olhos novos escrita por TimeLady


Capítulo 1
bola de estresse


Notas iniciais do capítulo

Aviso: Katsuki e sua boca suja. Há o uso de uma palavra de conotação pejorativa para pessoas que apresentam deficiência intelectual, porém isso de modo algum reflete meu vocabulário/pensamentos no assunto.



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A primeira coisa que Katsuki nota quando ele pisca é que o mundo está embaçado e seu primeiro instinto é tentar ver se tem algo em seus olhos.

Ele pisca e esfrega as pálpebras com cuidado.

Depois ele nota que não há óculos sobre seu nariz e por um momento ele pensa que descobriu o porquê de tudo aquilo. Ah, lixo, onde estavam a bosta dos seus óculos? Ele tem certeza que-

Então uma frustração borbulha dentro de si de repente, poderosa e inevitável como uma panela de pressão, puxando todos os seus músculos juntos como uma mola recuada, tensa e há uma queimação forte, amarga no fundo da sua cabeça e dos seus olhos. As mãos que antes estavam tentando limpar seus olhos pressionam com força contra suas próprias pálpebras. Úmidas.

Ah. Ele está chorando.

“Pode parar com essa birra idiota, Katsuki.” Sua mãe o repreende, ríspida, de algum ponto acima de si. Sua mãe. Ele não está louco, mas sua mãe está ali e é estranho porque faz meses que os dois não se veem e ela ainda está brava por causa-

Ele abre a boca para retrucar, todavia um emaranhado de ruídos, híbridos de choro e raiva, saem em vez disso. Ele ainda não consegue enxergar, o mundo embaçado através de uma camada de água salgada.

“Você quebrou, agora vai ter que esperar até o seu aniversário pra ganhar um novo.”

Ela vira de modo resoluto e sai da sala. Katsuki sente uma frustração esmagadora o engolir, sufocando-o ao ponto de fazê-lo cair no chão – birra de criança. Olha para baixo e vê o boneco do All Might com o braço quebrado, sentindo raiva e tristeza e indignação violentas como o fim de mundo chegando na forma do brinquedo que havia perdido.

O sentimento mais desconcertante, entretanto, é não sentir a familiar queimação nas suas palmas.

Katsuki tem 3 anos e ainda não tem uma Individualidade.

Ele não entende.

Ele tem três e vinte e cinco anos e o choque do que significa ser os dois é como ter os dedos embaralhados em fios de lã e não saber onde um começa e outro termina. Como dois baldes de tinta esparramados juntos em um terceiro, mas que são incapazes de se misturar completamente e fazem Katsuki se sentir um pouco como o monstro de Frankenstein, tirando o fato de que ele não tem costuras na sua pele para indicar onde cada pedaço seu começa e termina.

Sua dentição não está completa, suas mãos ainda estão lisas de desuso e ele mal alcança a beirada da própria cama. Mas mais do que um adulto no corpo de uma criança, Katsuki se sente como um estranho híbrido das duas coisas.

A agonia da confusão às vezes é tanta que – como se fosse uma luta de verdade – um lado sufoca o outro em submissão e por um tempo ele é extraordinário confortavelmente um só.

Curiosamente, seu eu mais jovem que ganha mais frequentemente.

Katsuki não entende nada disso e mesmo assim é assustador o quão fácil é viver os dias, as preocupações maduras de uma vida sendo afogadas pela despretensão de uma criança. 

Ele não vive com seus pais faz quase dez anos, ao mesmo tempo que essa é a única casa que conhece.

Ele é capaz e prefere andar sozinho, mas seus braços se erguem às vezes por conta própria.

Ele se lembra dos apelos dos prazeres adultos enquanto que os apelos de uma criança o satisfazem.

