Sobre cores e horas escrita por Julia


Capítulo 12
Capítulo 12




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Joan:

               Em 30 minutos começaria a reunião. Mas não tenho coragem de voltar. Eu tentava há mais de um ano e meio me manter sóbria, mas eu sempre acabava jogando tudo fora. Eu era uma das mais novas do AA. Ouvir as histórias de como aquelas pessoas desgraçaram a vida delas era uma forma cruel e egoísta de me manter limpa. Mas não estava funcionando tão bem nos últimos meses. Antes eu conseguia ficar uma semana, duas, uma vez fiquei três meses inteiros sem beber. Agora eu bebia todos os dias. Se antes, eu me sentia melhor do que eles por ter percebido mais cedo que a maioria meu problema, agora eu era igual a eles. E isso não tinha valor nenhum para mim.

               Aí eu fui para a faculdade. Eu achei que me tornaria mais responsável, mas o que aconteceu foi o contrário. Sem ninguém para me controlar eu bebia cada vez mais descontrolada. Reprovei em tudo no primeiro semestre. Depois que ela desapareceu, voltar para a faculdade significou passar a primeira semana inteira bêbada no meu quarto. Percebi que não havia propósito para isso. Eu tinha que voltar para casa e tentar me manter sóbria, o que se mostrou inútil.

               Antes eu conseguia ter algum controle. Não bebia nada da casa, comprava as minhas, escondia e ninguém desconfiava. Estava tudo certo, mas agora eu não consigo mais. Comecei com uma vodka esquecida lá no fundo, levou poucos dias para termina-la. Enchi de água e álcool de limpeza. Depois fui para um whisky, e depois o enchi de chá. Em menos de um mês havia bebido metade daquele bar dos meus pais. Sinto arrepios quando eles chegam perto. Torcendo que peguem uma garrafa que eu ainda não toquei.

               Eu precisava de ajuda, mas não conseguia dizer a eles, estava me ensaiando desde a minha volta. Mas a única coisa que eu faço é jogar a merda no ventilador. Mas como eu vou chegar neles se a única coisa que eles fazem é brigar? Talvez eles não possam me ajudar. Me sentia com 12 anos de novo.

E agora essa de jantar. Não jantava sozinha com eles desde meus 6, talvez 7 anos. Andei um pouco pela casa como se não estivesse realmente lá, apenas observando. Ela arrumando a mesa, ele cozinhando. Uma amostra do que teria sido se não fosse Alex nem Liam. Sentia um misto de culpa e prazer, teria sido interessante. Ser o centro das atenções da casa o tempo todo não só em um jantar aos 20 anos, mesmo que eu soubesse que não seria assim. Teria sido imensamente mais solitário sem meus irmãos.  Ela continuaria distraída com suas obras e ele voltaria tarde como sempre.

—Se está pensando um jeito de fugir desse jantar já te digo que é tarde demais.  – Ele disse sorrindo sentando no sofá ao lado do que eu estava.

—Já está pronto?

—Está no forno. Estou cuidando o tempo. – Ele bebia vinho.

—Você quer uma também? – Ela me ofereceu uma taça.

—Sim. – Tentei fingir desinteresse, tentando controlar os goles para ganhar tempo, mas o vinho descia deliciosamente. Eu já estava na terceira taça enquanto eles ainda tomavam a primeira. Ao fundo tocava there is a light that never goes out e eu me senti melancólica. Olhei para o fogo na lareira, quase fiquei à vontade, e aí olhei para os dois, sentados com uma distancia grande entre eles no sofá, também não pareciam muito confortáveis.

—Só nos três... Não é algo muito comum... – Ellen começou. Na verdade, era. Era bem comum, Eu, Alex e Liam. Nós três.

—Pois é. Não temos sido muito unidos. E pelo visto isso não vai acontecer hoje já que vocês despacharam o Liam.

—Precisamos conversar.

—Eu já sei sobre o que é.

—Então nos explique suas atitudes.

—O que tem para explicar? Todo mundo bebe para mais de vez em quando. Aposto que vocês bebiam mais que eu.

—Não é exatamente por aquele dia.

—É o que então?

—A união de você voltar bêbada, pegar o carro sem minha autorização, sair sem dar satisfação, gritar comigo, largar a faculdade.

—Você também largou a faculdade.

—Porque meus pais não me deram outra opção. Você sempre pode fazer o curso que queria.

—Eu não consigo me concentrar com toda essa situação.

—E acha que agir assim vai te ajudar a resolver?

—Eu não sei.

—Eu sei que você não sabe. Precisa parar e pensar Joan. Suas escolhas têm consequências. Tem uma criança em casa. – Carl falou.

—Agora você se preocupa com ele? Gritou com ele aquele dia da briga. Ele veio para mim chorando.

—Eu estava nervoso...

—E aí não pensou não é pai? Muito fácil me falar sobre dar o exemplo.

—Não estamos aqui para discutir com você nossas brigas de casal. Estamos aqui para falar de você.

—Querem o que? Um pedido de desculpas? Desculpe por não agir de maneira exemplar.

—Prefiro que comece a agir de maneira mais sensata. Você pensa em voltar a faculdade?

—Talvez.

—E trabalhar? Poderia arranjar um estágio como fotografa, ou algo do tipo. Se não quer mais nada da área que estudava.

