Um anjo caído escrita por Madreamer


Capítulo 3
A verdade por trás da verdade




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        Marco acordou primeiro. Precisou de alguns segundos para se situar. Lembrou-se da noite anterior e do homem que dormiu ao seu lado. Sorriu.

        — Bom dia — sussurrou. Não obteve resposta. Verificou que o outro ainda estava dormindo e começou a acariciar seu rosto. Seus dedos passaram timidamente por todo canto, desde a testa até os lábios. Permitiu-se tocar seus cabelos castanhos. Afastou-se quando Miguel virou-se para si e abraçou-o.

        — Continua — pediu com voz manhosa.

        Marco sorriu e voltou a fazer cafuné em Miguel.

        — Como estão suas costas?

        — Normal.

        — Não tá doendo?

        — Um pouco. Isso é normal.

        — Posso ver como está?

        — Daqui a pouco — disse e aninhou-se um pouco mais nos braços de Marco, o qual sorriu e fez questão de embalá-lo ainda mais.

        Ficaram assim por alguns minutos. Apreciaram a companhia alheia até que um gato começou a miar sem parar. Marco resmungou e levantou-se, abrindo a porta do quarto em seguida.

        — Simba, eu já falei pra você parar com isso — murmurou num tom de voz baixo.

        O gato olhou-o e miou mais uma vez.

        — Aposto que sua vasilha tá cheia de comida — resmungou.

        Marco foi encher sua já cheia vasilha e voltou para o quarto.

        — Simba? — Miguel perguntou.

       — Sim. Eu adorava "O rei leão" quando era pequeno — fez biquinho.

        — Não tô te julgando — riu.

        — Deixa eu ver suas costas — ordenou.

        Miguel suspirou e ergueu-se da cama, virando-se de costas para Marco. O dono dos olhos verdes não sabia se se assustava ou se maravilhava com a rapidez com que os ferimentos cicatrizaram.

        — Devo interpretar seu silêncio como algo bom ou ruim? — Miguel perguntou.

        — Um pouco de cada. Não sei se eu corro de você ou se eu te imploro por um pouco desse "poder" ou seja lá o que for.

        — Se você for correr, sugiro que o faça agora.

        — Não... Eu não vou correr. Dá muito trabalho — sorriu brincalhão.

        — Que bom que você é preguiçoso — devolveu o sorriso e mostrou a língua.

        — Ei! — fingiu estar ofendido.

        Ambos riram e o gato retornou ao quarto. Era pequeno e não possuía raça. Foi adotado quando começou a ir frequentemente à casa dos Linetti. Marco, assim como a irmã, se apaixonou pelo bichano e convenceu a mãe a adotá-lo.

        Simba parou em frente da porta e sentou. Observou os rapazes à sua frente e miou. Aproximou-se de Miguel.

        — Traidor! — Marco exclamou. — Eu cuidei de você por sete anos e é assim que me agradece?!

        Miguel riu e colocou o bicho no colo, acariciando-o. Simba voltou para o chão alguns segundos depois e começou a se esfregar na perna de Marco, pedindo carinho.

        — Também não quero mais saber de você. Pode sair daqui, traidor — falou.

        O gato sentou e olhou Marco como se implorasse por perdão. O rapaz suspirou e pegou Simba no colo.

        — Acho que você acabou de se trair — Miguel disse.

        — É impossível resistir a essa carinha irresistível! — defendeu-se.

        — Bom, se é irresistível é impossível resistir.

        — Já deu! Você é formado em Artes, não em Português. E cuidado pra ele não achar que você é um passarinho.

        Miguel riu. Fazia tempos que ninguém falava com ele desse jeito. Sua mãe não permitia que brincassem com ele assim. Para ela, o filho era uma porcelana que se quebraria a qualquer momento. Ela estava apta a colocá-lo numa redoma, mesmo que isso significasse que ele ficaria isolado do mundo.

        — Eu tenho que te pedir mais uma coisa — Miguel falou após alguns segundos de silêncio. — Não conta pra sua irmã. Nem pra ninguém. Por favor.

        — Claro! Sem problemas. O segredo é seu, afinal.

