Ceci n'est pas une Pomme escrita por Charbitch


Capítulo 6
ATO III:III — MORTE (Início do terceiro e último ato)


Notas iniciais do capítulo

Você já quis saber como é o inferno?



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CECI N'EST PAS UNE POMME

ATO III:III – MORTE

POV LAWLIET

Os anjos velhos me escoltaram algemado, amordaçado e de asas amarradas até o lago de enxofre. Descemos cada vez mais. Eu já sentia o calor do fogo do inferno queimar minhas penas. Eu tentava inutilmente me explicar, mas a mordaça só me permitia alguns murmúrios incompreensíveis e sufocantes expressões de desespero.

Não podem me largar aqui... Não eu... Eu não... Pomme que deveria estar aqui. Por que eu? Logo eu, um anjo com tão boas intenções? Eu só queria... salvar o mundo... por bem... ou por mal...

Essa não!

Ryuk estava certo.

Eu sou como o Kira.

— Anda logo, traidor, desça a escadaria! – ordenou Ignatius.

Balancei a cabeça para os lados, desobedecendo. Meus olhos fracos imploravam pela derradeira clemência.

Ignatius, altivo e impassível, arrancou-me a auréola da cabeça, retirando-me o título de anjo. Depois, empurrou-me, fazendo-me rolar escada abaixo. Machuquei-me pelo caminho, óbvio. Meus joelhos ralaram, minha alma queimou e meus olhos derramaram sinceras lágrimas. Senti um gosto estranho na boca... O que era? Tentei distinguir... Parecia areia... e lama...

Não acredito que cheguei a esse ponto tão humilhante... De anjo prestigiado e respeitado no paraíso a joguete do inferno...

Ignatius gargalhou lá de cima.

— Nem para cair você tem classe!

E voou com os outros anjos de volta ao paraíso.

Ignatius, esse miserável! Ele não merece as asas que tem... Posso até ter meu Carma, mas ele também terá o dele.

Ouvi uma voz grave e rouca praguejar perto de mim:

— Levante-se daí, miserável! – ele arrancou minhas algemas e minha mordaça – Não pode ficar aí deitado na lama para sempre! Há muito o que fazer!

Quis saber quem era o dono daquela voz, logo ergui lentamente a cabeça para fitá-lo. Digo que o fiz lentamente porque temia o que meus olhos enxergariam a seguir.

Era um demônio de cerca de dois metros de altura, musculoso e mal encarado. Trajava belíssimas vestes negras, mas seu rosto era feio e desfigurado, com uma enorme cicatriz atravessando o olho e uma língua de serpente pendendo de sua boca. Sua pele era avermelhada e seus olhos, brilhantes e dourados. Suas patas e chifres eram de bode, enquanto sua grossa cauda se assemelhava a uma flecha.

Um demônio clássico, hunf.

— Lúcifer? – perguntei instintivamente, mesmo sabendo que o inferno verdadeiro não era como o inferno cristão.

— Não tem nenhum Lúcifer aqui. Você tem lido a Bíblia demais – ele analisou displicentemente as garras cinzentas de seus dedos – Se eu ganhasse um dólar por cada alma que me chama de Lúcifer, eu poderia comprar o paraíso. Mas enfim, temos negócios a tratar. Em primeiro lugar, suas asas. Não há lugar aqui para essa porcaria inútil. Você é um anjo caído agora, não vai precisar disso. Sendo assim, terei que queimar todas as suas penas com um maçarico. E não tente bancar o espertinho. Como você perdeu sua auréola, suas penas também perderam suas propriedades mágicas, ou seja, ninguém virá te acudir quando o maçarico fizer seu corpo todo arder. Você está nas minhas mãos agora. E você será a minha diversão sádica... por enquanto. Depois, te jogarei no calabouço com as outras almas. Elas devorarão toda a luz que ainda te resta, tornando-te oficialmente um demônio como todos nós. Após um tempo, também te nascerão chifres e patas de bode, além de uma asquerosa cauda. Quando isso acontecer, será nosso escravo. Se não quiser ser nosso escravo, tudo bem. Será açoitado, carbonizado, sufocado ou mergulhado em fezes. Somos tão gentis que até deixaremos você escolher o que vai sofrer primeiro, haha. Mas, por enquanto, deixe-me cuidar dessas asinhas aqui...

Ele pegou o maçarico e o acendeu.

Não...

Tentei voar ou me teletransportar, mas eu já havia perdido o meu título de anjo. Ignatius arrancara a minha auréola. E como o próprio demônio havia dito, sem auréola, o anjo perdia seus poderes.

Minhas asas eram inúteis.

