Um rinoceronte escrita por Lorita de M


Capítulo 1
Uma manhã comum numa cidadela comum.




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Tratava-se de uma manhã comum numa cidadela comum. Uma cidadela comum, para o leitor que não imagina que características uma possa ter, trata-se de uma cidade pequenina, cheia de casinhas coloridas amontoadas sobre uma encosta como se algum gigante as houvesse distribuído ali, assim como um jardineiro distribui sementes ao solo. Por entre as casinhas, distribuem-se veredas e caminhos tortuosos, uns de finura e outros largos, por onde passam transeuntes caminhando, carroças, cavalos, carrinhos barulhentos, uma criança correndo. Ao topo da encosta, uma igrejinha amarelada com as paredes já desgastadas pelo tempo marca as horas todo dia com o badalar de seu sino desafinado. Fora o que já foi dito, há uma praça central, no centro da qual há uma fonte que há muitos anos não funciona. Na praça também ficam o gabinete do prefeito, a lojinha da florista, e alguns outros estabelecimentos.

De todo modo, tratava-se de uma manhã comum numa cidadela comum. Como ali o dia começava cedo, as ruelas já se encontravam bastante movimentadas. Comerciantes levando seus produtos para o mercado, crianças aborrecidas agarrando-se aos batentes das portas numa recusa resoluta a submeter-se ao suplício da escola, a florista abrindo as portas de sua lojinha, e o sino da igreja marcando as dez horas.

— Bom dia! – disse a florista a um senhor que passava diante de sua loja.

— Bom dia! – respondeu o senhor.

— O senhor gostaria de uma flor?

— Não, acredito que eu não gostaria de uma flor.

— O senhor tem certeza disso? Tenho belíssimos girassóis por aqui hoje. Sei bem que o senhor gosta de girassóis.

— É verdade que gosto de girassóis, mas tenho certeza de que não gostaria de uma flor. Passar bem, senhorita Maria.

A florista, que se chamava Maria, suspirou aborrecida. Passava todas as manhãs sentada diante da porta de sua lojinha procurando um que fosse que quisesse o agrado de uma flor, mas como isso raramente acontecia, ao fim do dia ela levava tristemente todas as flores para casa e as distribuía em inúmeros vasos que ocupavam as estantes, a pia, o chão, e todos os cantos, para no dia seguinte levar à lojinha novas flores.

Enquanto isso, na igrejinha, o sacristão com uma pequena vassourinha tentava em vão livrar os bancos, imagens e o altar do pó que os envolvia. A cada três vassouradas, ele se curvava sobre si mesmo e tossia discretamente. A cada vez que fazia isso, resmungava algo e voltava a varrer. Naquela cidadela não havia padre. O último que houvera, um tal de padre Tomé, levara certo dia um cavalo do estábulo consigo e desaparecera para longe dali. Diziam que a monotonia da cidade o havia feito fugir. De qualquer modo, desde então, o sacristão ocupava-se por manter a igrejinha limpa – o que era praticamente impossível – tocar o sino todos os dias, e dar boa tarde a um senhorzinho que passava por ali de vez em quando.

Na prefeitura, o prefeito tinha as pernas estiradas e apoiadas uma em cima da outra sobre sua escrivaninha. Com o indicador, ele enrolava a ponta dos bigodes enquanto ouvia no rádio, entediado, qualquer coisa que estivesse tocando. Eventualmente se animava com alguma canção, então se levantava, ia até a janela e ficava acenando para quem quer que estivesse passando pela praça e o visse – ou não o visse. O ponto alto de seus dias era quando se sentava ao lado do rádio, às cinco e meia, e ouvia um episódio de rádio novela.

Tratava-se, como o leitor já pôde notar, de apenas mais uma manhã comum numa cidadela comum. Contudo, o leitor perspicaz também já deve saber bem que se aquela fosse continuar sendo uma manhã comum numa cidadela comum, essa história provavelmente não estaria sendo contada. Portanto esse leitor perspicaz já deve estar tamborilando os joelhos com os dedos nervosamente, ou resmungando consigo mesmo, ou enrolando o cabelo nos dedos, à espera daquilo que vai reverter o que havia de comum naquela manhã.

Não pretendo afligir mais um minuto o leitor ansioso, por isso digo que depois do suspiro da florista, do resmungo do sacristão e do aceno do prefeito, um homem entrou num bar com uma expressão estupefata e de urgência. Caminhou cambaleante até o balcão, onde apoiou-se e pediu uma bebida. O dono do bar prontamente estendeu-lhe um copo com alguma coisa, para então perguntar:

— Que é que há, rapaz? Parece até que viu um fantasma.

— Um fantasma não – disse o homem, depois de tomar um gole – O senhor não vai acreditar, não vai acreditar no que eu acabei de ver!

— Ora, o quê?

— O que eu acabei de ver, pelas ruas da cidadela, como se estivesse em casa! Imagine! Como se estivesse em casa! Caminhando tranquilamente, como se estivesse familiarizado com cada esquina e casinha, como se conhecesse seu caminho! Na cidade! O senhor não vai acreditar no que eu acabei de ver!