Ele chora tão fácil quanto sente, uma gota de raiva ou tristeza o suficiente para transbordar uma panela de sentimentos que Katsuki está acostumado a controlar perfeitamente bem. De modo algum Katsuki se considerou alguma vez uma pessoa emocional – o sentimento raiva não conta, porque é apenas uma emoção e uma com o qual ele aprendeu a conviver tão bem quanto com suas explosões –, mas mesmo assim a velocidade com qual ele sente o deixa trêmulo. Katsuki não lembrava de sentir tanto assim quando era criança.

Em analogias de luta – porquê sempre será mais confortável pensar assim – são como socos no estômago vindos do nada que o fazem cair no chão. O lado bom é que, se as emoções são socos, pelo menos não deixam marcas roxas na pele depois. São rasas. Temporárias.

Katsuki está mais acostumado com feridas profundas o suficiente para abrir órgãos. Coisas que deixam cicatrizes e infeccionam.

Ele não sabe dizer qual é o melhor e o qual é o pior. É como um loop, na verdade. Um tira o balanço do outro.

O mais desconcertante, no entanto, continua sendo o fato que mesmo quando essas emoções o atacam repentinamente e não lhe dão tempo para sequer se preparar, muito embora seus dedos convulsionam com anos de hábito que fisicamente ainda não têm, suas mãos continuam secas. Na primeira vez que Katsuki fez isso tudo, desde o momento em que sua Individualidade se manifestou ele foi lentamente desenvolvendo uma fina capacidade de voluntariamente suar nitroglicerina, principalmente na palma das mãos.

Sempre existiu um limite de controle quando suas emoções se agitavam, é claro. Em especial a raiva, agindo feito um fusível extra sensível.

Ou talvez a raiva não fosse a mais proeminente das emoções e sim apenas a mais frequente.

Mas a ideia de ele ser capaz de gritar de raiva sem sentir a queimação nos dedos é bizarra. Alienígena até, e muitas vezes o faz encarar suas próprias mãos em espanto no meio de uma birra, para a confusão dos seus pais, já que absolutamente nada acontece.

“Ele ainda é muito novo pra sentir qualquer coisa,” uma vez memorável sua mãe diz, dias depois daquilo tudo ter começado, como se o médico sugerindo uma manifestação prematura fosse o idiota da sala.

O homem não reage ao insulto escondido, pelo menos não aos olhos de Katsuki. “A idade mais comum atualmente é aos quatro anos, mas nada nega a possibilidade de manifestações precoces. Katsuki-kun é uma criança avançada para a idade.”

Seu pai parece contente com a resposta, mas sua mãe visivelmente não concorda e dois continuem batendo de frente durante dias. Katsuki é obrigado a admitir que sua mãe realmente tem o melhor dos instintos na casa porque de certa forma ela está certa. Não é sua Individualidade, só a ausência dela.

Claro, não tem como ela adivinhar isso.

Não é, entretanto, por falta de tentativa. Sua mãe é persistente – que é um termo mais elegante para cabeça-dura – num nível que o relembra com força de quem ele herdou a maior parte das suas atitudes, e naquele período em que havia acordado (que ele reconhece como as férias do início do ano) ela faz da sua missão o observar. E delega quase todas as tarefas que envolvem sair de casa para seu pai, que, por sua vez, sabiamente decide não discutir.

Enquanto seu pai sai para fazer tudo que só pode ser realizado do lado de fora, Katsuki é arrastado pela casa da sua infância por sua mãe, que fica a instruí-lo sobre como abrir os milhares de caixotes espalhados pelos cômodos ainda meio vazios, ou apenas se senta do seu lado quando o deixa brincar. Em ambos os casos, ela o analisa ininterruptamente com uma expressão indecifrável.

Sua parte com vinte e cinco anos o impede de aproveitar os bonecos de ação como uma vez talvez tivesse aproveitado – sua disposição para imaginar aventuras heroicas apodrecida pela experiência real –, mas jogos e desenhos ainda conseguem hipnotizar seu cérebro com suas cores agressivas e filosofia de vida ingênua.

Quando as últimas opções não estão disponíveis e ele é deixado somente com um punhado de brinquedos e livros de imagens com textos ofensivamente simples, nada pode fazer de verdade além de encarar sua mãe de volta.