        — Obrigado — sorriu.
        Simba começou a ronronar e pulou na cama.

        — Acho que seu gato tá me expulsando.

        — "Meu gato" não. O Simba. Ele é seu próprio dono. E sim, ele tá te expulsando. Mas te garanto que não é nada pessoal. Teve um dia que eu deixei ele dormir aqui dentro e ele ocupou literalmente metade da cama. Eu dormi todo encolhido.

        Miguel não conseguiu segurar a risada. Ele podia afirmar sem dúvida alguma que aquele era um dos melhores dias de sua vida.

        — Que horas são?

        — Devem ser seis e pouco. O Simba sempre me acorda nesse horário.

        — Ele é seu despertador?

        — Também. Mas às vezes até ele tira uma folga.

        — Quais os planos pra hoje?

        — Não sei. Você consegue me carregar?

        — Pra quê?

        — Pra gente voar — sorriu. Miguel não ficou contente com a ideia. — Vai dizer que voar não tem suas vantagens?

        — Bom... A vista é maravilhosa. Nem tanto quanto você.

        Marco corou e sorriu.

        — Então? — o olhar de expectativa de Marco lembrou Miguel do Gato de Botas com suas orelhas para baixo e os olhos gigantes. Desnecessário dizer que foi o suficiente para convencê-lo.

        — Tudo bem. Mas não se acostume com isso — Miguel rendeu-se. — E só vamos à noite. Fica mais difícil de nos verem. E a vista é mais bonita.

        — Tubo bem! — ele transbordava de felicidade.

        Ficaram em silêncio e coraram levemente quando os olhares se encontraram.

        — Está com fome? — Marco perguntou por fim. Miguel assentiu. — Eu não cozinho muito bem, mas acho que consigo preparar um café da manhã decente.

        — Pão com margarina já é decente pra mim.

        — Que bom! Assim eu não tenho que ir ao mercado!

        — Você é realmente preguiçoso, não é?

        Marco deu de ombros e fez cara de inocente. Miguel riu.

        Tomaram café enquanto Simba escalava suas pernas e tentava conseguir mais um pouco de comida.

        — Por quê o Simba ainda tá chorando? — Beatriz disse ao entrar na cozinha. Ainda vestia o pijama. — Ah... Bom dia, Miguel. Marco, eu não sabia que tínhamos visita.

        Ela claramente não estava feliz com a surpresa.

        — Não se preocupe. Tá todo mundo de pijama. E o Simba tá pedindo comida que ele sabe que não pode comer.

        — Que parte da história eu perdi? Eu tenho certeza que só tinha eu e você no carro ontem. Eu bebi alguma coisa?!

        — Não, Beatriz — Miguel falou. — Eu tive um problema em casa e seu irmão ofereceu que eu ficasse aqui.

        — Que gracinha, irmãozinho — disse ao apertar a bochecha de Marco, o qual afastou o rosto. — Mas está tudo bem?

        — Sim. Só tive uma pequena discussão com minhas mães.

        — Espero que consigam resolver tudo.

        — Eu também — suspirou. — Você se importa se eu ficar aqui por mais uns dias?

        — Não. De maneira alguma! Mi casa es su casa.

        — Obrigado — sorriu.

        — E a pequena?

        — Ela tá bem. Acho que nem ouviu a discussão.

        — Que bom — sorriu com compaixão.

        Beatriz sentou-se e comeram em silêncio. Miguel foi o primeiro a terminar e pediu licença. Marco lhe indicou o banheiro e ele foi tomar um banho.

        — Eu quero detalhes! — Beatriz falou em tom baixo quando ficou a sós com o irmão.

        — Novamente: nada aconteceu.

        — Nada? 

        — Nada. Mas nós dormimos abraçados — disse com um sorriso e um suspiro apaixonado.

        — Foi amor a primeira vista?

        — Talvez — sorriu novamente.

        Beatriz também não pôde evitar sorrir. Estava feliz pelo irmão.

 

***

 

— Aonde quer ir? — Marco perguntou quando ficou a sós com Miguel em seu quarto.

— Qualquer lugar, menos a praia.