— Por favor... Não faça isso! – implorei de joelhos.

— Basta! Seja homem uma vez na vida que não tenho tempo para não-me-toques! – ele me agarrou pelo pescoço e apontou o maçarico para as minhas penas – Serei gentil com você. Quer que eu seja rápido... ou lento?

— Solta ele! – gritou uma voz feminina bem atrás de nós.

Pomme?

Mas, mas...

Não é possível! Eu só posso estar ouvindo coisas!

Só há uma justificativa plausível para ela ter chegado aqui...

Ela deu seu último suspiro.

Pomme está morta.

— Oh, quem diria, uma moça tão linda quanto você descer ao inferno! – o demônio me lançou ao chão, esquecendo-se rapidamente de minha existência – Que crimes a dona de um rosto tão bem delineado poderia ter cometido? Seu único crime decerto é sua beleza... cruelmente infernal.

— Se ousar fazer algum mal a ela... – rosnei.

— Cale-se! – bradou o demônio – Ou te amordaçarei outra vez tal qual seus “amigos” celestiais o fizeram. – ele se virou para Pomme, ávido pela garota – Agora, diga-me, belezinha... O que traz corpo tão belo a tão fétida lama?

— Eu cometi suicídio.

Suicídio...

Mas por quê?

~*~

POV POMME

— Levaram o L, levaram o L... – choraminguei de joelhos – Os anjos vão descer com ele ao inferno... Os demônios vão torturá-lo logo em seguida... E isso é tudo culpa minha! Minha! Ele só estava tentando proteger o mundo... de mim! Eu que deveria estar no inferno, não ele! Eu... Eu... Eu sou o cavalo vermelho da guerra! Sou a desgraça que veio para semear o Apocalipse e chafurdar os humanos na lama! Meu espírito é até hoje amaldiçoado pelo maldito Death Note que usei quando era Light Yagami! Por Deus, descobri hoje, descobri só hoje que sou a reencarnação de Kira! Não... Tudo menos isso, tudo menos isso! Até ontem eu odiava Kira, mas não tenho mais esse direito, pois como posso odiar a mim mesma? Por que nunca me contou, Ryuk? Por que me deixou saber de forma tão cruel o meu passado nojento, as terras pútridas pelas quais já andei? Eu fui Kira, eu fui Kira na vida passada... Eu causei a Terceira Guerra Mundial, eu matei todas aquelas pessoas, eu matei aquelas pessoas... Eu pus fogo no mundo! E hei de pôr outra vez se continuar viva! Eu sou um perigo para a humanidade, sou um perigo para mim mesma, posso ser um perigo até para você, Ryuk! Sou nociva, erva envenenada, planta parasita! Por favor, eu imploro a qualquer um que possa me escutar agora: me mate, tão somente me mate, me mate sem piedade! É melhor morrer do que ter que cumprir a visão das asas de L e causar a Quarta Guerra Mundial, dizimar a população mais uma vez, ver a história se repetir, ferir mães e crianças, assassinar meu próprio povo! Não... Não aguento mais isso! Minha desgraça tem o justo dever de ser só minha desgraça, não a desgraça de todos... A morte não é o que eu devo temer! Eu sou o que eu devo temer!

Ryuk apenas disse:

— Eu nunca te disse nada porque... não queria que essa informação te abalasse. Não queria te ver sofrer por saber que um dia foi Light Yagami. Eu só queria... te proteger.

Meus olhos se semicerraram de ódio:

— Você me traiu! Omitiu a verdade para não ser obrigado a lidar com ela! Pois sua filhinha querida matou pessoas! Isso é demais para você?

— Pomme...

— Já chega, Ryuk! – subi no parapeito da janela do meu apartamento – Já está mais do que na hora de acabar com tudo isso... E dar a Pomme o que é de Pomme.

— Pomme, não!

Tarde demais. Mergulhei de cabeça daquele prédio de vinte andares... em direção ao concreto lá embaixo. Ryuk naturalmente tentou voar até mim para me segurar e me trazer de volta, mas o choque que ele teve diante da minha atitude o paralisara por um espaço de instante, fazendo-o perder segundos preciosos. Quando ele tinha finalmente conseguido segurar a minha mão, já era tarde demais. Estava segurando um corpo sem alma.

Tudo escureceu.

~*~

— E foi isso que aconteceu... – finalizei.

— Por que, Pomme? – indagou L, desesperado.

