Resquício - Com Café escrita por Youseph Seraph


Capítulo 1
1 - Nenhuma história começa com um copo de leite


Notas iniciais do capítulo

Agradeço desde já aos meus amigos e leitores que também moldarão essa história juntos a mim.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/761138/chapter/1

Era dia 5 de março. Fazia um mês que eu não tomava mais aquelas malditas pílulas. Passei as mãos no espelho, ainda embaçado pelo vapor do chuveiro. O sul do Brasil é frio no outono, e é ainda mais frio nas manhãs. Eu olhei para o meu rosto fixamente, mas sem foco exato em algum lugar. Reparei em mim mesmo como um todo. Minha pele cor de bronze, meus olhos âmbar, meus cabelos castanho-escuros curtos, minhas olheiras e, então, meus sinais de nascença na bochecha esquerda em forma que lembra vagamente a constelação do Cinturão de Órion. Meus olhos, em seguida, foram para o outro sinal de nascença, único e solitário, na bochecha direita.

Minha psicóloga me falou para apreciar a minha aparência nesse momento. Muitas pessoas diziam que eu era bonito. Talvez fosse verdade, mas eu não me sentia muito à vontade mesmo assim. Eu não tenho o melhor corpo do mundo. Eu não sou exatamente magro. Não tenho os músculos de alguém que pratica exercícios físicos, que pelo visto, todo mundo adora. Eu sou apenas normal, sem nada de especial e tenho pneuzinhos.

Mas hoje? Eu estava um pouco diferente, realmente. Eu me senti mais bonito. Talvez tenha sido só meu humor me pregando uma peça. Eu estava otimista. Feliz, talvez. Eu não me sentia assim há meses. Eu sabia o motivo. A sensação de borboletas no estômago estava mais intensa do que nunca. Seria meu primeiro dia no trabalho.

Eu havia acordado às 6. Minha chefe disse que eu deveria chegar cedo, afinal, eu serviria não apenas cafés e chás, mas também, todo o café da manhã para os clientes. Tomei um banho rápido e me vesti. Preparei o meu café da manhã (torradas e um cappuccino bem especial) e, logo, eu estava pronto. Peguei uma carona com meu pai e fui o mais rápido possível para o Sweet Mornigs, uma espécie de coffee shop, ou algo perto disso, ao lado da faculdade.

A gerente já estava pronta no local. Daniela era seu nome. Ela era uma moça ruiva com cachos lindos. Como todos os funcionários, ela usava uma camisa de manga comprida branca, o uniforme rosa chá e uma calça preta.

—Oh! Nestor! Bem-vindo ao seu primeiro dia! —Disse ela com um sorriso. —Se precisar de ajuda é só pedir!

Eu sorri de volta. De alguma maneira, o local me acalmava. Talvez fosse o cheiro de café, ou então a vibe hipster do Sweet Mornings. Não sei, mas funcionou.

—Muito obrigado! —Respondi. O clima do local era tão agradável e aconchegante que, mesmo sendo o meu primeiro emprego, eu já me sentia parte do pessoal. A gerente, também, facilitava as coisas.

Então, um casal de funcionários como eu se aproximou. Ele tinha o cabelo preto cacheado, era alto e tinha olhos azuis. Ela era mais baixa, e seu cabelo igualmente escuro fazia um ótimo contraste com sua pele clara e batom marrom.

—Ah! Você é o novo funcionário? —Perguntou o rapaz. —Me chamo Diego. Essa é a minha namorada, Isabel. Muito prazer!

Ele estendeu o braço em minha direção e nos cumprimentamos com um aperto de mão.

—Oi, prazer! Sou Nestor!

—Prazer te conhecer, Nestor! —Falou Isabel. —Venha com a gente, podemos te mostrar todo o lugar!

Eu sorri e aceitei as instruções. É importante conhecer o local onde eu trabalharia nos próximos meses, talvez anos.

Entramos atrás de um balcão de madeira onde eu anotaria os pedidos, então passamos para a cozinha, onde Diego e Isabel fariam os pedidos. Daniela me ajudaria, além de supervisionar todos os funcionários e poder utilizar o caixa. Por fim, me mostraram onde ficam os materiais de limpeza e, claro, o banheiro.

Eu aproveitei para fazer uma pausa no "tour" cinco minutos antes do Sweet Mornings abrir. Foi uma sensação boa ter conhecido o lugar. Era tão aconchegante que me assustava ao mesmo tempo que me animava.

