Bandana Vermelha escrita por supercritico


Capítulo 4
Presentes Estrangeiros




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Asara acordou se sentindo observada. As janelas agora estavam entreabertas e uma brisa entrava sorrateira pelos cantos da madeira. Ela se lembrava muito bem de ter girado e encaixado o ferrolho na noite anterior com medo de que olhos desconhecidos saltassem para dentro enquanto dormia. Queria acreditar que Vikrum as abrira, mesmo sabendo que ele nunca entrava no seu quarto.
O primeiro encontro com os organizadores do Torneio das Ruas seria hoje, bem no momento em que os fogos estivessem brilhando no céu. Não se sentia preparada, nem um pouco, mas sabia que se perdesse a oportunidade desse ano, só poderia participar no seguinte e o futuro lhe parecia incerto.
Obrigou seu corpo a levantar e foi em direção ao quintal interno, onde fez suas necessidades num pequeno reservado e tomou um banho sob a luz do amanhecer. Encontraria Liana no círculo da cidade no mesmo lugar onde haviam pintado o céu azul e de lá seguiriam para a casa do padeiro, onde ajudariam na preparação da maior parte da comida que serviriam durante a noite.
Ela trocou de roupas e encontrou Paco na sala.
— Papai volta que horas?
— Creio que já está subindo a encosta. Ele ficou no porto essa noite, deve ter ganhado bastante dinheiro.
— Eu espero - disse o garotinho. Asara preparou algo para o menino comer enquanto ele brincava com os amigos do lado de fora. Ela não se preocupou em fazer algo para si; não conseguia sentir fome com a carga de pensamentos que rodeava a sua mente. Chamou-o quando já havia terminado e saiu para as ruas, procurando Vikrum enquanto subia a calçada.
Não o encontrou, na verdade, tinha dificuldade para encontrar qualquer outra pessoa, pois o movimento pela manhã já era grande. Os preparativos para o festival já tomavam o tempo de todos, tanto que algumas lojas e comércios abriram as portas apenas para a familia, que se apressavam com os toques finais.
Liana apareceu atrás de si, carregando uma cesta com sacos de farinha e ovos.
— Oi, eu te achei - ela se moveu para o seu lado, dando passagem para um grupo de mulheres. - O Sr. Noberto já pediu para que eu buscasse alguns ingredientes que faltavam.
— Já estão a todo vapor assim?
— É claro, soube que trabalharam ontem até tarde. Não vai faltar comida esse ano.
— Isso me soa perfeito - disse Asara, seguindo a amiga para o antigo armazém que agora era a padaria de Noberto. O lugar se parecia mais com uma fábrica, com voluntários entrando e saindo o tempo inteiro como acontecia em todas as festas de fim de ano. Liana se dirigiu para os fundos onde poderia entregar os ingredientes e trabalhar na massa dos bolinhos. - Pegue um desses lenços e cubra a cabeça.
Asara tomou o pedaço de pano e quase usou para cobrir o rosto, como fazia antes de qualquer luta, mas se deu conta do que ia fazer antes que fizesse, e colocou sob os cabelos, dando um nó atás da nuca.
— As garotas aqui vão preparar a massa, nós só vamos cuidar de fritar os bolinhos - disse Liana, seguindo para o interior, onde fogões a lenha tomavam as paredes e caldeirões em chamas borbulhavam o óleo. - Pegue uma dessas peneiras, vamos usar para mergulhar a massa.
Asara concordou com a cabeça e pegou a vara que permanecia pendurada na parede. O metal já estava um pouco quente e ela temeu que o calor se espalhasse por aquilo, chegando em suas mãos. Um homem chegou carregando um tabuleiro de madeira com as duas mãos e o colocou em uma mesa atrás de Asara.
— Tirem bem o óleo antes de jogar nas cestas de metal - disse o homem, indicando o objeto atrás de Liana. - Se o fogo estiver diminuindo, é só cutucar com aquela outra vareta ou pegue mais lenha comigo. Entenderam?
Elas concordaram e o homem saiu, dando início ao trabalho.
— Quantos bolinhos nós vamos fritar? - perguntou Asara, olhando para a amiga que já estava do seu lado, colocando as bolas de massa em sua peneira.
— Eu não sei, mas não devem ser muitos - Liana nunca estava certa quando dizia esse tipo de coisa, Asara sabia. Ela decidiu não fazer mais perguntas e colocou uma boa porção na sua peneira, indo em direção ao caldeirão borbulhante e mergulhando as bolinhas no óleo quente.