— Por dois motivos. O primeiro: por mais inescrupulosa, falsa e manipuladora que eu seja, não me considero tão má a ponto de cumprir o que diz o reflexo da minha alma e destruir o mundo mais uma vez. Porque sou em parte Light Yagami, mas também sou Pomme Bordeaux Carpentier. Por mais que meu espírito seja amaldiçoado, todas as minhas vivências nesses breves dezoito anos modificaram minha alma, por isso não sou exatamente igual ao Light, apesar de carregar algumas de suas principais falhas. L, entenda que meu lado Pomme não quer destruir o mundo, ainda que meu lado Light queira em meu inconsciente. Por isso me matei. Por medo de que meu lado Light viesse a me dominar por completo algum dia, tal qual suas asas mostraram. O segundo motivo de meu suicídio: eu não conseguiria viver sabendo que quem eu amo desceu ao inferno por minha causa. Seria imperdoável continuar respirando nessas condições... E sufocante também. Eu salvei o mundo de mim mesma ao cometer suicídio. Agora, vim aqui... salvar você.

— Hum, que sacrifício mais nobre... Uma menina que se sacrificou tanto pela humanidade só pode ser da Pátria Sombria... – opinou o demônio, acariciando meus cabelos castanhos com seus dedos nojentos.

— Não. – empurrei o demônio, jogando-o ao chão. Depois, caminhei até L, tomando-o em meus braços – Eu sou da Pátria do Citrino, o que significa que eu sou infantil... e odeio perder!

Beijei o anjo profundamente, tal qual sempre quis fazer. Eu não sabia ao certo por que estava fazendo aquilo, ainda mais numa situação inapropriada como aquela. Porém, beijar L era um desejo que eu tinha desde criança. Ele podia até não gostar de garotas, mas não custava sonhar.

~*~

POV LAWLIET

Pomme beijava como Light Yagami. Claro... A alma era a mesma. E seus lábios ainda possuíam a mesma textura, ainda que três milênios após o nosso primeiro beijo. Obviamente não era oportuno beijar naquele momento, mas o toque dos lábios de Pomme me fez chegar a uma conclusão importante: eu não amava Light Yagami apenas por sua aparência. Eu não o amava simplesmente porque ele era um garoto bonito. Eu o amava porque éramos ambos inteligentes, jogávamos de igual pra igual, não dávamos sossego um ao outro... Light era um desafio irresistível, com todo o seu intelecto privilegiado, sua falsidade detestável, sua apatia extrema, seu sério caso de descaso pela vida. Meus olhos sempre se emudeciam diante de tamanho ressentimento; oh, sujo e cru ressentimento. Ressentimento aquele... tão idêntico ao meu.

Eu amava Light porque beijá-lo era como me olhar no espelho.

E Pomme, mesmo sendo uma garota, ainda refletia minha alma como ninguém.

Minhas asas surpreendentemente voltaram a bater.

Será que... o beijo de Pomme fez um milagre em mim? Mas anjos não podem ter desejos carnais, essa é uma das principais regras do paraíso... Como pode, então, um beijo trazer de volta meus poderes de anjo? Logo eu, que já beijei outra vez e quase fui expulso do paraíso? Cometi esse crime de novo e estou aqui, são e salvo! Como minhas asas não caíram? Um ultraje dessa magnitude deveria me condenar ao inferno para sempre... Mas aconteceu o contrário!

Posso voar novamente!

Ei, espera!

Só há uma explicação para isso:

A regra... está errada. Foi mal-formulada pelos anjos do alto escalão. Talvez eles não saibam que o desejo carnal acompanhado de amor verdadeiro não é um crime celestial. E eu tenho a maior prova de que essa regra pode ser reescrita!

Eu posso mudar o modo como o paraíso lida com o amor romântico!

— Meus poderes voltaram! Mal acredito! Estou sem auréola, mas o beijo me recobrou as forças! Mal sabia que algo do tipo era possível! – exclamei de alegria, alçando voo – Vamos fugir daqui, Pomme, eu te levo em meus braços! Tenho muitas novidades para contar aos anjos velhos! Talvez até me devolvam a auréola e me aceitem de volta após a divulgação de minha descoberta! O que aconteceu hoje não está escrito em nenhum compêndio celestial! Isso foi inédito! Precisamos subir aos céus e contar tudo a eles!

— Pode ir sozinho. Não vou com você – sentenciou ela.

— Mas, mas...

— Eu não mereço o céu, L, do contrário eu teria me transformado em anjo após a minha morte. Meu lugar é aqui. Sem mais injustiças, anjo meu. Essa confusão toda começou justamente porque você queria que eu descesse ao inferno, em vez de reencarnar. Por que me quer com você no paraíso agora?

— Porque eu te...

