver seus rostos porque eles pareciam ter sido recortados e jogados fora, nem reconhecer suas vozes, que pareciam um zumbido. Ele sorria sem olhar nos meus olhos e me dizia que ia ficar tudo bem. É claro que ele não conseguia me encarar nessas horas: eu tinha passado a minha vida me culpando por ter esquecido, sendo julgada por isso, mas a culpa era dele. Ele tivera milhares de chances de me contar. Nós éramos ami-... Solucei. Eu tinha pensado que éramos amigos, e ele não tinha me contado nada... Mas um amigo de verdade nunca faria isso. Ed e Alice não fariam algo assim comigo. Eles pelo menos não teriam escondido isso de mim.

Enxuguei minhas lágrimas no travesseiro que eu estava usando para sufocar meu choro. O amuleto continuava me ferroando no peito, assim como todas aquelas lembranças. Pela primeira vez, eu desejei poder esquecer. Quem diria... Eu tinha feito tanta coisa pra me lembrar, pra registrar de tudo, com medo de que minha memória falhasse outra vez. Agora eu sabia que minha memória não tinha falhado. Ela tinha sido roubada. E isso parecia ainda mais doloroso do que quando ainda pensava que tinha sido um acidente, uma fatalidade. Eu me sentia traída. Queria voltar a pensar o que pensava antes, não acreditar que tinha sido mesmo Byakko. Mas o jeito como ele dissera isso e me olhara...

Fui eu quem lhe tirou as memórias...

 Essa frase ficava girando sem parar na minha cabeça.

Se eu pelo menos pudesse me esquecer disso. Se eu nunca tivesse entrado naquele maldito templo, se eu não tivesse conhecido Byakko... Sim, se eu não tivesse que guardar nenhuma dessas lembranças...

Me levantei e puxei a tábua solta do assoalho, jogando ela para longe. Peguei todos os meus cadernos e comecei a passar as páginas do primeiro freneticamente. Só parei quando encontrei a página escrita “Byakko” no topo.

Ele está sempre sozinho lá no templo, estava escrito na página. Por que será que ele está sempre sozinho? O que será que aconteceu com as pessoas que moravam na cidade com ele? Eu não sei, mas ele parece tão triste, e nunca toca no assunto. Acho... que ele deve ter perdido alguém.

Não li mais do que isso porque meus olhos começaram a se encher de lágrimas de novo. Se lesse mais, não ia conseguir fazer isso... Arranquei a página da costura com um grito, e a deixei cair no buraco do assoalho, até sumir sob a fundação de pedra da casa. Rasguei mais uma, duas, três... dez páginas, que caíram e desapareceram no escuro igual à primeira. Parei pra enxugar meu rosto e uma lágrima caiu nas páginas seguintes. Passei a mão para secar o papel antes que a tinta manchasse.

Eu não sei porque, mas, quando eu acordo triste depois de um desses pesadelos, e Byakko está na minha janela, não é tão ruim. Tudo bem, ele sempre parece triste nessas horas também, mas eu realmente me sinto como se não precisasse ter medo. Nessas horas, parece que ele me entende...

E, do lado dessa anotação, estava a papoula branca que ele tinha me dado.

Fechei o caderno, sem forças para arrancar mais páginas. Ao invés disso, só joguei tudo no buraco junto com as folhas rasgadas: os cadernos, a papoula... Tudo. Mas, quando voltei a me endireitar, o amuleto bateu contra o meu peito. Não... Tudo não. Funguei. Estendi a mão por baixo na minha roupa para pegá-lo e jogá-lo fora também.

Minha cabeça se encheu com um rugido. Era tão alto e assustador quanto o som das ondas se jogando nos penhascos da ilha durante uma tempestade. Do tipo que te empurra pra trás como o vento, te faz cobrir o rosto, que esculpe as pedras da costa. Um estrondo que você escuta e sabe que não quer ficar no caminho do que quer que seja. Nem parecia um animal. Não, não podia ser... Então, eu ouvi o que quer que fosse puxar o ar de volta num ronco, tomando fôlego, como a ressaca do mar que puxa as ondas de volta só para se jogar outra vez. Ouvi aquilo respirar...

Pulei pra trás, soltando o amuleto, e bati de costas contra a janela. Fechei os olhos quando senti a dor da batida, e a pele arder. Devia ter esfolado as costas nas fibras da roupa nova que todo festival me obrigava a usar... Nunca tinha ouvido um animal como aquele antes, mas mais importante... o amuleto nunca tinha feito isso. Era Byakko quem podia me ouvir, e não o contrário. Ainda ofegante, eu puxei o ar devagar pelo nariz e soltei pela boca, tentando me acalmar. Além do mais, não podia ser Byakko... Apesar dos seus olhos parecidos com os de um gato, ele nunca tinha feito um barulho assim. Não tinha nenhum sinal de voz naquilo, era só o urro engasgado de um animal.

