Ceci n'est pas une Pomme escrita por Charbitch


Capítulo 4
ATO II:III — FÚRIA (Início do segundo ato)


Notas iniciais do capítulo

Alerta de crítica social, problematização e afins. Se você for do tipo que diz que tudo é mimimi, chispa daqui u.u



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CECI N'EST PAS UNE POMME

ATO II:III — FÚRIA

Dezoito anos após o nascimento de Pomme...


“Nós somos a Pátria do Citrino!
Vencer é mais que um objetivo
Nossa honra depende da vitória
Pois só assim haverá linda glória
A felicidade está na competição
Ser o melhor nos traz admiração
Não temos pena dos perdedores
Eles que morram de suas dores
Pois estamos muito ocupados
Saudando os vencedores!”.
~*~

POV RYUK

— Eu odeio esse hino idiota – praguejou Pomme – Aliás, a divisão do mundo em pátrias, cada qual com o seu modelo próprio de felicidade, por si só, já é algo idiota. A Pátria do Citrino, por exemplo, acredita piamente que a vitória é o único caminho para a felicidade. Sua cor oficial é o amarelo, a cor do ouro, da medalha, do troféu. Por isso, meus pais sempre me colocaram em competições desde que eu era um bebezinho. Era concurso de beleza, de dança, de canto, de maquiagem, de matemática, de redação, de atletismo, de desenho... Não me deixaram ter infância, sempre me disseram que era perda de tempo. Eles me matricularam em todos os cursos imagináveis. Aula de inglês, de espanhol, de francês, de música, de programação, de natação, de vôlei, de aeróbica... Minha agenda está sempre agitada. Contudo, eu não sou uma exceção. Faço o que todos fazem na Pátria do Citrino: adquirir uma montanha de conhecimentos inúteis para ser o primeiro colocado em algum concurso idiota e ganhar muito prestígio social depois.

— Não me parece muito diferente do que acontecia no velho mundo – respondi calmamente – Os humanos não mudaram nada. Cada uma das sete Pátrias carrega em si uma falha humana mais antiga que a sua própria fundação. A Pátria d’Alvura, por exemplo, acredita que a pureza da raça é o caminho para a felicidade. Sua cor oficial é obviamente o branco. Pensam como Hitler, um ditador do velho mundo. Mas não enxergo felicidade nos olhos claros daquelas pessoas tão loiras e pálidas. Elas são criadas desde pequenas para se preocuparem apenas com a alvura da própria pele. São obcecadas. Cobrem-se da cabeça aos pés quando vão sair na rua porque têm medo de se bronzear. Desenvolvem tecnologias para diminuir ao máximo a produção de melanina, sendo que todos sabem que a produção de melanina é completamente saudável, enquanto o albinismo está longe de ser. Além disso, pessoas “insuficientemente brancas”, como eles mesmos dizem, vivem à margem da sociedade, enquanto pessoas de cabelos quase brancos de tão loiros desfrutam de todo o luxo e opulência.

— A Pátria d’Alvura consegue ser ainda mais nociva que a Pátria do Citrino – emendou Pomme – Mas a que eu mais odeio é a Pátria Violeta. Sua cor oficial é o roxo, a cor do luxo, dos nobres, da ostentação, da realeza. Eles só pensam em fama e em autopromoção. São fúteis, pois acreditam que a popularidade é o único caminho para a felicidade. Endeusam celebridades estúpidas, que mal talento possuem. Todo cidadão é criado para os holofotes por lá. A criança mal nasce e já tem um perfil em todas as redes sociais. Quanto mais seguidores e compartilhamentos ela tiver, mais feliz e prestigiada ela será. A posição social do indivíduo é definida pela quantidade de pessoas que o invejam e gostariam de ser ele. Ninguém é julgado por seu caráter, talento ou ideias. O único critério é a fama. Se você for popular e extrovertido, do tipo que compartilha na rede até o que faz no banheiro, é uma boa pessoa. Se for mais reservado, com certeza é metido.

— São escravos dos elogios e da atenção da mídia – completei – Até se envolvem em escândalos para atrair atenção, principalmente quando percebem que a fama está diminuindo.

“Todos terão seus quinze minutos de fama”, já dizia Andy Warhol, pintor do velho mundo – sentenciou Pomme – Qual Pátria você mais odeia, Ryuk?

— A Pátria Sombria.

— Ué, deveria ser a sua favorita, não? – ela riu – Você não é sombrio?

