Polinizador. escrita por Carenzinha


Capítulo 1
De repente, tudo mudou. (único)




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Pisava com minhas botas verdes mais puxadas para o azul com detalhes laranja no chão cinza da Colônia. Os sapatos possuíam uma vespa laranja desenhada no lado esquerdo deles. Dava passos lentos e confiantes. Levava meu capacete, também verde mais puxado para o azul e com uma viseira laranja, embaixo do braço.

Minha roupa era do mesmo tom das minhas botas, feita com tecidos de boa durabilidade (se caso você perdesse o controle e sofresse um pouso forçado), mas, com uma elasticidade e leveza (nosso corpo não pode ficar rígido e nossos movimentos não podem ser limitados durante o voo).

Em um cinturão azul escuro estava encaixado vários vidros, onde deveriam estar nossa fonte de alimento. Usava luvas da mesma cor do cinturão.

“Era só mais um dia de trabalho.” Minha mente pensava e, com esse conforto eu acenava para meus amigos e colegas. Alguns estavam ocupados em suas tarefas, outros estavam esperando na plataforma os Polinizadores voarem. Era mais um dia de executar meu serviço comum, e minha verdadeira paixão em toda a vida: ser um Polinizador.

Eu sempre achei uma grande perda de tempo os outros nos esperarem para assistirem nosso voo, nunca entendi o motivo das pessoas ficarem paradas torcendo por nós, olhando nossas manobras admiradas.

Só estávamos indo para o nosso trabalho diário, algo habitual e costumeiro, não precisávamos de cerimonias. Mas, mesmo assim Vespas nos esperávamos, como se fossemos celebridades. “Eu acho que nunca vou me acostumar com todos me olhando.” Eu pensava, nós não estávamos fazendo nada de especial, porém, éramos tidos como heróis.

Nosso trabalho era conseguir comida, colher seiva e cuidar das plantações. Tínhamos que garantir que não faltariam suprimentos. Éramos uns dos poucos Vespas que tinham contato direto com o mundo fora da colônia (com exceção dos Guias, os Patrulheiros e os ExterMeds).

 “Olha parece que temos torcedores!” Eu ria em tom brincalhão enquanto me dirigia até a plataforma. Mas, minha caminhada foi interrompida por um garoto que entrou correndo na minha frente. Seus cabelos eram pretos e bagunçados, possuía um grande sorriso e um olhar maravilhado.

Ele usava um capacete de Polinizador, era verde escuro, feito de papelão e depois pintado. O objeto estava um pouco amassado, o lado direito dele estava começando a desbotar e, o símbolo dos Vespas do lado esquerdo do capacete estava um tanto torto. Mesmo assim, era uma incrível réplica. Fiz questão de elogiar.

“Nossa, um novo Polinizador? Seja bem vindo a equipe!” Eu brinquei, enquanto retirava o capacete dele e bagunçava seu cabelo.

“Você é meu herói, Jeff! Um dia eu quero ser um Polinizador tão bom quanto você!” Ele falava em um tom sonhador, o que me fez sentir honrado.

“Tenho certeza que será melhor do que eu!” Eu disse, o que fez o sorriso do menino se arregalar ainda mais.

“É-é sério?!” Ele perguntou entusiasmado.

O garoto usava uma roupa verde escura, do mesmo tom de seu capacete e mais escura do que suas antenas. Possuía botas verdes que, pareciam tentar ser botas como as dos Polinizadores, uma coisa fofa e emocionante de se ver. Um pequeno fã bem na minha frente.

Eu assenti, com minha mão livre peguei meu capacete e o coloquei na cabeça do menino, o que tampou a visão dele, pois tinha ficado largo. Porém, ele ergueu o objeto com as mãos e, com os olhos cheios de lágrimas murmurou baixinho:

“Eu estou usando um capacete de Polinizador!”

“Sim você está.” Eu respondi sorrindo, no mesmo tom de voz baixa do garoto.

Ele sorriu, maravilhado por estar usando o capacete.

“Qual é seu nome, Polinizador?” Eu perguntei.

“Fernando.” Ele respondeu.

“DEZ SEGUNDOS PARA A PARTIDA!” Gritou Miranda, uma Patrulheira. Logo depois abriu o portão.

Patrulheiros vigiavam a Colônia. Ficavam de prontidão caso alguma ameaça aparecesse, mas, alguns voavam junto com os Polinizadores para o caso de um vilão surgir de surpresa. Não é que nós não sabemos lutar, nós sabemos! Porém, como estamos com a comida, os Patrulheiros preferem arriscar a própria vida lutando, para dar tempo de nós voltarmos com os suprimentos para a Colônia.

