Sobre cores e horas escrita por Julia


Capítulo 19
Capítulo 19




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Joan:

Eu havia esperado tanto pela volta dela que deixei minha mente criar os encontros de mil e uma formas, mas nunca pensei que seria daquele jeito. Ontem a tarde quando a vi, ela estava dormindo, ou ao menos parecia estar. Nossa empolgação faz com que falemos todos juntos e isso a deixa atordoada e confusa, então ficamos um no quarto por vez para não incomodá-la. Liam saltava ansioso, desesperado para vê-la acordada e mandou que eu não demorasse. Ele foi o único que não pareceu chocado com o estado físico dela. Ou talvez ele apenas consiga ignorar isso melhor do que nós. Ellen disse que ela fala pouco, está com dor de garganta e que eu deveria ter cuidado ao toca-la. Talvez ela devesse ter sido mais especifica, porque quando me aproximei de sua cama para lhe dar um sutil beijo na cabeça fui retribuída com um forte tapa no peito.

—É Joan! Poxa, não sabia que você tinha tanta força.

Ela tentou abrir os olhos sem sucesso, apesar da penumbra do quarto. Ajudei ela a encontrar os óculos escuros.

—Não me assuste. – Disse em um tom de voz rouco.

—Parece que você está de ressaca. – Falei ao sentar na poltrona ao seu lado.

—Se um dia eu ficar bêbada, te conto se a sensação foi a mesma.

—Não será comigo irmãzinha. Eu sou uma nova mulher agora. Sou 100% livre de álcool agora.

—Talvez eu ainda esteja sonhando. – Ela sorriu suavemente.

—Eu andei fazendo umas merdas quando você não estava. Agora estou presa em casa como punição/ recuperação. – E ao terminar de falar percebi o quão estupida foi a escolha de palavras.

—Eu te falei que um dia você ia se dar mal. Como está fazendo com a faculdade?

—Eu estou em casa faz uns meses. Larguei a faculdade pouco depois que você... Mas talvez eu volte, não sei ainda.

—Pelo menos Liam não ficou sozinho naquela casa.

—Eles estão mudando... Aos poucos. As coisas ficaram muito estranhas sem você.

—Sim, as coisas ficaram bem estranhas para mim também.

—Eu estou muito feliz com a sua volta. Todos nós estamos. Liam está louco para falar com você. Não parou de perguntar quando você vai acordar.

—Agora não, eu não quero conversar. Quero dormir. Mais tarde, ok?

—Quer que eu saia?

—Tanto faz. – Ela jogou os óculos na mesa e virou de costas para mim.

Eu queria ficar, mas o estado físico dela me deixava mal. Sai e encontrei os três em pé conversando com um médico, quando me viu, Liam veio correndo perguntando se já poderia entrar.

—Ela voltou a dormir.

—Ahhh. Eu não posso acordar ela?

—Não. Ela está com dor de garganta, lembra quando você teve? Só queria ficar deitado dormindo?

—Lembro. – Ele respondeu desanimado.

—Como foi? – Carl perguntou ao se aproximar.

—Diferente do que eu imaginei.

Na segunda-feira, mesmo contrariada, Carl me acordou cedo para que eu fosse ficar com Ellen e Alex no hospital.

—Por que não posso ficar em casa? Alex não quer conversar com ninguém.

—Vai fazer companhia para sua mãe. Além do mais, não confiamos em você ainda.

—Depois de todo meu comportamento exemplar nesse último mês?

Ele me olhou irônico. Depois voltou a olhar para frente e soltou uma risadinha.

—Você só pode estar de brincadeira.

—Mesmo que eu quisesse comprar, vocês me tiraram todo o dinheiro. Teria que assaltar o cofrinho do Liam, mas deve estar vazio.

—Pare de reclamar. Credo, você é tão mal-humorada de manhã?

—Eu odeio acordar cedo.