— Sou. Mas eles não. Eles só são idiotas, mesmo. Acreditam que a felicidade só pode ser alcançada por meio do sacrifício. São uns fanáticos religiosos. Oferecem suas casas, seu dinheiro e até suas crianças aos líderes da Pátria. Os cidadãos de bem pensam que seus líderes são alguma espécie de meio-termo entre os humanos e Deus, por isso os tratam como reis, profetas, até santos. Fazem o possível e o impossível pela salvação. Aquele lugar se chama Pátria Sombria porque todos se abdicam de seus bens para viver na escuridão, acreditando que, quando morrerem, seus sacrifícios serão recompensados com a luz. Porém, eu posso afirmar categoricamente que todos os sacrifícios feitos são inócuos. Os líderes recolhem os bens dos súditos e os usam para benefício próprio. São uns charlatões. Arrancam a luz dos outros para si, apagando as almas de todos à sua volta. Afinal, a esperança é o melhor alucinógeno. Se os cidadãos continuarem esperançosos, continuarão dando dinheiro aos líderes. É por isso que os líderes fazem discursos acalorados, dizem que vão mudar a vida de seus súditos se eles confiarem neles... E algum dia mudam? Não, não mudam. São como os políticos e pastores do velho mundo. Dessa forma, os pobres que vivem na Pátria Sombria têm apenas a esperança acesa, pois o resto já foi saqueado pelos poderosos... há muito tempo atrás. Sua cor oficial é o preto, justo a cor que pinta nossos dias mais escuros. Isso porque a Pátria Sombria cedeu toda a luz que possuía, ironicamente à procura de mais luz. Luz ilusória. Luz que se apaga no segundo seguinte. Luz fraca a deles!

— Aproveitando que já falamos mal de quatro Pátrias... Vamos falar mal das outras três também. – Pomme sorriu com sarcasmo – Ah, a Pátria Carmesim! É a Pátria que vive pelo prazer. Sua cor oficial é o vermelho, óbvio, a cor do sangue e do pecado. São uns hedonistas sem cabeça. Querem cada vez mais e mais prazer. Amam comida, sexo, drogas, festas e cassinos. Não possuem perspectiva ou objetivos. Participam de orgias, devoram pizzas inteiras, cheiram cocaína, frequentam baladas de domingo a domingo e disparam o gatilho de uma roleta russa sem nem pensar nas consequências. Eu sei, parece o sonho de todo adolescente viver na Pátria Carmesim, mas lá é o inferno. Como o prazer está em primeiro lugar, o estupro também é permitido. Ora, o estuprador sente prazer em estuprar, então está tudo certo pra ele. Ele está simplesmente seguindo o seu instinto, a sua natureza selvagem. O mesmo também vale para assaltantes e assassinos. É uma Pátria sem regras, uma completa desordem, um mar de vícios, um lodaçal perdido.

— E a Pátria da Esmeralda? É a mais avarenta e materialista. Sua cor oficial é o verde, pois verde é a cor do dinheiro. Essa Pátria acredita que o acúmulo de riquezas é o mais importante para alcançar a felicidade. Valorizam o ter e não o ser. Gastam o mínimo que podem. Contam os centavos e são workaholics, pois tempo é dinheiro e as riquezas não vão se multiplicar sozinhas. Não descansam. Trabalham o dia todo. Investem, resgatam, acumulam. Estão sempre preocupados com as cifras da conta bancária. Os solteiros mais cobiçados são aqueles que possuem mais posses, pois dinheiro chama dinheiro. O casamento é mais um contrato do que um ato de amor. Se a empresa do marido falir, a moça que arrume um novo marido, certo? Não está errada em buscar conforto, pois amor é para os fracos.

— Que filosofia mais triste... – comentou Pomme – Mas a filosofia da Pátria Turquesa é mais triste ainda. O isolamento é o único caminho para a felicidade, onde já se viu? Escondem-se em montanhas e meditam o dia todo. Só entram em contato uns com os outros quando é estritamente necessário. São eremitas. Acreditam que a felicidade está na solidão, no encontro silencioso com o eu. Mas eles se esquecem de que nós somos seres sociais. A ciência já comprovou que ter amigos aumenta a felicidade. Mas a Pátria Turquesa não acredita nisso. Vestem-se somente de azul, pois azul é a cor da calma, da paciência, da serenidade. Mas não acredito que sejam serenos. Eles são frágeis. Sem interação, vivem presos em seus próprios mundinhos e não evoluem, não cruzam suas histórias com seus semelhantes, não estabelecem diálogos, não criam laços. Que horrível viver assim! Quanto egocentrismo pensar que a felicidade está exclusivamente dentro de nós mesmos! A felicidade está em cada pequena coisa. É uma pena. Nunca saberão como é bom receber um sorriso ou um abraço de alguém. Talvez a cor oficial deles seja o azul não porque eles são calmos, mas porque são frios... Não sentem a dor do outro, pois não aprenderam a amar ninguém além de si mesmos. Triste, muito triste. Ah, e por falar em tristeza, a Pátria Turquesa é, segundo as estatísticas, a mais triste de todas... e com o maior índice de suicídios.