É enervante para dizer o mínimo, pois ela não faz questão de ser sutil e também porque Bakugou Mitsuki nunca foi tímida em expor seus pensamentos, mas até ela o fazer, ninguém sabe de verdade o que está se passando por sua cabeça. Os olhos iguais aos seus aceitam seu desafio sem pestanejar e há momentos em que são longos minutos com apenas os dois se olhando, ele tentando entender o que sua mãe quer e ela mais provavelmente dissecando cada reação sua.

Katsuki havia se deixado esquecer nos últimos anos que uma vez sua mãe havia sido considerada uma vilã, no seu país de origem. Porque e como, ele não sabe e duvida que um dia saberá. Não que ele realmente se importe, mas nesses momentos esse pequeno factóide da vida da sua mãe é mais crível, mais do que quando ela chora por causa de um dos seus desenhos ou teima em tirar vinte fotos de tudo o que ele faz.

Ele não está preocupado em ser descoberto – o que na verdade seria uma benção, pois o pouparia do tratamento de bebê – já que incompreensível viagem do tempo mental não é algo que se pode deduzir pelo modo que ele come seu tsukemono de daikon.

Porém, vigilância 24h não deve ser confortável para ninguém. Ainda mais com o modo que sua mãe periodicamente agarra suas mãos para analisar, em um gesto meio irônico e paralelo ao da sua vida passada quando ele ainda não sabia controlar sua Individualidade e vivia, por consequência disso, com as mãos queimadas.

Dessa vez elas estão sempre normais, para a sua grande frustração e da sua mãe também.

Uma semana depois da visita ao médico sua mãe lhe dá uma bola de estresse, em uma das raras ocasiões em que sai da casa em vez do seu pai. Sem contexto, repentinamente. De plástico e vermelha, é normal tirando o fato de ser pequena o suficiente para caber na palma da sua mão infantil.

“O que você quer que faça com isso?”

Sua mãe cruza os braços. “Experimente.”

“Eu não estou estressado. Isso é idiota.”

Seu pai faz um som engasgado de onde está no sofá, fingindo ler um livro. “Katsuki, linguajar!”

Os dois o ignoram. “Só experimente. Ficar com as mãos tensas desse jeito não deve ser agradável.”

Cerra as sobrancelhas numa careta e encara sua mãe diretamente nos olhos, quem sustenta seu olhar de modo despreocupado pelos vários segundos que ele endura. No final, ele decide ceder apenas para ter paz, e começa a apertar a bolinha ritmicamente.

Sua mãe sorri e o deixa sem extrema vigilância pelo resto do dia.

Depois disso ela passa a lhe entregar o objeto toda vez que ele mostra sinais de incômodo com suas mãos – algo extremamente frequente – e sua precisão é tanta que Katsuki passa a carregar a bola para evitar o constrangimento da sua mãe surgindo do seu lado com o objeto, tão rápida e eficaz como se invocada por um ritual satânico. No final, embora a ideia no início tenha lhe parecido retardada, ele acaba se apegando porque é algo útil com o qual distrair seus dedos, pelo menos até o momento em que ele puder substituí-la pelas suas explosões.

Seu pai parece conformado, uma visão relativamente normal, e sua mãe sorri nas primeiras vezes que o pega apertando a bola cruelmente sem ela precisar oferecer.

Ela continua o observando, mesmo depois disso. Katsuki com o tempo se acostuma e deixa de se importar, embora continue a notar toda vez.

Quando ele enfim rasga a bola aos pedaços num acesso de fúria, sua mãe o compra uma nova no dia seguinte. Dessa vez mais dura e maior, o que torna sua capacidade de destruí-la menor por um tempo.

No final, a bolinha de estresse acaba se tornando seu único objeto inteiramente substituível. Ele não ganha outro boneco ou outro travesseiro ou outro jogo, mas as bolinhas vermelhas continuam voltando.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Até o próximo capítulo!



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