— O que acabou de ver? Desembucha, rapaz! – disse o dono do bar, aflito, apoiando-se também no balcão. O homem olhou devagar de um lado para o outro, como para se certificar de que todos estivessem olhando atentamente para ele. Aproximou a cabeça da do dono do bar, arregalou os olhos, prendeu a respiração, e depois de um segundo de suspensão:

— Um rinoceronte!

O dono do bar bufou, decepcionado, jogou um pano sobre os ombros e voltou a trabalhar. Os outros que ali estavam riram e desviaram o olhar. O homem estupefato, sem entender, repetiu para ver se falando novamente a palavra exerceria algum efeito:

— Um rinoceronte!

— Ora, nos poupe! – disse um bêbado, rindo.

— Mas é verdade! Vocês precisam acreditar!

O dono do bar estreitou os olhos e se voltou para o homem bruscamente. Deu dois passos devagar.

— Então nos conte toda história de como encontrou na cidadela um – olhou para os lados e riu, para completar ironicamente – rinoceronte.

Todos riram e olharam para o homem estupefato com expectativa. Ele pigarreou, alisou a camisa, estralou os dedos e olhou para cada um, devagar. E começou a contar:

— Deixei a minha casa pela manhã. Era uma manhã comum em nossa cidadela comum. Fechei com cuidado o portão atrás de mim para não o quebrar, recentemente ele havia quebrado. Assobiando então uma canção qualquer...

— Que canção? – o bêbado perguntou.

— Ora, para que interessa saber que canção...

— Se é tudo verdade, você lembrará! Que canção? – o dono do bar insistiu.

O homem estupefato limpou o suor da cabeça com a manga da camisa e pensou por alguns instantes.

— Estava assobiando o Conto Dos Bosques de Viena! – disse, vitorioso, e prosseguiu – Assobiando então o Conto dos Bosques de Viena, fui caminhando tranquilamente até o meu trabalho. Hoje não estava com pressa...

— E por que não estava com pressa? – o bêbado perguntou.

— Porque eu havia acordado mais cedo, e estava adiantado.

— Ora! – o dono do bar rebateu – Então não era uma manhã comum. Havia acordado mais cedo e estava adiantado!

— Todas as quintas-feiras eu acordo mais cedo e fico adiantado. – disse o homem estupefato, e prosseguiu – Como não estava com pressa, caminhei cumprimentando todos aqueles que encontrava pelo caminho. Foi então que ouvi, ouvi um estrondo de proporções magníficas! Olhei para trás e na Avenida Principal foi que o vi!

— Viu o quê? – o bêbado perguntou.

— Um rinoceronte! Um magnífico, imenso rinoceronte!

— De onde veio?

— Não sei!

— E como chegou até lá?

— Não sei! Parece que veio do nada, como se tivesse se materializado ali, como se já estivesse ali quieto, parado, e só o percebemos quando se moveu! Mas é verdade, é verdade! Vi um rinoceronte andando pela Avenida Principal! Como se estivesse em casa! Imagine! Caminhando tranquilamente, como se estivesse familiarizado com...

— Meu rapaz, deve saber o quão absurdo soa o que nos está contando – disse o dono do bar, estendendo mais um copo como que por compaixão.

— Certamente! Soa absurdo porque de fato é absurdo, e por isso estou estupefato!

— É um disparate, meu rapaz, mas não se preocupe, todos disparatamos de vez em quando...

— Não, não! Precisam acreditar em mim, eu vi um rinoceronte!

Nesse momento entrou no bar a esposa do dono do bar. Tinha no rosto o mesmo olhar estupefato do homem estupefato. Cambaleou até o balcão e voltou-se para o homem estupefato:

— O que acabou de dizer? – ela perguntou.

— Que eu vi um...

— Rinoceronte! – ela completou – Eu vi um rinoceronte atravessando a Avenida Central! Como se estivesse passeando no parque, tranquilamente! Saí para buscar as frutas para o bar na quitanda da Avenida Central, e imagine que ali encontrei um rinoceronte de verdade, magnífico e imenso!

— Ora, mas você também, querida! – resmungou o dono do bar.

— É verdade, meu bem, eu vi! Não sei de onde surgiu, quando vi estava lá! Até as frutas que eu carregava eu derrubei e não tive coragem de pegar, vim correndo para cá!

— Ora, mas se for verdade... – disse o dono do bar, assumindo uma expressão séria – É um caso seríssimo!

— De fato! – concordou o homem estupefato – É um caso da maior seriedade!

— E precisa ser comunicado imediatamente para o prefeito! Precisamos tomar providências! – completou o dono do bar – Vamos, vamos imediatamente! Comunicar ao prefeito a gravidade da situação: um rinoceronte, andando sem mais nem menos pela nossa cidadela! Vamos, vamos imediatamente!

E assim foram o dono do bar, sua esposa, o bêbado e o homem estupefato para a prefeitura, notificar ao prefeito a gravidade da situação que perturbava aquela manhã comum numa cidadela comum.


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