—Eu coloquei minha câmera para vender.

—Por que isso? Você ama fotografia!

—Não, eu não amo, é algo que eu encontrei para poder me aproximar de você. Eu ainda não encontrei a minha paixão, mas eu posso dizer que a fotografia não é uma delas. É algo que eu tive que treinar muito, não é um dom, é prática. E eu já estou cansada disso. Por que parece que se não formos artistas não somos bons para você. Liam está de prova. Ele não é nem um pouco artístico e você nem da bola para ele. Nenhum de vocês.

—Estou chocada. – Ellen me olhava atônita.

—Não é só você que está sofrendo com a situação Joan.

—Não estou falando de algo recente. Vocês não ligam para a gente. Isso é um fato. Ligam menos agora que a filha perfeita sumiu. E sobrou a filha problemática. Então que se foda não é?

—Está distorcendo as coisas. – Ellen me olhava seriamente.

—Estou falando verdades incomodas que vocês não conseguem aceitar.

—E você não consegue aceitar que tem que começar a agir como uma adulta e não como uma adolescente mimada que quando escuta um não sai batendo a porta! Você vai voltar a faculdade no próximo semestre e vai se dedicar como nunca ou começar a trabalhar. Você tem duas opções! – Carl falava em um tom próximo ao grito.

 -E se eu não fizer nada? Vai me expulsar de casa? Vou ter que morar com meu namorado na casa dos pais dele? Fazer três filhos que irei ignorar, comprar uma casa grande e fingir que sou feliz? Ok pai entendi o recado.  – Saí da sala e fui para meu quarto. Sem fome, mas morta de sede.

Alex:

               Tirando o cheiro de mofo que tem esse lugar, ultimamente tenho sido presenteada com o cheiro de lenha. Lenha queimada, o que lembra a casa dos meus avós no inverno, eu fui poucas vezes visita-los nas férias, qual era minha desculpa? Falta de tempo que não era. Será que ainda estou de férias? Melhor não pensar. Eles devem estar muito tristes. Gosto tanto deles, como será que reagiram quando souberam que eu nunca mais voltei? E meus pais? Será que eles pensam em mim o tanto que penso neles? Não lembro de ter me sentido tão triste assim. Acho que não tem ninguém feliz com a situação. Talvez só eles. Descobri que posso diferencia-los pelo cheiro asqueroso de cada um e pela quantidade de calor que eles exalam. Tenho certeza que um deles é gordo e o outro mais magro. O magro fede a suor. O gordo cheira a perfume barato e roupa mal lavada. As vezes tenho vontade de vomitar quando sinto a vibração do chão e cheiro deles se aproximando. Não que eu esteja cheirando bem. Estava calor o dia que me levaram, eu havia suado muito e banho não é sequer a prioridade deles, que dirá para mim. Minhas costelas estavam muito fáceis de sentir com o toque. Achei que conseguiria livrar meus pulsos estando mais magra, mas não. E mesmo que conseguisse ainda teria o problema da máscara trancada com cadeado.

               O cheiro da lenha voltou. Talvez tivesse uma lareira por perto, mas não tão perto. Meu corpo estava todo arrepiado, minhas mãos e pés gelados confirmavam que as férias acabaram, eu sentia muito frio para estarmos em agosto. Isso quer dizer que provavelmente perdi o aniversário de Liam. Será que faz tanto tempo assim que estou aqui? Lembrei a música favorita dele no momento. Ele tocava sem parar quando estávamos juntos. Senti falta de cozinhar com ele, de dançar enquanto cozinhávamos e de comer a comida que queimava por que esquecíamos ela no fogo. Ele deve estar comendo muito doce agora que estou fora. Saudade do meu quarto. Principalmente da minha cama, minhas costas doem de dormir no chão. Eu gostaria de não pensar tanto nas coisas que eu deixei para trás porque me afundo ainda mais, por outro lado, se eu não fizer isso não me sobra nada além de dormir e sonhar que estou entre as coisas que deixei para trás. Por que eles me mantêm desse jeito? Se eu pudesse fugir já teria fugido, não preciso dessa coisa na minha cabeça. Me conformaria de voltar a ver e ouvir. Não suporto mais meus sons internos e as alucinações sonoras. Toquei a máscara para ter certeza. Sim eu ainda estava com ela. Só poderiam ser alucinações sonoras todos esses sons estranhos que eu ouvia.

Não ter uma noção do tamanho da sala/quarto, qualquer que seja o lugar onde eu estou presa faziam com que eu me sentisse desnorteada. Porém, as correntes que prendiam meus pulsos, além de serem pesadas eram um lembrete constante da minha condição de subjugada. A máscara além de sufocar e me privar de coisas são básicas, como os sentidos, tinha um poder muito grande de me humilhar. Como se me rebaixasse a uma categoria abaixo da humanidade. Alguém tão insignificante que além de não ter direito de se movimentar, não tem o direito de ver, nem ouvir, muito menos falar. Um cachorro pulguento de rua está acima de mim nessa categoria. Até que ponto minha personalidade permaneceria ali? Estar tão numa condição tão cruel virava a cabeça de qualquer um. Eu estava lutando, mas não sei por quanto tempo mais poderia aguentar.


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