— A Beatriz vai encontrar uns amigos na hora do almoço e só deve voltar à noite. Você pode deixar suas asas livres, se quiser. Imagino que incomode — falou baixinho

— Sim, incomoda um pouco. É aliviante "libertá-las", mas eu já me acostumei a escondê-las.

Marco lhe deu um sorriso triste. Antes que falasse qualquer coisa, ambos ouviram um baque surdo vindo da sala.

— Aposto que foi o Simba — Marco falou com um suspiro.

Os dois rapazes dirigiram-se a sala de estar e Marco já estava preparado para dar uma bronca no bichano quando viu a irmã caída no chão e um homem alto ao seu lado.

Marco parou onde estava e seu coração pulou uma batida.

— Quem é você? — perguntou com a voz trêmula.

O homem não lhe deu atenção. Seu olhar estava fixo em Miguel, cravando cada centímetro dele.

— Finalmente te achei — disse o homem, seu rosto impassível.

— O que fez com ela?! — Marco gritou.

— Nada — Miguel respondeu num tom sério. Ele não estava assustado porque sabia quem era o homem e já vira aquilo acontecer. — Ela apenas desmaiou.

— Estou surpreso que me reconheceu — o homem tornou a falar.

— Eu também — disse ao pressionar a mandíbula.

— Não vou receber nem um abraço?

Miguel fechou os olhos e cerrou os punhos.

— Saia daqui antes que eu chame a polícia!

— Você não vai fazer isso. Você quer saber o que aconteceu.

— Não tenho certeza quanto a isso.

— Quem é ele, Miguel?

— Era pra ele ser meu pai. Mas ele não passa de um desconhecido.

O homem finalmente virou seu rosto para Marco e o olhou com asco.

— Sua irmã está bem. Ela só vai dormir por algumas horas.

— Você a drogou?!

— Não! De maneira alguma! Eu só toquei nela.

E num piscar de olhos o tempo ao seu redor congelou. Os três assistiram o homem entrar voando pela janela. A visão recuou e o homem estendeu os braços. A visão foi ao chão e escureceu.

— O-O que acabou de acontecer? — Marco gaguejou.

— Você viu o que sua irmã viu. Agora você sabe o que aconteceu?

— O que é você? Um demônio?

O homem arregalou os olhos e sorriu.

— Pensei que vocês, humanos, não acreditassem nessas estórias infantis.

— O que quer dizer com isso? — Miguel indagou.

— Quer dizer — sorriu — que seu amigo está correto. Eu sou um demônio.

Miguel balançou a cabeça negativamente.

— Não, você só é um pai negligente inventando desculpas.

O homem sorriu novamente. Seus olhos, antes verdes, brilharam num tom vermelho sangue. Suas maçãs do rosto proeminentes e seu nariz fino deixaram sua aparência mais assustadora.

— Quer mais uma prova?

Sem aguardar resposta, virou-se de costas e os rapazes assistiram enquanto asas surgiam nelas. Eram maiores que as de Miguel, com cerca de treze metros. Suas penas eram negras como carvão.

— Você tá falando que eu sou um demônio? — os olhos de Miguel estavam arregalados. Ele tentava conter aquela voz em sua cabeça falando-lhe que ele sempre soube que era um demônio.

— Também. Mas você também é um anjo. Sua mãe é um anjo.

— Como você sabe? Ela nunca me falou nada!

— Suas penas. Não são completamente brancas nem pretas. São uma mistura. Se eu sou um demônio, sua mãe é um anjo.

— E por que ela nunca me falou?

— Porque ela esqueceu. Mesmo assim, eu não podia arriscar ficar perto dela.

— Você percebe que o que você falou não faz sentido?

— Sim. Mas é a verdade.

— Eu sou um demônio?

— Parte! Parte demônio.

— Isso não faz muita diferença.

— Mas nós não somos o que você pensa que somos. Não somos “demônios”, per se. Somos apenas divindades, por assim dizer. Somos reflexos humanos. Os demônios, como chamam, representam as coisas ruins, como a ganância, e os anjos, as boas, como o amor — com isso, seu olhar repousou em cada um dos rapazes. Um olhar um tanto sugestivo.