Estendi os dedos devagar até o amuleto, que tinha escapado das minhas roupas com meu susto. Mas, por um momento, eu vacilei antes de tocá-lo outra vez. Suspirei e fechei os olhos. Se acontecesse outra vez, eu não ia me assustar. Então, eu apertei o amuleto antes de pensar em desistir.

Minha cabeça se encheu na hora com a voz de Byakko.

Não, não, não, não..., eu o ouvi repetir, com a voz fraca.

Abri os olhos e olhei ao redor. A voz dele parecia tão perto, como se ele estivesse no quarto comigo... Mas eu não o vi em lugar nenhum. Ela vinha mesmo do amuleto. Ou estava dentro da minha cabeça, graças à magia do objeto. E então, quando pensei que tinha imaginado o urro de antes, eu ouvi outra vez. A voz de Byakko se transformou num grunhido, depois num rugido forte que teria me ensurdecido se eu estivesse ao seu lado, onde quer que ele estivesse. Voltei a fechar os olhos, segurando o amuleto com força, até o rugido se tornar o ruído de uma respiração entrecortada.

O que está acontecendo...?, ouvi ele chorar.

Mordi os lábios. Eu tinha pegado o amuleto pra me livrar dele. E agora estava aqui, ouvindo o que ele dizia, quase me comovendo. Mas isso não ia acontecer. Byakko não tinha ideia de como tinha me apunhalado pelas costas. Não existia a menor chance de eu perdoá-lo, não importava como...

Não importava o tanto que sua voz soasse torturada enquanto eu o bisbilhotava assim... Ou como ele rugia e grunhia como um animal ferido...

Não..., ouvi ele dizer, com a voz falhando. Por que isso está acontecendo?

Com a mão livre, eu puxei o cordão do amuleto e o passei pela minha cabeça. Mas não consegui soltar a pedra. Me inclinei na ponta da cama e estendi a mão com o amuleto, deixando meu braço pairar acima do buraco no assoalho. Fechei os olhos, como se fosse ficar mais fácil me livrar dele se não tivesse que olhar, se eu fingisse que não me importava. Então, quando ouvi Byakko rugir de novo, eu o soltei. Abri só um dos olhos na hora e vi o amuleto desaparecer na escuridão, e cair no fundo com um som abafado pelas páginas rasgadas que tinha jogado primeiro. Peguei a tábua solta e a coloquei no lugar de novo, sem olhar além do buraco. Depois, com um pouco de esforço, arrastei uma arca de madeira pesada, que ficava no pé da minha cama, para cima da tábua. Para o caso de eu mudar de ideia...

Me joguei de bruços na cama, deixei o travesseiro absorver o resto da humidade nos meus olhos e tentei não pensar em tudo o que tinha ouvido agora a pouco.

Mas não demorou pra um ruído me fez levantar a cabeça. Parecia o rangido da porta da cozinha. Olhei pela janela, tentando descobrir que horas eram. Ainda estava de noite, era cedo demais para Dorothea voltar do Festival. A tradição era ficar até o amanhecer e eu nunca tinha visto ela desrespeitar isso, nenhuma vez. Então, um calafrio me sacudiu. Se não era Dorothea...

Isméria já tinha aparecido aqui mais cedo e queria algo comigo. Ela tinha dado a entender que só queria fazer com que Byakko me contasse a verdade, mas será que era isso mesmo? Agora ele não estava em seu caminho mais. Eu tinha mandado Byakko embora.  Se o Espírito com sorriso de cobra quisesse mais alguma coisa, essa era a melhor chance pra ela voltar.

Levantei a mão, tentando alcançar o amuleto no meu peito. Não. Trinquei os dentes e fechei meu punho. Eu não ia fazer isso. Não ia chamar ele de jeito nenhum. Byakko já tinha me “ajudado” com minhas memórias, e olha onde isso tinha me levado. Eu não precisava da ajuda dele. Não mesmo...

Ia descobrir o que Isméria queria sozinha e...

E...

Saí do quarto e atravessei o corredor depressa, mas parei na entrada da cozinha. Não queria entrar e encarar um Espírito de mãos vazias, não mesmo. Estiquei o braço e peguei a primeira coisa que vi que poderia usar para me defender: um pedaço longo de lenha, parecido com um porrete, daqueles que eu tinha cortado mais cedo e deixado ao lado do fogão. Segurei a madeira com as duas mãos, já preparando o golpe – e tentando não pensar muito no quanto isso provavelmente seria inútil contra um Espírito. Eu esperava que fosse Damon, só isso... Eu não sabia o que Isméria tinha feito com ele, além de manda-lo para algum lugar. Vá procurar quem realmente pode me deter e nos deixe conversar a sós, ela dissera. Não sabia se era longe – não sabia se ela tinha mandado ele atrás de Byakko – então talvez fosse ele voltando. Mas, por mais que Damon fosse um gato inteligente, ele não conseguia abrir a porta. Ele sempre entrava pela janela quando estava sozinho. Sacudi a cabeça. Soltei o ar do peito e dei um passo adiante, começando a contornar a mesa suja de farinha. Foi só no terceiro passo que eu consegui ver a porta.