— Sim, você me ama. Mas o amor é incoerente e seu valor deve ser desprezado de nossa equação. Estou exatamente onde você quer que eu esteja, não estou? Não há mais peças para mexer, o xeque-mate já foi dado. Agora vá, reconstrua a sua vida, tente limpar seu nome com os outros anjos. Quanto a mim, deixe que eu padeça no inferno mais uma vez. Ainda não me purifiquei. Nada mais justo do que sofrer todos os castigos do lago de enxofre. Estou mais segura aqui do que entre os anjos e os humanos. Sou uma vilã de nascença, não há beijo de anjo que me salve. Eu sou um demônio, meu caro, nasci para ser. E você é o anjo que dança comigo. – ela me dirigiu um olhar perverso idêntico ao de Light Yagami – Creio que o senhor já saiba disso, mas não custa repetir: quando se dança com o demônio, você não o muda, mas ele muda você. E eu te mudei. Meu beijo te trouxe de volta os poderes de anjo. Mas seu beijo em nada me afetou. Eu pude te salvar do inferno, mas você jamais poderá me salvar de mim mesma. Porque a mim foi dado o livre arbítrio. E, independente da sua vontade, eu escolho ficar.

— Pomme... – murmurei.

O demônio que Pomme havia empurrado finalmente se levantara da lama, passando o braço por trás da nuca da garota. Ele me olhou de cima a baixo com desprezo, como se eu fosse um ser insignificante para ele.

— Você ouviu a garota – disse ele, raivoso – Vá embora daqui, antes que eu decepe as suas asas!

Eu, sem escolha, voei no meu caminho para fora do inferno.

Light... Pomme...

Por quê?

~*~

Retornei ao paraíso. Triste e rendido, implorei novamente por clemência. Falei com Ignatius, o famigerado e já conhecido atual presidente do paraíso. No entanto, ele me negou a devolução de minha auréola.

— Mas, senhor... Veja! Eu consegui sair do inferno justamente porque o beijo de Pomme me trouxe de volta o bater das minhas asas! Eu estou sem auréola e, mesmo assim, posso voar! Isso é um milagre, significa que sou um anjo novamente! Sendo assim, tenho todo o direito de voltar pra casa! Além disso, eu sou a prova viva de que uma das regras do paraíso está errada! O desejo carnal acompanhado de amor romântico não é um crime, pelo contrário, pode trazer até bênçãos nas horas difíceis!

— Tudo isso é muito interessante e será arquivado na próxima edição do compêndio celestial, mas não posso permitir seu retorno, pois nada disso te redime de seus crimes e feitiçarias anteriores.

— Só me dê mais uma chance!

— O paraíso já te deu outra chance milênios atrás. Agora, não mais. Fora daqui!

— Pois quer saber? Nenhum de meus crimes tem verdadeira relevância pra você! Você só não quer permitir o meu retorno porque sou um anjo muito querido por aqui! Você tem medo de que eu me candidate na próxima eleição e tome o seu posto! – afirmei, jogando sujo.

Ele me encarou com firmeza e autoridade, repleto de ódio em seus olhos de pedra. Impaciente, exclamou:

— Basta! Suma daqui! E se um dia ousar voltar, te desintegro!

— Ignatius...

— Vá, vá!

— E para onde eu vou? Não sou bom o bastante para estar no céu, tampouco mau o bastante para estar no inferno. Também não posso viver entre os humanos porque estou morto. E agora?

— Agora você vai vagar pelo mundo eternamente, sem lar, nem objetivo. Morrerá de tédio tal qual os Shinigamis. – ele gargalhou com vontade – Acredito que esse castigo seja ainda pior que o inferno!

Shinigamis...

— Adeus, Ignatius. – despedi-me com falsa gentileza – Desejo do fundo do meu coração ressentido que você seja deposto hoje mesmo e apodreça no fogo do inferno... Porque eu posso até não merecer as asas que tenho, mas essa auréola que você tem sobre a cabeça, até o Shinigami Ryuk merece mais que você. Agora, se me permite, vou falar com ele. Ele cuidou de Pomme como se fosse sua filha. Acho que ele merece uma satisfação. E como não posso mais voltar ao paraíso, você não se importaria se eu quebrasse mais uma de suas estúpidas regras-mor, certo?

Ignatius pareceu frágil diante de minha declaração, como se só as minhas palavras fossem o suficiente para levá-lo à queda. Ele engoliu seco e disse:

— Certo.

— Pelo menos concordamos em alguma coisa.

E desci ao mundo dos humanos, certo de que não retornaria aos céus nunca mais.

“Proibido no paraíso e inútil no inferno”, já dizia Marilyn Manson, cantor do velho mundo.

~*~

CONTINUA...


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Notas finais do capítulo

Altas reviravoltas, kkkkkkkkk. Estamos perto do fim.



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