Bandana Vermelha escrita por supercritico


Capítulo 3
Uma Mensagem das Sombras




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Elas desceram a rua de ladrilhos, acompanhando o fluxo de pessoas que iam e vinham do círculo central da cidade. Era lá onde o festival começava e depois se espalhava, como sangue fluindo por um corpo. Era por isso que precisavam da ajuda de todos. Decorar a cidade com pinturas e bandeirolas entre os postes dava trabalho, mas ver o resultado sob as luzes das lanternas era recompensador.
— Você quer pintar ou cuidar das bandeiras? - perguntou Liana.
Asara observou as crianças sentadas no chão, pintando de azul claro e branco os blocos de pedra que formavam o círculo.
— Eu quero pintar - ela disse, indo em direção a um balde num canto e tirando um pincel grande de dentro. - Só de pensar em subir e descer essas escadas já sinto a dor de volta.
— Eu também prefiro - Liana confessou. - Os meninos são maiores, podem fazer isso mais rápido. Quanto a nós, somos mais delicadas. Preferimos a pintura.
— Não está falando sério, está?
— Acho que ás vezes você não me conhece de verdade.
Asara sorriu e mergulhou o seu pincel na tinta azul. É claro que não iriam pintar coisas magnificas, estavam apenas preparando o terreno para quem sabia o que estava fazendo. Só precisavam misturar o azul e o branco em algo que lembrasse nuvens para que os pintores profissionais entrassem em cena, maravilhando-os com imagens surreais.
Deslizar as cerdas sobre a pedra a acalmava tanto quanto a cor que estava usando, um azul claro como água. Deixou que a tinta respingasse em seus dedos e joelhos enquanto trocava de posição. As pessoas passavam, carregando cestas e rolos de bandeirolas, baldes de tinta e água, mas Asara estava absorta em sua tarefa. Estavam quase alcançando o outro lado do círculo quando o fim da tarde chegou, trazendo um amarelo cálido consigo.
— Acho que já terminamos - disse Liana, deslizando o antebraço sobre a testa. - Preciso me esticar.
Asara largou o pincel e se levantou também, observando o trabalho bem feito enquanto dobrava as costas. O azul parecia cobrir todo o seu campo de visão e pontos brancos quase transparentes saltavam em meio aos ladrilhos.
— Está ótimo - disse um homem que passou atrás dela, carregando uma escada. - Fizeram um bom trabalho.
— Obrigado - Asara respondeu, um tanto orgulhosa de si mesma. As outras crianças que ajudaram pulavam de felicidade ao ver o que haviam feito, recebendo elogio dos mais velhos. Ela precisava se lembrar de que, ás vezes, você não fazia certas coisas por obrigação ou para ter algo em troca. - Ficou realmente muito bom.
— Viu? Não é tão difícil ajudar. Poderia fazer todo o ano se quisesse.
— É, talvez - ela disse, mordendo o lábio. Apesar de fazer tudo aquilo sentada, ela estava exausta.
— Ainda temos trabalho amanhã, não esqueça - lembrou Liana e Asara quase se arrependeu de ter se oferecido para ajudar.
— É melhor que tenham mesmo bolinhos de peixe, se não vou acabar te matando.
— Só vai saber se for nos ajudar - ela provocou e se despediu da amiga com um aceno. Asara subiu a rua se distanciando dos grupos que se formavam perto dos postes. O sol se punha a sua frente, enorme e laranja, em uma explosão de calor. Observou o horizonte e viu uma frota de navios se aproximarem aos poucos. Eram os estrangeiros, prontos para atracar na cidade. Vikrum já estaria a espera deles, ela tinha certeza, então poderia sair para treinar com Tayton, já que as academias haviam encerrado a temporada devido aos festivais de fim de ano.
Andou até a casa de ensino onde Paco estudava e o encontrou com um grupo de crianças no gramado da frente.
— E aí, garoto.
— Sasara! - ele gritou o apelido que ela ganhou quando se conheceram pela primeira vez. Paco correu em sua direção. - Olha o que eu fiz.
Ele mostrou um colar feito de corda e conchinhas do mar.
— Ficou muito bonito - ela sorriu.
— Eu sei, né. A professora nos mostrou uma cesta cheia de conchinhas, pude escolher as que mais gostava.
— Isso é demais. Já quer ir pra casa?
— Papai está lá?
— Seu pai está no porto, só esperando aqueles barcos - ela o pegou no colo e apontou para o mar.
— Eles vem bem de longe, não é?