—Eu odeio o seu humor. – ele abriu o porta luvas e jogou um maço de cigarro no meu colo.

—Leva isso com você. Eu não quero voltar com esse vício.

—Ah pelo menos uma boa notícia. Os meus estavam no fim.

—Eu deveria brigar com você por fumar.

—E eu deveria brigar por você alimentar meu vício.

—Não! Não vai infestar meu carro com esse cheiro. Apague!

—Eu não posso fumar no hospital! – Falei com o cigarro entre os lábios.

—Não é problema meu. Mostre esse seu comportamento exemplar e pare com isso também. Quem sabe você não ganha algumas regalias.

Depois de chegarmos ao hospital, ele foi até o quarto dela e eu fui para a cafeteria gastar os míseros trocados que ele me deu. Fiquei fantasiando que bebia whisky quando na verdade era café frio. Que situação. Queria tacar um foda-se e ir encher a cara, mas isso seria o caminho fácil. Carl tinha razão, era hora de amadurecer. Ellen estava a ponto de desmoronar de novo. Se eu me mantivesse sóbria era um problema a menos para ela. Meu celular tocou, era um número da Flórida. Atendi e era minha avó.

—Vó? A senhora tem meu número desde quando?

—Joan querida, você está em casa?

—Não, estou no hospital.

—Bom, acabamos de chegar no aeroporto. Qual o endereço do hospital?

—Vocês estão aqui?

—Sim.

—Meu deus, minha mãe sabe disso?

—Não. É uma surpresa. Ande, fale logo o endereço.

—Mas vocês vêm direto para cá?

—Existe alguém na casa que possa nos receber?

—Não...

—Então vamos direto sim. Até logo.

Eu não sabia se falava ou não para minha mãe. Fiquei analisando as possíveis reações que ela teria caso eu contasse agora ou deixasse que ela descobrisse por conta. Por fim conclui que ela estava até o pescoço de surpresas e que mais uma poderia provocar algum ataque de pânico ou coisa do tipo, ainda mais essa surpresa. Voltei ao quarto para contar. Ela revirou os olhos.

—Eu não tenho um segundo de paz. Em quanto tempo eles chegam?

—Acho que uma meia hora.

—Eu preciso de uma hora Joan. Os enrole por 30 minutos por favor.

—Mas mãe nós estávamos indo ficar com eles em alguns dias se não tivessem encontrado a Alex. Por que tudo isso?

—Porque eu teria uma semana de preparo psicológico. Agora eu tenho só 30 minutos e como você pode ver eu estou esgotada. Ajude a mamãe e me de meia hora a mais. por favor.

—Tudo bem.

—Mas me mande mensagem quando estiver com eles.

—Ok.

Fazia quase um ano que não os via, mas foi muito fácil reconhece-los, mesmo que de longe. Ver minha avó era como ver minha mãe envelhecida 20 anos, eram idênticas para o desespero de Ellen. Entraram com cara de perdidos e com a típica expressão carrancuda dos dois. Nos cumprimentamos e fingi estar perdida, até que ele já irritado, resolveu pedir informações e eu decidi arrasta-los para a cafeteria fingindo estar morta de fome. Começaram a me questionar sobre o estado da Alex e eu tentei dar o mínimo de informações possíveis, já que eles adoravam palpitar em tudo que fosse relacionado com a nossa família, e provavelmente deixaram escapar algum comentário desnecessário na frente da Alex. Depois de 35 minutos eles começaram a ficar impacientes e eu tive que leva-los até o quarto.

—E Carl já saiu de casa?

Não entendi a pergunta.

—Para trabalhar hoje sim...

—Não, não. De casa mesmo. Por causa do divórcio.

—Divórcio?

—Desculpe, eu pensei que você já soubesse nessas alturas. - Minha vó fez cara de surpresa.

—Não! Desde quando?

—Desde o seu... Acidente...