Acho Patrulheiro uma função notável.

Os Patrulheiros usavam uma roupa como a nossa, a diferença é que era cinza, com detalhes e botas em preto e sua viseira era branca, não laranja. Tinham luvas pretas e, no lugar do cinturão carregavam lanças presas em suas costas por um tipo de cinto.

“Garoto será que poderia me devolver isso? Eu tenho que pegar alguns mantimentos.”

Ele assentiu e me devolveu o capacete. Coloquei o capacete verde na cabeça dele novamente.

Olhei para o céu azul, estava um dia lindo. O tempo estava fechado, com muitas nuvens, mas mesmo assim conseguiríamos voar. O vento estava moderado, mas eu não me importava, afinal, o vento me chamava para voar.

As cinco fileiras de Polinizadores e a única fileira de Patrulheiros andavam para perto do fim da plataforma. Ela era cinza e possuía o símbolo dos Vespas pintado em verde, uma tinta brilhante onde, mesmo sem o sol batendo nela, parecia brilhar.

Estava pisando na asa da silhueta de uma vespa quando coloquei o capacete olhando para a imensidão do horizonte. Estava na hora de ir até umas plantas para conseguir a seiva e o néctar. Com um olhar concentrado ativei a viseira.

“BOA SORTE!” Gritavam os Vespas que estavam nos olhando. Notei um Fernando correndo apressado quase até o final da plataforma. Seus olhos estavam arregalados de admiração e seu sorriso era sincero.

“Boa sorte, Jeff!” Falava o menino admirado. Ele bateu continência com a mão direita, um movimento feito por Polinizadores, a saudação daqueles que exerciam a função de procurar comida.

Eu estava quase saltando para partir então, olhei para ele de relance e retribui o movimento da mesma maneira, o que fez o garoto sorrir.

Eu estava indo para mais um dia comum, executando a mesma função de sempre.

Nós todos começamos a voar. Olhei para trás e percebi o portão se fechando, os últimos Vespas acenavam enquanto o objeto era fechado. O vento batia em meu rosto, sentia meu nariz gelado, sabia que pegaria uma gripe.

O capitão dos Polinizadores, Amadeu, deu a ordem para diminuirmos de tamanho e, junto com os Patrulheiros ficamos pequenos.

Primeiro começamos a procurar as melhores flores, nem todas possuíam néctar suficiente e, extrair essa substancia era algo um tanto complicado. Portanto, era mais vantajoso perdermos mais tempo procurando flores com mais néctar, do que extrairmos da primeira flor que vimos e termos pouca substância.

Porém, as plantas pareciam não estar colaborando, todas as que víamos estavam com pouco néctar, ou com pouca seiva. Consigo me lembrar de estar voando entre flores verdes, azuis, rosas, roxas. Sobrevoava margaridas, lírios, orquídeas, girassóis, mas nenhuma tinha a quantidade suficiente que precisávamos.

O vento aumentava enquanto voávamos, e não achávamos nenhuma planta realmente boa para coletarmos a substância. Olhava para a cara dos meus colegas Polinizadores e percebia a chateação nos olhos deles. Eu sabia o que eles estavam sentindo, porque eu sentia o mesmo. Um grande desconforto, a Colônia precisava dessa comida.

O vento ia aumentando cada vez mais, segurava meus espirros na tentativa de reprimir uma futura gripe (eu também não queria dar a entender que estava desconfortável, meus colegas estavam na mesma situação que a minha), mas eu sentia que um grande resfriado ia chegar logo. O frio me invadia e meus cabelos balançavam por dentro do capacete. Minha sorte era que minhas luvas e toda minha roupa de modo geral, eram quentes.

Nós dávamos voltas e voltas, sentia o perfume de todas as flores enquanto olhava para as cores delas, mas, estava muito preocupado com a ausência de um bom néctar para aprecia-las com atenção. Mesma coisa com a seiva, ah, se eu soubesse o que estava prestes a acontecer teria perdido mais tempo me preocupando menos e admirando o verde das folhas das árvores.

Sons de trovoadas foram ouvidos.

“Droga!” Pensei comigo.

O vento parecia estar com raiva de nós, pois aumentava cada vez mais. Começava a sentir frio, mas eu não queria deixar os outros preocupados, eu não queria alarma-los que eu estava desconfortável. Eu precisava continuar, fingir que tudo estava bem. Precisava ser um incentivo para os outros da equipe.

Cocei meu nariz com minha mão direita, realmente estava para vir um resfriado.

Escutava espirros, me virei para trás para olhar quem estava espirrando e percebi que muitos Polinizadores não estavam mais aguentando, eles tremiam de frio, espirravam e bocejavam.