— Sim, trazem coisas bem legais - Asara disse, olhando para os barquinhos que se moviam lentamente no horizonte. Se pudesse ter um desses, já estaria cruzando o oceano em busca de seu pai. O homem que não via há mais de nove anos era quase um mistério para si e o motivo de ter sumido também. A mãe, que se recusava a contar, não media esforços para impedir que Asara não saísse de sua casa. Mas a garota fora esperta e quanda já tinha poder suficiente para se virar, ela escapou. Agora estava na cidade em uma situação estável e muito melhor do que pensava que poderia ter.
Mas não era o suficiente. A única coisa que lhe impedia de ter um barco como aqueles era o dinheiro. Precisava de muitas e muitas moedas de ouro. E já sabia como iria consegui-las.
Carregou Paco em suas costas até o caminho de casa e o largou em seu colchão de palha quando entrou, provocando risadas do garoto. Ela sorriu e saiu para o seu quarto, trocando para uma vestimenta mais leve. Quando apareceu na cozinha, Paco já estava cortando fatias de pão e queijo de cabra. Asara esquentou a água em um recipiente de metal e preparou um chá para os dois. Comeram enquanto observavam a luz do sol sumir da parede. Asara acendeu as lanternas coloridas da casa e do seu quarto antes de sair.
— Se precisar de mim eu não vou estar muito longe - ela disse para Paco.
— Vai para a academia?
— Sim.
— Eu sei o caminho.
— Se comporte - ela disse, deixando-o na sala entrertido com um jogo.
Saiu para a noite indo em direção a casa de Tayton. O garoto era um dos únicos que podiam abrir a academia sem precisar invadir e Asara sempre podia contar com ele para treinar. Ele morava em uma casa simples de madeira que dividia com outros garotos da academia. Eram como irmãos que viviam em bandos. Aquilo lembrava Asara os bons tempos que viveu quando fazia parte dos Bandoleiros.
— Ei, Tay - ela gritou para uma das janelas. Um segundo depois ele apareceu na porta.
— O que está fazendo aqui?
— Estava pensando em treinar, é claro.
— As aulas já acabaram.
— Eu sei, mas... Você sabe... - ela disse, levantando as sobrancelhas.
— Ah - ele lembrou -, deveria cobrar mais por isso.
— Nem pense nisso. Só me dê um desconto por ser sua melhor amiga.
— Faça uma corrida até lá e me espere - ele disse. - Chego em um minuto.
Ela concordou e iniciou a corrida até o prédio da academia. Ficava mais no alto então teve que fazer um esforço extra para conseguir chegar lá antes de Tayton aparecer atrás de si. Quando viu o enorme bloco de pedra ela pode se encostar na parede e descansar. Não podia perder a forma antes do torneio começar, pois sabia o nível de quem estaria ali competindo. Precisava ser tão afiada quanto uma adaga.
Tayton apareceu minutos depois enrolando uma faixa branca entre os dedos das mãos. Trazia no bolso da calça uma chave grande e deformada que abria o cadeado.
— Quer dizer então que está disposta a participar do torneio? - ele disse, abrindo passagem para ela.
— Sim. Não posso perder a oportunidade.
— Você é louca - ele foi a caminho de um baú em um canto e abriu, retirando uma caixa de pedrinhas de fósforo e acendendo-as contra uma tocha embebida em álcool. - Não sabe aonde está se metendo.
— Estou me metendo em um pote cheio de ouro, se quer saber.
— Cheio de ouro e espinhos - ele passou por todas as tochas na parede, acendendo-as com o fogo. - É arriscado se candidatar para o torneio das ruas. Não é como algo que a gente faz aqui, que ocorre tudo bem e conforme as leis. Ali só os loucos e selvagens se candidatam.
— Você já me disse isso.
— E não adiantou nada, eu sei. Não sei por que ainda estou disposto a te treinar pra isso.
— Por que acredita em mim.
— É um bom motivo - ele disse, sorrindo um pouco. - Quer uma luta normal? Sabe que esse tipo de coisa não acontece por lá né?
— Sei. Acontecia antes, mas de uns anos pra cá houveram mudanças - Asara repetia as palavras que seu amigo Bandoleiro disse para ela há certo tempo. - Ao invés de somente lutar, Lorde Skeller começou a propor provas e desafios.
— Ele não queria ser pego fazendo lutas em um lugar só então decidiu fazer desafios em diversos lugares, para escapar enquanto continuava com os seus jogos.
— Isso não é verdade.
— É claro que é, só contaram essa história para ele não se passar por medroso.
— Talvez sim, talvez não - disse Asara, pegando uma faixa branca de dentro do baú. - O que importa é que eu já me candidatei.
— Já, é? - disse Tayton, desviando do olhar dela.