Entrei em choque. Apesar de fazer muito sentido. Carl dormindo no quarto de hospedes, passar o natal na Flórida. Como fui burra, estava ali na minha frente. Quando eles iam me contar? Ao abrir a porta do quarto para minha total surpresa, minha mãe estava maquiada e arrumada. Quase parecia a mesma Ellen de antes de tudo acontecer. Gostaria de começar a interroga-la de porquê uma informação tão importante como aquela tinha sido escondida de mim, mas não antes de deixa-la sofrer um pouco sozinha com meus avós. Liguei para meu pai.

—Aconteceu alguma coisa Joan?

—Sim, muitas na verdade. Meus avós estão aqui. E descobri por eles que vocês vão se separar.

—Que?... Ah?... Espere um pouco. Os pais da Ellen estão aí? É isso mesmo?

—Sim!

—Onde você está?

—No hospital é claro. Quando vocês iam me contar? Eu merecia saber.

—Do divórcio? Ah... Joan é uma história muito longa para falar pelo telefone. Ficamos adiando, por que não sabíamos como contar. Mas agora você já sabe. Não é algo tão surpreendente afinal. Agora eu preciso ir. Na hora do almoço eu apareço aí.

E desligou. Fiquei vagando pelo hospital afundada em pensamentos sobre o divórcio deles. Tudo bem, eu sabia que eles andavam brigando, mas divórcio? Me senti como uma criança desamparada. Queria alguém para conversar. Minha terapia era daqui a dois dias. Meus amigos da faculdade estão há quilômetros daqui e os da escola são um bando de imbecis. Eu queria alguém agora. Mesmo que Alex quisesse conversar, ela não precisa desse tipo de preocupação. Eu estava muito frustrada. Era quase uma da tarde quando Carl finalmente resolveu dar o ar da graça. Percebi que havia quebrado um recorde pessoal. Passar mais do que 2 horas em intensa frustração sem ingerir uma gota de álcool. Me senti muito Alex. Lidando com os problemas de forma certinha. Não, eu ainda estou sendo egoísta, passei a manhã fugindo dela para lidar com os meus problemas. Inferno, eu não dou uma dentro.

—Por que demorou tanto? – Perguntei ao encontra-lo na recepção.

—Não estou com vontade de ver meus sogros.

—Ex-sogros agora não é mesmo?

—Ah Joan... Nem eu entendi a situação, como iriamos te contar uma coisa dessas com você naquele estado?

—Foi ela que pediu a separação?

—Foi.

—Ela quer estragar com tudo!

—Não... Não faça isso. Ela tem os motivos certos. Ela está muito preocupada com você. E já tem os problemas dela, não fique com raiva da sua mãe por uma coisa que é muito mais nossa do que sua.

—Isso me afeta e muito, devo então ficar com raiva de você?

—Isso não muda nada. Mas não posso controlar seus sentimentos.

—Como vai ser isso? Onde vamos morar?

—Calma.

—Que calma pai? Como eu posso ter calma?

—Estávamos começando a decidir as coisas quando sua irmã foi encontrada. Isso deve mudar tudo, pelo menos por enquanto.

—Vocês já tentaram conversar sobre voltar?

—Eu tentei, sua mãe está irredutível, você viu que eu estou no quarto de hospedes, e agora com os pais dela aqui, eu não sei como vai ser.

—Ela fica estranha quando está com eles.

—Eu sei... Thomas não vê a hora de me ver para começar a me alfinetar. Mal posso esperar.

Ficamos em silêncio.

—Foi ver sua irmã?

—Não. Ela está tão diferente...

—Sim...

—Pai eu estou muito cansada. Eu estou cansada de tudo. Por que as coisas se tornaram tão complicadas?

—Eu me sinto assim também. Mas temos que ser otimistas, ela voltou isso é ótimo.

—Você sabe que não vai ser ótimo. Olha o estado dela. As merdas que eles fizeram com ela. Ela nunca mais vai ser a mesma.

—Eu sei. – Ele bagunçou os cabelos.