— Quer dizer que vocês são deuses? — Marco perguntou curioso.

— De certo modo, sim, mas não gostamos desse termo. É muito... Arrogante.

— E você não é? — Miguel retrucou.

O homem sorriu maliciosamente.

— Eu ainda sou um demônio, certo? — respondeu.

O silêncio se instaurou. A voz teimosa na cabeça de Miguel voltou a perturbá-lo, acusando-o de ser o próprio Diabo.

— Saia daqui! — ordenou com voz trêmula, tanto para seu pai, quanto para a voz irritante em sua cabeça.

— Você não quer ouvir a história toda? Sua história.

— Saia! — gritou. — Saia!

O homem surpreendeu-se com aquele tom de voz. Não eram muitos que tinham coragem de falar com ele assim. A maioria sequer conseguia olhá-lo em seus olhos.

Ele abriu a boca, porém, nada falou. Desapareceu num piscar de olhos.

— Você tá bem? — Marco perguntou ao tocar o ombro de Miguel.

Miguel encolheu-se. Fechou os punhos e quase desferiu um soco em Marco.

— Desculpe — Miguel respondeu e libertou suas asas. Saiu pela janela sem se importar se seria visto ou não.

Marco ficou sozinho. Suspirou fundo e foi para o lado da irmã. Certificou-se de que ela ainda respirava e pegou-a no colo. Levou-a a seu quarto e deitou-a na cama. Colocou um copo d'água no criado ao lado da cama para quando ela acordasse.

Marcou jogou-se no sofá da sala e olhou a bagunça feita pelas asas do pai de Miguel quando se abriram: objetos caídos e quebrados. Pegou Simba e colocou-o ao seu lado.

—Você também viu isso, certo? — perguntou e o bichano apenas miou para ele.

***

Beatriz levantou-se num pulo. Sua visão estava turva e seu ouvido zumbia. Meio trôpega, saiu do quarto alarmada, inspecionando cada centímetro da casa.

— O que aconteceu? Cadê aquele cara? — Beatriz perguntou ao irmão ao encontrá-lo no sofá.

— Do que está falando?

— Tinha um cara aqui. Ele entrou pela janela. Ele... Ele tinha asas.

Marco suspirou e mordeu o lábio inferior. Não podia contar a verdade, mas também não gostava de mentir para a irmã.

— A parte das asas eu não sei, mas um amigo do Miguel veio aqui. Ele falou que você desmaiou quando o viu. Acho que sua imaginação ainda tá muito criativa por causa do filme que assistimos na sexta passada.

Beatriz pressionou os olhos. Não estava convencida, mas também duvidava do que tinha visto.

***

Miguel voou até o céu escurecer e suas asas gritarem por descanso. Ainda conseguiu encontrar um lugar isolado para pousar: uma montanha relativamente alta. De seu topo, a cidade mais próxima não passava de minúsculos pontos de luz.

Sentou-se ao pé de uma árvore e encolheu-se, abraçando as próprias pernas. "Eu sou um demônio". As palavras ressoaram em sua mente. Ele fechou os punhos a ponto de deixar marcas de suas unhas nas palmas e sentiu as lágrimas mancharem sua face.

Escondeu-se em suas asas na tentativa de manter-se aquecido. Adormeceu quando a exaustão o venceu.

***

Marco dormiu no sofá. Ficou esperando por Miguel e se preocupou ainda mais quando não recebeu respostas às mensagens ou às ligações. Ele se perguntava como podia estar tão calmo quando acabara de ver um ser sobrenatural. Não remoeu esse pensamento por muito tempo. Miguel não saia de sua cabeça. Apenas Simba foi capaz de distraí-lo e fazê-lo render-se ao cansaço.

***

Miguel acordou com o frio. Não sabia que horas eram nem onde estava. Não se desesperou. Tinha dúvidas se teria coragem de receber os olhares condenadores de Marco. Não conseguiria voltar e encará-lo. Marco provavelmente já tinha achado um lugar para se esconder do demônio.

"Parece que você estava certo, Luca. Eu sou uma aberração", pensou e socou a própria perna para se impedir de chorar novamente.


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