O cheiro de fritura invadiu as suas narinas, provocando o seu estômago. Ela sabia que depois de um tempo ficaria enjoada, mas agora a fome falava mais alto. Quando viu que estavam quase totalmente douradas, ela pescou de volta e deixou-as escorrer, cozinhando mais um pouco com o calor que subia. Depois, esticou a peneira e virou na cesta. Ela pegou uma bolinha sem que ninguém visse e colocou na sua boca rápido até demais, queimando a sua lingua.
— Droga! - ela xingou.
— O que foi? - Liana olhou para ela, vendo sua boca cheia e expressão avermelhada. - Espere esfriar.
— Eu sei, mas estou com fome.
— Se continuar queimando a lingua desse jeito vou ter que colocar um cristal azul em sua boca.
Asara se limitou a rir e a continuar o trabalho. Antes que terminassem de fritar o primeiro tabuleiro, outro já havia chegado e ela já estava impaciente. Se continuassem naquele ritmo a festa iria começar e ainda estariam ali fritando bolinhos. Felizmente, uma das mulheres que trabalhavam ali chegou para lhes ajudar, mas aquilo significava que não podia mais surrupiar a comida que tanto queria.
Terminaram quarenta minutos depois, quando o fedor de peixe e óleo queimado impregnara em suas roupas. Asara retirou o lenço da cabeça e respirou fundo quando saiu para o ar do dia. O calor dentro das cozinhas parecia ter sugado toda a água que tinha dentro de si.
— Fizemos um bom trabalho de novo - disse Liana, prendendo os cabelos em um coque.
— Que nada, a moça viu que estavamos demorando e teve que vir ajudar.
— É, isso até que é verdade. Mas estou contente, mal posso esperar para de noite.
— Eu também - disse Asara lembrando do bilhete que havia lido. Liana não fazia ideia que estava se candidatando para o Torneio das Ruas e a garota não queria ter que contar para ela. Tayton já estava louco com aquilo, imagina se a melhor amiga descobrisse. Imagina se Vikrum descobrisse. "Não", ela pensou. "Que todos saibam menos ele".
— O que vai fazer pelo resto do dia? - perguntou Liana.
— Eu não sei - não podia contar sobre os treinos secretos com Tayton, então se limitou a dizer o básico. - Vou ficar em casa, ajudar na tapeçaria talvez.
— Então de noite a gente se fala. Ainda preciso passar em casa e ir me encontrar com as Mães. Hoje o dia vai ser longo e importante.
— Eu sei, seus pais devem estar orgulhosos.
— Sim, estão. É um grande mérito completar um ciclo assim tão rápido - Asara conheceu Liana quando ela ainda estava na metade do seu treinamento e agora, quase um ano depois, já estava completando o ciclo avançado. A garota tinha um dom natural para a medicina.
— Eu também estou orgulhosa do que fez em tão pouco tempo.
— Isso é um grande elogio vindo da garota que mais se fere nessa cidade.
— Lutei muito por esse posto, eu admito - elas sorriram uma para outra.
— É melhor eu ir andando, não quero me atrasar - disse Liana, acenando e se misturando com um grupo que descia a calçada.
Asara tomou o próprio caminho em direção a sua casa, passando pelo círculo do centro e pelas ruas apinhadas de pessoas. Quando chegou na sua rua avistou Vikrum do outro lado puxando um carrinho de mão atrás de si. Ela acenou e foi em sua direção, ajudá-lo.
— Pegue o baú, isso, leve-o para dentro - ele apontou com o dedo e continuou andando enquanto a garota carregava o objeto de madeira escura. Asara mal podia esperar para ver os artefatos que Vikrum havia comprado e a quantidade de moedas que ele havia conseguido com os seus tapetes. - E eu achando que este ano estaria perdido. Graças aos deuses os estrangeiros vieram antes das festas. Comprei e vendi feito um louco.
Ele soltou uma exclamação de alegria e parou o carrinho no centro da sala. Paco, que apareceu depois por detrás da porta, foi em direção ao baú que Asara carregava.
— Trouxe umas lembranças pra você, filho - ele disse, pegando o menino no colo e dando um beijo em sua bochecha. A barba espessa e volumosa de Vikrum fez com que o menino recuasse com risadas. - Pegue, pegue. Trouxe algo pra você também, Asara, minha filha.
Ele apontou para um saco de pano e a garota hesitou antes de se levantar. Ele nunca a chamava de filha e ouvir isso lhe deu um certo enjoo. Aquilo soava tão estranho a seus ouvidos que nunca pensou que ouviria novamente. Abriu a sacola com cuidado e retirou de lá um lindo vestido estampado, com cores tão vivas quanto flores. Era lindo.