Voávamos por horas, sem parar e ainda não tínhamos encontrado nada que valia a pena ser extraído.

Eu me sentia mal, não queria voltar para a Colônia de mãos vazias.

Os Polinizadores possuíam um sentido apurado nas antenas, uma espécie de faro responsável por identificar plantas com boa seiva e flores com bom néctar. Algo que era aprimorado por nós em todos os treinos. Mas, dessa vez eu não sentia nada. Nem uma misera árvore com suprimento prestando.

O vento ficava cada vez pior, parecia que eu seria carregado por ele.

O cansaço piorava, mais Vespas espirravam e tossiam, estávamos voando por horas, sem comida e sem água.

Sons de trovoadas foram ouvidos novamente.

Começava a chover.

Uma chuva gélida entrava pela gola da minha roupa, me fazendo arrepiar.

Estávamos voando desde as 8 horas da manhã e, se meus cálculos não falhavam eram quatro da tarde, nós deveríamos estar na Colônia uma hora dessas. Porém, o fator de não termos comida colaborava para que continuássemos.

“O que sugere, capitão?” perguntava Miranda para Amadeu.

Só depois dessa pergunta que pude reparar na expressão de nosso capitão, era algo desesperador. Eu nunca tinha o visto assim.

Amadeu fez uma cara pensativa, hesitou e disse por fim com um olhar preocupado:

“Libere os Polinizadores novatos e aqueles com pouca experiência, não quero arriscar a vida de ninguém!”

“Certo.” Respondeu Miranda, fazendo sinal para que os demais Polinizadores retornassem a Colônia.

Eu fiquei junto com outros 14 Polinizadores, 15 com o capitão. Os mais experientes da equipe.

O vento piorava, eu tremia por dentro. Fazia de tudo para não transparecer meu desconforto por fora.

A chuva aumentava, minha viseira embaçava.

Os primeiros traços de uma noite iam surgindo, tínhamos ficado o dia inteiro fora. Eu cogitava dar a ideia para o capitão de irmos até o mercado e comprarmos comida lá mesmo, mas, a essa altura o mercado estaria fechado e também não nos dávamos tão bem em nos relacionarmos fora da Colônia.

Eu sentia o desespero de Amadeu, estávamos sem comida.

“ATENÇÃO VESPAS: NOVA ORDEM!” Ele gritou. “EXTRAIAM NECTAR DE PLANTAS MESMO QUE ESTEJAM RUIM E EM POUCA QUANTIDADE! ESSAS SÃO MEDIDAS DESESPERADAS!”

Ninguém questionou e muito menos discordou, todos sabiam que era a coisa certa a se fazer. Os 14 Polinizadores se posicionaram perto de uma flor e tentavam desesperadamente extrair a maior quantidade possível.

Eu nunca achei que veria a cena: mais de 10 Vespas em uma única flor tentando retirar tudo dela. Até mesmo os Patrulheiros estavam se juntando a cena.

O vento estava horrível, galhos voavam. Levantar voo era perigoso, pois poderíamos ser atingidos.

Aquele dia realmente não era um dos melhores.

Eu estava indo para perto deles para ajudar com a flor,               quando uma sensação me invadiu. Um imenso calor em meio ao frio, uma ansiedade em meu peito, uma imensa dose de adrenalina estava dentro de mim. Minhas antenas coçavam e rumavam meu corpo para um lugar que nenhum Polinizador nunca tinha ido.

Um lugar tomado por espinhos.

Esse local estava perto de onde eu estava, mas nenhum Polinizador nunca tinha ido lá, por ser um lugar arriscado. Porém, por algum motivo desconhecido minhas antenas me levavam para lá. Era errado eu ir para o lugar com espinhos sem os Patrulheiros revistarem a área antes, mas algo me chamava. Sentia nas antenas.

Eu deveria seguir meu instinto.

Sem pensar duas vezes levantei voo.

“É perigoso voar nessa chuva, Às!” Falava Amadeu para mim.

Eu era um Às, aqueles que recebiam esse termo eram os melhores Polinizadores.

“O vento está perigoso. SE ARRISCAR É LOUCURA!” Ele continuou.

Mas, meu instinto me levava para aquele lugar com espinhos.

“Me desculpe.” Eu murmurei, enquanto me dirigia até lá.

“NÃO! É LOUCURA! VOLTE ÀS!” O capitão gritou.

Eu precisava ir até aqueles espinhos, minhas antenas pareciam queimar por dentro.

“VOLTE, JEFF!”

Eu não pararia.

“VOLTE ÀS! É UMA ORDEM!”

Foi um grande peso ouvir Amadeu gritando, mas eu não podia parar. Tinha algo lá, eu sabia disso.