E Dorothea apoiada nela, com a mão ainda na tranca, um pouco ofegante.

Eu nem sabia como estava tensa até sentir meus braços relaxarem, só de vê-la. O pedaço de pau escorregou dos meus dedos e caiu no chão com um baque. Dorothea levantou a cabeça e me viu na hora.

— Oi, querida, é você... — Ela deu um sorriso um pouco forçado. — Que susto que você me deu, hei-...

Corri e a abracei antes mesmo que ela terminasse de falar.

—O que aconteceu, Lorena? Você... — Ela se afastou um pouco e passou a mão no meu rosto, secando-o. — Você está chorando, querida?

Solucei, escondendo o rosto em seu ombro outra vez.

Ela passou a mão na minha cabeça, ajeitando meu cabelo bagunçado.

— Oh, querida... Então você também ouviu?

Ahn?

Funguei, tentando respirar fundo e acabar com o choro nervoso que tinha me dominado.

— O-ouvir o quê? — Gaguejei.

Dorothea me encarou de volta, parecendo perdida. Depois sacudiu a cabeça, como fazia quando queria “afastar pensamentos ruins”.

— Os gritos, querida. Os rugidos. Vindos da Praia Velha. Todos no festival ouviram...

Byakko. Todos tinham ouvido Byakko. A clareira do festival ficava perto da Praia Velha, muito mais perto que a casa de Dorothea. Se os rugidos eram tão altos quanto o amuleto fazia parecer, era verdade: todo mundo ouviu. Perceber isso fez minhas pernas fraquejarem e eu cambaleei pra trás. Dorothea tentou me segurar, preocupada.

— Eu ouvi... — Disse, evitando o olhar preocupado dela.

Ela me analisou por um longo momento, segurando meu rosto com as duas mãos.

— Lorena, já passou. O barulho já acabou, não precisa ter... — Medo, completei mentalmente. Mas Dorothea mordeu a língua e desistiu da frase. Depois, continuou, tentando sorrir pra mim: — Vai ficar tudo bem.

Fechei os olhos, respirando fundo.

— O que aconteceu com o festival?

Dorothea me levou pela mão até a mesa e puxou uma cadeira para se sentar. Eu recusei a cadeira ao lado e ela franziu as sobrancelhas, mas respondeu:

— As pessoas ficaram... assustadas. Todos foram embora. Alguns correram bem rápido, eu diria — ela emitiu uma risada meio rouca, sem graça. — O lugar ficou abandonado. Deixaram tudo para trás, até a comida...

Ela me encarou, me avaliando de cima abaixo.

— Querida..., você não parece nada bem — Dorothea disse, se levantando da cadeira e me pegando pela mão outra vez. — Acho que você precisa se deitar.

Ela me puxou através do corredor e parou na porta do meu quarto. Encarou a cama bagunçada, os móveis fora do lugar graças à aparição de Byakko, a arca que eu tinha arrastado para trás da porta – parecendo muito uma barricada –, e estreitou os olhos. Depois, olhou pra mim, para os meus olhos inchados e meu rosto pálido. Ela não sabia de Byakko. Não sabia o que tinha acontecido antes dos gritos que ouviu. Dorothea só podia deduzir que eu estava assustada e abatida pelo mesmo motivo que todos os outros.

Ela pegou minha mão com as duas dela, num gesto reconfortante.

— Você gostaria de dormir comigo hoje, no meu quarto? Assim ninguém vai precisar ficar sozinha até o dia amanhecer...

Fazia anos que eu não dormia com Dorothea. Logo que eu chegara na sua casa, sem memória, isso era algo comum. Eu tinha medo de ficar sozinha no quarto com uma lamparina acesa, por causa do fogo, e também tinha medo do escuro... Então, ela me levava para o próprio quarto, me deitava em seu colo, apagava a chama da lamparina na minha frente e falava comigo até que eu caísse no sono. Só para eu saber que, mesmo que não pudesse vê-la, ela ainda estava lá, comigo. Eu tinha superado isso há muito tempo, mas...

Assenti.

Dorothea sorriu.

— Vamos — ela disse, me levando até o quarto dela, no final do corredor.

Foi quando eu descobri que, de repente, a cama dela tinha ficado pequena para nós duas. Dorothea se sentou perto da cabeceira, apoiou minha cabeça no seu colo e puxou as cobertas por cima de mim. Não tinha espaço para ela se deitar do meu lado, então ela só apoiou as costas na cabeceira, tentando ficar confortável.

— Você não vai dormir também? — Perguntei.

Ela riu, apagando a lamparina ao seu lado com um sopro.

Depois de você, ela dizia quando eu era criança.

Senti sua mão começar a acariciar minha cabeça, colocar meu cabelo para trás e, depois, um beijo na minha testa.

— Depois de você — ela respondeu.


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