— Use hoje de noite, se quiser - Vikrum disse, hesitante. - É um agrado depois de eu ter ficado bravo sem motivo.
— É muito bonito, obrigado mesmo - ela disse, sinceramente. Quase lhe partia o coração que aquilo era para ele se redimir do que havia dito. Não suportava pensar que ainda iria trair sua confiança participando do Torneio das Ruas. Vikrum estava sendo gentil até demais e Asara quase queria que parasse, pois não queria o decepcionar, não queria quebrar esse fino laço que se formava.
— É um barco, papai - disse Paco, erguendo um navio de madeira entalhado perfeitamente como um original.
— Sim, quase como os meus. Os da outra terra fazem essas maravilhas para as crianças.
— Eu gostei muito - o menino disse, exultante. - Vou colocar bonecos de conchinhas para pilotar.
— Só cuide bem disso, me custou uma nota.
— Tá bom - e ele saiu pela porta, mostrando o brinquedo aos amigos.
— Saiu para ajudar? - perguntou Virkum, retirando as coisas do carrinho.
— Sim, ontem pintamos o círculo da cidade e hoje fomos para a cozinha. Fritei bolinhos de peixe - ela disse, forçando um sorriso.
— Ah, aquelas delícias. Vou levar uns amigos para ver os fogos de dentro do barco, Paco vai trazer seus colegas. Se quiser ir também há espaço de sobra.
Asara pensou sobre o aviso no bilhete. Não especificava onde aconteceria o encontro, mas provavelmente não seria no mar. Algum lugar nos arredores ou até mesmo fora da cidade parecia mais certo.
— Eu agradeço o convite, mas vou ficar aqui com minhas amigas. Liana vai completar o seu ciclo e quero estar lá para ver.
— Ah, aquela garota é incrível. Eu entendo, então. Não precisa trabalhar hoje, acho que já deve saber. Vou passar o resto do dia aqui e sair ás sete.
Asara concordou com a cabeça e foi para o seu pequeno quarto. Dobrou o vestido da melhor maneira que pode e sentou ao seu lado. Não sabia o que fazer até que chegasse o momento de se vestir e sair para o recrutamento. Sentia o coração pulsar mais forte quando pensava sobre isso.
Saiu minutos depois para se encontrar com Tayton novamente. Queria treinar o máximo que pudesse antes de tudo começar, apesar das dores que ainda sentia da noite anterior. Ela parou em frente a sua casa e chamou por ele, mas foi o seu outro amigo que a recebeu.
— Ele não está, saiu pra ver os pais hoje de manhã - disse o garoto de cabelos raspados. Asara concordou com a cabeça e recuou em passos lentos, sua cabeça parecia leve e distante. Começou a correr em direção a academia quando alcançou a esquina.
O dia ficara mais escuro, sentia-se sozinha mesmo rodeada de pessoas. Cada um se retirava para sua família, para os seus afazeres mais importantes antes do festival e ela estava ali, pulando de galho em galho mas nunca pertencendo a um lugar só. Revirou os olhos, tentando esquecer do vestido que Vikrum havia lhe dado. Aquilo não era como ter um parente por perto. A imagem de sua mãe surgiu em sua mente, assim como o dia que tentara fugir, mas sem sucesso.
— Você não vive numa jaula, Asara - ela dizia.
— Eu sei, eu não vivo - ela rebatia, evitando olhar para os seus olhos. - Posso correr o quanto eu quiser, ficar bem no limite e provar o que é ser livre, mas as "correntes" sempre me puxam de volta, não é?
Ela dizia, zombando das lendas que a mãe contava. O prisioneiro e as correntes, e como ele aprendera que elas eram a sua melhor companhia.
— Correntes foram feitas pra te manter longe da verdadeira ruína - ela dizia, encerrando a conversa.
"Eu vou saber o que aconteceu com você, pai". Ela dizia para si mesma, nas primeiras noites após a fuga. "Eu vou te econtrar".
Um arrepio percorreu o seu corpo, fazendo com que parasse para recuperar o fôlego. Havia a muito passado da academia e já estava metros acima do monte que sustentava a cidade, quase chegando ao limite. Ela olhou para trás, tentando descobrir o caminho que havia feito para voltar para casa, e viu o mar ao longe.
Os barcos já se preparavam para a queima de fogos, acendendo alguns em um teste. As explosões eram invisíveis, mas a fumaça que se seguia formava sombras enegrecidas que serpenteavam com o vento até sumir. Passou mais tempo do que esperava observando-as e se deu conta de que precisava voltar. Não queria mais ficar sozinha.


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