Eu parei na frente do espelho, como fiz hoje de manhã. Fitei os meus olhos âmbar e as marcas de nascença com a forma do Cinturão de Órion da minha bochecha esquerda.

—Vai ser um ótimo dia de trabalho, né? —Falei pro meu reflexo. Por algum motivo eu esperava que ele me respondesse.

Eu ri por causa desse pensamento. Então eu olhei pro espelho e meu reflexo estava rindo também. Tinha algo de errado com a imagem no espelho, na verdade. Algo que eu não percebi antes. As cores do "mundo do espelho" estavam insaturadas, como uma nuvem de chuva. A minha pele, que deveria ser da cor do bronze, estava cinzenta. As marcas de nascença também estavam do lado errado.

—Sentiu minha falta, Ness? —Falou a figura do espelho.

Dei um passo pra trás.

—Quem é você? E o que é você?

O Nestor Sombrio pareceu se divertir com meu espanto. Ele inclinou-se em minha direção e saiu do espelho com um sorriso cínico no rosto.

—Ah! Vai dizer que não se lembra de mim, Ness? Depois de TAAAAAAAAAANTO tempo que passamos juntos? —Ele alongou o A da palavra "Tanto" de uma maneira sinistra, depois deu uma gargalhada maligna que, na verdade, mais pareceu um pato afogado. —Tenta pelo menos adivinhar quem eu sou!

Eu não falei nenhuma palavra, apenas fiquei observando como a figura era translúcida e bruxuleava na minha frente, como um fantasma que saiu direto de uma impressora preto-e-branca.

—Ah! —Disse ele, enfim. —Não tenho paciência pra isso. Acontece que só você pode me ver aqui. Se você não se lembra quem eu sou, deveria começar a tomar seus remédios de novo. Talvez assim você possa perceber o quanto é inútil e fracassado. Não vai durar um mês sequer aqui.

Eu me lembrei de palavras que soavam parecidas. Lembrei de quando eu mesmo dizia isso na frente do espelho, e agora, parecia que o espelho estava fazendo esse trabalho por mim. Algo que eu dizia quando eu estava...

—Eu sei quem você é. —Falei. —E não vou deixar que o resquício de um passado interfira novamente na minha vida. Eu já te superei.

—Oh, Ness, meu velho amigo! Deixa eu te contar um segredinho, de Ness pra Ness: ninguém supera de verdade a depressão. —Disse ele. As palavras que ele insistia em dizer ainda doíam, mas não me machucavam mais.

—Você está um pouco enferrujado, meu velho amigo. —Eu o confrontei. —Será que estou certo? Ah, claro que estou.

A psicóloga foi um ótimo começo, e me ajudou a superar os traumas. Eu não iria me deixar cair nessa armadilha de novo.

Senti um cheiro metálico no ar. O cheiro de ferro oxidando. O cheiro da ferrugem.

Olhei novamente para o fantasma de meu passado, corroendo-se em um pó translúcido alaranjado.

—Relaxa, Ness! Eu vou voltar! —Ele falou sorrindo. Logo depois, ele mudou para uma expressão de ameaça. —Eu prometo.

Quando a última fagulha de existência do espectro sumiu, eu recobrei os sentidos da realidade. Olhei para o espelho e vi apenas eu mesmo, com todas as cores e formas. Eu sorri. Eu já superei esse resquício dos meus traumas, agora devo seguir em frente. É pra isso que estou aqui, não é mesmo?

Ajeitei o meu avental rosa-chá, recobrei a postura, saí do banheiro e tomei o bloco de pedidos em minha mão.

Um senhor de idade acaba de entrar pela porta. Ele vestia um casaco marrom e calças cáqui. Seus poucos cabelos brancos combinavam com os olhos receptivos e otimistas. Ele sentou-se em uma das mesas. Meu primeiro cliente.

Fui até ele com bloco e caneta em mãos.

—Bom dia! Seja muito bem-vindo, senhor! Em que posso ajudá-lo? —Perguntei sorrindo.

O senhor virou-se pra mim sorrindo também.

—Eu gostaria de um copo de leite e um misto quente, por favor!

Eu anotei o pedido.

—É pra já!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Fico feliz por terem lido até o final! Toda crítica construtiva é bem-vinda! Muito obrigado!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Resquício - Com Café" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.