— Pois é, Pomme – concordei, tristonho e pensativo

— Esse mundo está podre! – bradou ela.

Hum, eu já ouvi isso antes, Pomme... Ou eu deveria dizer... Light Yagami?

— É verdade... – concordei novamente – Mas não pense que o velho mundo era melhor do que o seu. Os humanos são obcecados por vitória, aparência, popularidade, salvação divina, prazer, dinheiro e egocentrismo desde que o mundo é mundo. O novo mundo de Kira veio para tentar acabar com todas as falhas humanas, mas fracassou miseravelmente, pois Kira também possuía falhas. É... Ele não era um deus como pensava. Após a Terceira Guerra Mundial, que começou assim que Kira cometeu suicídio, passaram-se milênios até que toda a radiação das armas atômicas se dissipasse da maioria dos continentes. Tempos depois, a população, quase dizimada, voltou a aumentar. Porém, houve um grande problema: durante o pós-guerra, as pessoas estavam mais preocupadas em reconstruir o que tinha se perdido do que em investir em inovações científicas, por isso a tecnologia não evoluiu muito nesse meio tempo. Esse rombo na História estacionou os humanos ao ponto de estarmos nos anos 5000 e ainda não termos carros voadores, haha. Quer saber? Os humanos não evoluíram quase nada. A ciência continua a mesma e a política também. Afinal, nasceu essa estúpida divisão em Pátrias! Oh, uma nova divisão! É, vocês humanos têm uma obsessão doentia por rótulos e segregação. Estão repetindo a história toda de novo. Em breve, vocês levarão outro Kira ao poder, recomeçando o processo. Tsc, tsc... Vocês nunca aprendem. Almejam a linha de chegada, mas mal saem da estaca zero. Na verdade, acho que vocês até merecem um segundo Kira.

— O quê? Levar outro Kira ao poder? Só se as pessoas forem muito burras! – rebateu Pomme – Eu odeio o Kira.

Se ela soubesse que é a reencarnação do espírito de Kira..., pensei comigo mesmo, legitimamente preocupado com o possível desfecho trágico para Pomme Bordeaux Carpentier.

Essa garota é quase uma filha pra mim... Não aceitaria perdê-la por um capricho estúpido de uma vida passada.

Naquele exato momento, vi o espírito de L Lawliet se materializar bem na nossa frente, interrompendo meus pensamentos macabros.

— Hoje não é dia de descarregar maçãs douradas, mas uma remessa extra é sempre bem-vinda, meu caro Lawliet – afirmei com cinismo.

— Hoje a minha conversa é com Pomme, não com você, Ryuk – o anjo bufou, impaciente – Poderia nos deixar a sós?

— Ah, sim, claro, vocês querem namorar, né? – joguei uma indireta mais do que direta.

O rosto de Pomme ficou da cor da bandeira da Pátria Carmesim.

— Eu nunca disse isso, Ryuk. – L parecia impaciente – E não alimente esperanças comigo, Pomme. Não sinto atração por...

— Garotas, nanana, eu não sinto atração por garotas, tralalá – cantarolei.

— Não era o que eu ia dizer, mas... – o anjo ruborizou.

— Você é gay? – perguntou Pomme.

— Ryuk, dá pra dar o fora daqui? – ordenou L, aparentemente furioso.

— Como quiser, L Lascador! – e voei pela janela do quarto de Pomme, gargalhando como uma criança travessa.

~*~

POV POMME

— Não acredito que você é gay! Você é meu amorzinho platônico desde que eu era uma menininha... – disse, chorosa – E nossos planos? E nosso casamento?

— Bom, na verdade isso foi um lance que você inventou... – o anjo assoviou uma canção qualquer, certamente desconfortável com a situação.

— Quer dizer que os gays vão pro céu?

— Se tiverem bom caráter, sim.

— Mas existem passagens na Bíblia que dizem o contrário.