Eu tinha que lutar contra o vento, era complicado, isso requeria todo o esforço possível.

Sentia meu corpo doer eu estava exausto.

Em um momento de desespero, cresci novamente, achando que isso pudesse ajudar. Pena que eu tinha me esquecido de que os Vespas possuem ossos leves mesmo quando estão em “tamanho humano”. O vento estava forte de mais, mas eu tinha que aguentar. Eu precisava.

“Existem mais de 1.000 membros na Colônia, eles não podem ficar sem comida.” Murmurei para eu mesmo lutando contra o vento.

Mas, não foi suficiente.

Pois, um “crec” foi ouvido e, com uma dor latejante em minha cabeça percebi que minha asa tinha se partido. Lágrimas quentes de dor na tentativa de abafarem um grito saíram de meus olhos.

Perdi o equilíbrio.

Como se não bastasse, um galho de árvore estava sendo levado pelo vento. Eu, por minha falta de equilíbrio gerada pela perda da asa, não fui rápido o suficiente para desviar dele. O que acabou levando minha antena direita.

Soltei um grito de puro desespero, agonia e dor. Minha cabeça parecia explodir.

Lágrimas quentes mesclavam com o sangue que saia do lugar onde estava a antena e com a chuva fria.

Com muito esforço consegui abrir meus olhos enquanto me contorcia de dor, dava saltos e fazia de tudo para não cair no chão. Pude ver (e sentir) o motivo pelo qual eu tinha me arriscado. No meio dos espinhos havia várias flores carregadas de um bom néctar. Um motivo para sorrir perante tantos para chorar.

Infelizmente, por olhar para as flores, esqueci o primeiro mandamento dos Polinizadores:

Olhar sempre para frente.

Quando me dei conta uma sacola plástica estava na minha cabeça cobrindo minha visão. Eu estava desesperado, perdi meu equilíbrio por completo e, em outra tentativa desesperada encolhi.

E fui caindo.

Caindo.

Caindo.

Caindo

Estava pequeno, insignificante. Eu só queria que minha Colônia ficasse bem, mas fui caindo como um mero lixo, alguém minúsculo que não faria falta.

Perante ao desalento fui tomado pela voz do capitão.

“VOLTE ÀS! É UMA ORDEM!”

Eu não merecia o titulo de Às.

Eu apenas estava pensando em como fui imprudente e insensato.

É impressionante como, em um minuto você está executando sua tarefa diária e em outro uma tragédia acontece.

Em poucos segundos sua vida muda para sempre.

Eu caí e tudo ficou escuro.

Mas, eu não sabia que essa escuridão seria eterna.

“Está tudo bem, Jeff?” Fernando me perguntou, interrompendo meus pensamentos.

“Está sim, Fernando.” Eu respondi.

Há 20 anos aquilo tinha acontecido. Aquele foi o dia em que tudo mudou para a minha vida. Os Patrulheiros me acharam desacordado horas depois, estava banhado em sangue.

Quando acordei na Colônia não conseguia ver nada, demorou alguns meses para receber a noticia de que a cegueira era permanente.

Minha descoberta foi fenomenal, consegui salvar minha Colônia da fome, os espinhos foram aparados e as plantas utilizadas.

“Você está se tornando um incrível Às, Fernando.” Eu disse ao garoto.

“Obrigado, mas, nunca serei tão bom quanto o senhor, capitão.”

Quando fiquei cego, sem uma asa e com uma antena e meia, muitos duvidaram que eu conseguiria continuar sendo um Polinizador. Mas, eu mostrei para todos que eu era capaz. Eu me tornei capitão dos Polinizadores.

“Aliás, os Patrulheiros nos convocaram. Descobriram uma nova área e já a revistaram. Possui flores boas, podemos coletar néctar, também tem árvores para a seiva. Estamos te esperando, capitão.” Fernando disse.

“Obrigado pelo aviso, Fernando.” Eu disse enquanto abria minhas três asas e meia.

Os Cientistas estavam fazendo próteses de asas, mas, mesmo se obterem sucesso eu não a colocaria. Por algum motivo eu acho necessário me lembrar do dia que isso acontecer, ter essa meia asa como parte de mim, aceitar que ela existe.

“Eu já estou indo.”

“Certo”

Eu sabia que ele estava batendo continência, eu não precisava ver para notar isso. Eu apenas percebia. Retribui o gesto dele enquanto o garoto se afastava voando ligeiro

Falaram que eu ficaria desnorteado sem uma antena, sem uma asa e sem minha visão.

Mas, eles se esqueceram que aquilo que move um Vespa é seu amor pelo que faz, e o mais importante de tudo:

O instinto.


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