— Sim, foi semana passada. Pelos próximos dias vou receber algo que vai me dizer o dia do recrutamento.
— Tem todo um processo, estou impressionado - ele dizia, fingindo uma completa surpresa.
— É, por isso preciso começar o treino. Não posso mais perder tempo.
— Tudo bem então, vamos começar logo com isso.
Tayton estava claramente infeliz com a decisão da garota, mas Asara permanecia certa do que queria fazer. É claro que ainda sentia um indício de medo ou ansiedade dentro de si, pois não havia como saber o que a esperava. Só pensava no dinheiro que precisava e em nada mais.
Quando já estava tonta e suada, ela parou para descansar. Seus dedos doíam e suas pernas queimavam, haviam trocado golpes um contra o outro por quase uma hora. Tayton lhe ensinara como derrubar alguém maior do que si usando o próprio peso do atacante. Ele não disse, mas já pensava em como ela iria se sair caso participasse do torneio.
— Acho que já terminamos por hoje - ele disse.
— É, eu não aguento mais ficar em pé.
— Quer que eu te arraste até em casa?
— Não preciso dos seus bons modos, Tay - ela disse, tomando fôlego e levantando-se. - Vou para casa dormir, amanhã tenho que ajudar Liana.
— Preparativos para o festival?
— Sim, eu prometi ajudá-la dessa vez.
— Nunca pensei que fosse ajudar nisso.
— Eu também - ela disse, mordendo o lábio. - Quer ajuda para apagar as tochas?
— Pode deixar comigo. Está muito cansada.
— Que bom que me entende - ela disse e se despediu dele com um aceno, indo em direção ao portão.
A noite parecia mais fria agora que seu corpo estava em chamas. Reduziu o passo para economizar o resto das energias que tinha. Ela seguiu pelo caminho mais rápido, que passava entre os becos e os fundos das casas. Quando era uma Bandoleira, aqueles lugares eram comuns para si, assim como os telhados, e parecia reconhecer quase tudo quando estava escuro.
A garota só não esperava ser atacada enquanto passava entre um cruzamento. Uma mão cobriu a sua boca enquanto outra deslizava algo para dentro de suas roupas. Ela tentou gritar, mas a sua voz saía apenas como um som surdo. A sombra que a atacava tocou um fio metálico em sua garganta, fazendo com que parasse de emitir sons imediatamente.
— Silêncio - sussurrou uma voz masculina. - Estou apenas seguindo a ordem do Lorde Skeller. Há um bilhete dentro de suas roupas, mas você só pode abri-lo de frente para o fogo. Assim que terminar de ler, queime-o imediatamente. Se não fizer o que manda, eu apareço novamente e acabo com você antes que possa fechar os olhos para dormir, está ouvindo?
Ela concordou com a cabeça, sentindo o coração diminuir o ritmo. Aquilo fazia parte do recrutamento, era apenas uma das formas que Skeller tinha de chegar perto dos seus Campeões.
— Eu vou soltá-la e vai seguir direto para onde mora. Vai fazer o que eu disser e daí posso ir embora.
— Tudo bem.
— Não pode falar comigo e nem pode falar para alguém que existo, está bem? - Ela concordou. - Vou lhe soltar, não fique de frente para mim. Siga andando até em casa.
Ela só balançou a cabeça e seguiu em frente, como ele dizia. Só queria chegar em casa e ler o bilhete que havia consigo, então se forçou a apressar o passo. Quando chegou ás portas de casa, virou a cabeça um pouco para trás, numa tentativa de ver se o mandante de Skeller estava por ali. Viu apenas sombras, mas sabia que ele estaria a observando. Ela entrou em casa e Paco não estava ali. Verificou o seu quarto e o encontrou já dormindo. Deslizou o pedaço de papel para fora de suas roupas e observou antes de abrir.
Havia um selo negro com apenas um circulo gravado. O papel era novo e parecia ser de alta qualidade. Um arrepio percorreu os seus braços. Ela quebrou o selo e leu o que havia escrito:
"Recrutamento amanhã durante a queima de fogos do festival".
Era só isso. Asara franziu o cenho, confusa. Por que todo esse drama para lhe entregar um bilhete que dizia apenas isso? Não seria mais simples se o próprio mandante a dissesse? Ela quase riu, mas decidiu que não queria questionar as regras que Skeller criava. Ele tinha os seus motivos e não precisava descobri-los. Queimou o papel e o soltou dentro de um recipiente, levantando-se para olhar pela janela. Uma sombra disforme permanecia parada na esquina, como um corvo. Asara se moveu para sair, e antes de perder toda a visão de fora viu a sombra sumir tão rápido quanto havia aparecido.


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