— Quantas vezes tenho que dizer que o nosso paraíso não é como o paraíso cristão? – ele esfregou a mão na cara, incomodado – Três milênios se passaram e vocês ainda acreditam nas mesmas coisas de quando eu era vivo... Pensei que fossem mais inteligentes!

— Mas Deus diz que...

— Que eu saiba, Deus não existe. Somos nada mais, nada menos que uma sociedade de humanos que morreram e, por terem sido bons em vida, transformaram-se em anjos. É um fenômeno natural. Não existe nenhum ser onisciente, onipotente e benevolente lá em cima conosco. Somos só nós, anjos, também governados por anjos. Até temos eleições, para se ter uma ideia. Assim como os humanos, também temos três poderes: legislativo, executivo e judiciário. E, de acordo com a legislação celestial, você pode ser alto ou baixo, magro ou gordo, homem ou mulher, branco ou negro, gay ou hetero, trans ou cis, que isso não interferirá no nosso julgamento sobre você. Nem mesmo os ateus vão para o inferno só por serem ateus. A única coisa que importa em nosso julgamento é o caráter. Em minha opinião, o verdadeiro paraíso é muito melhor do que o paraíso que os humanos imaginam. Conhece-me desde criança. Acha que eu mereço o inferno?

— Claro que não... – enxuguei uma lágrima – Você é perfeito.

— Bom... Não exatamente. Já quebrei muitas regras. Quase fui expulso do paraíso uma vez, hehe... – ele parecia encabulado com o meu elogio.

— Mas afinal, o que queria tanto falar comigo? E por que tinha que ser a sós?

— Você gostaria de saber como é a sua alma? – perguntou ele.

— Espero que seja boa... – sorri – E tem como saber?

— Tem. Pedi que Ryuk saísse porque vislumbrar a própria alma pode ser uma experiência muito pessoal e não raro dolorosa para alguns humanos. Por isso, preferi lhe revelar a verdade em particular. É como uma consulta com um psicólogo, só que funciona. Basta olhar fixamente para as minhas asas. Não desvie o olhar nem por um segundo. Você assistirá ao filme da sua alma. Está preparada?

— Eu... estou...

Ele abriu as suas lindíssimas asas e se posicionou próximo à janela do meu quarto, permitindo que a luz do sol iluminasse suas penas. Elas rapidamente resplandeceram como o mais belo arco-íris.

Fiz como ele pediu e observei atentamente. No início, não vi nada. Mas depois, começou: eu me vi diante de um lago, admirando o meu próprio reflexo. Porém, no reflexo eu estava bem diferente. Estava mais velha e até mais bonita, com uma fita amarela amarrada em meus cabelos. Eu sabia o que aquela fita significava: presidência. Apenas o presidente da Pátria do Citrino podia amarrar uma fita amarela em seu cabelo. Eu estava fazendo o meu discurso de posse, alegre e vivaz.

Hum, quer dizer que eu serei a presidente da Pátria do Citrino? Pensei que as asas do L servissem para refletir a alma, não para prever o futuro...

Parecia tudo excelente, até que eu me vi pressionando um botão para disparar um míssil em direção à Pátria Violeta.

— Espera, espera, para tudo! – ele fechou as asas logo em seguida – Você está dizendo que eu serei uma tirana? Eu nem ao menos quero ser presidente!

L parecia sem palavras.

— Light Yagami... Eu estava certo esse tempo todo...

Pela primeira vez, eu vi L chorar como um bebê.

— Light Yagami? Como assim? Esse não é o nome verdadeiro do Kira? Do que você está falando? L, eu quero respostas! Por favor, não vá me dizer que eu sou tão horrível assim! Deve haver alguma explicação! Suas asas podem estar com defeito ou...

— Não. Você está com defeito... Kira. – raiva e frieza faiscavam em seus olhos sem vida – Pode ter enganado todos os anjos velhos, mas a mim não engana!

Ele enxugou as lágrimas e se foi, voando pela janela.

Eu caí de joelhos no chão e gritei de pavor e desespero. Meus pais não estavam em casa, então me permiti chorar até morrer desidratada.

— Kira... – balbuciei – Eu sou o segundo Kira?

— O que está acontecendo? – Ryuk entrou pela janela do quarto e, preocupado, abraçou-me fortemente – O que o L disse pra você?

— Não sei o motivo, mas ele... Ele... me chamou de Kira...

~*~

CONTINUA...


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Notas finais do capítulo

Nem vem, Pomme. L-Senpai já é meu marido u.u



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