—Ela ficou fora quatro meses e a casa veio abaixo...

—É... Quer ir lá fora? Preciso muito acender um cigarro antes de entrar naquele quarto.

—Ué, e aquele papo sobre parar com esse vício?

—Joan, parte do papel de ser um adulto de verdade é ser hipócrita. Mas como pai eu devo te orientar. Faça o que eu digo, mas não siga o meu exemplo entendeu?

Alex:

A euforia de estar de volta durou pouco tempo. A realidade da qual eu fui retirada voltou com tudo em um tempo curto demais para que eu conseguisse lidar e eu fui esmagada por ela de tal forma que de repente eu estava novamente presa ao chão. Só que de uma forma muito mais brutal. Tantas dúvidas para serem respondidas. Tantas novidades para saber. Mas eu simplesmente não conseguia encontrar forças de abrir a boca e perguntar e mesmo que pudesse, eu não prestaria a atenção. Ouvi um par de vozes familiares, elas falavam comigo, porém suas vozes iam se distanciando de mim ao longo das frases. Eu estava cansada demais para responder fiquei quieta até cair no sono novamente.

—Alex? Alex? -Era minha mãe ou a memória de uma alucinação sonora? - Alex? Responda. Você está com dor ou algo assim?

—Não...

—Por que está gemendo? Precisa de alguma coisa?

—Meus óculos.

—Por que ela precisa disso aqui dentro? Já está escuro.

—Depois eu explico pai.

Na TV passava um comercial de creme para espinhas. Lembrei que sentia a pele do meu rosto completamente empipocada, tinha evitado o espelho durante esses dois dias, mas talvez fosse a hora de verificar os estragos com maior atenção. Levantei em direção ao banheiro, Ellen me seguiu com os olhos apreensiva. Fechei a porta e dessa vez acendi a luz. Me assustei com o que vi. Era muito pior do que eu imaginava. As falhas no cabelo, o rosto marcado, inchado. Puxei a camisola hospitalar e observei os hematomas, os ossos a mostra. Lembrei das fotos de meninas anoréxicas. Eu poderia tranquilamente me passar por uma delas, ou por alguém com uma doença terminal. Se antes minha autoestima não era das melhores, agora ela definitivamente havia morrido. Isso que eu nem via com clareza as cores das marcas, os óculos eram de uma lente muito escura. Fechei o punho e joguei com força conta o espelho que se quebrou em 6 pedaços pelo piso branco do banheiro. O chão e os cacos tinham gotas de sangue e ainda refletiam meu horrível reflexo. Entrei no box ainda de pijama e com o soro conectado ao meu braço, abri bem o chuveiro, a água estava gelada e fiquei ali tentando congelar todo o resto além do corpo. Quando não pode mais aguentar o frio, sai e sentei em cima da tampa do sanitário. Agarrei com vontade um dos pedaços e o observei. Ainda refletiam meu reflexo horrendo. Segurava com tanta força o caco que feria ainda mais a mão já cortada. Percebi que havia levado uma de suas pontas muito próxima ao pescoço, mais precisamente a jugular. Certo Alex, se você fizer certo, tudo acaba. Se fizer errado, você piora as coisas.

—Alex me responda! Vou chamar as enfermeiras para abrirem a porta! – Ela batia sem parar na porta.

Volte a realidade Alex. Eu mal tenho forças de ficar em pé por muito tempo, quanto mais de quebrar um espelho. Quem sabe depois de alguns meses de academia. E eu não sei onde fica a jugular, não com a precisão cirúrgica que eu precisava, mesmo que soubesse, antes mesmo que o sangue começasse a escorrer pelo chão, o banheiro estaria recheado de enfermeiros prontos para estancar o sangramento. Seria só mais um corte para a coleção de deformidades do meu corpo. Sai do banheiro pingando água.

—Por que você resolveu tomar banho com a camisola... E de óculos? -Ellen me perguntou assustada.


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