Solitude escrita por Lillac


Capítulo 18
Às cinzas


Notas iniciais do capítulo

Um pouco mais atrasada do que o prometido, porém acho que conta, né? XD
São oito da manhã, eu ainda não dormi e portanto não revisei ainda e.e se encontrarem algum errinho de português por favor relevem (já já eu reviso) ♥
Espero que gostem!
Um pequeno lembrete: a fic contém cenas de violência relativamente fortes. Eu acho que todo mundo já sabe disso, mas não custa reforçar.



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Annabeth não gostava de mentir para si mesma.

Quanto mais uma pessoa fazia isso, maiores eram a possibilidades de perder a linha de pensamento – de mergulhar tão fundo em suas próprias convicções fantasiosas e esquecer o que era de fato real. Quem ela era de verdade. E se havia uma coisa que ela não estava disposta a perder, isto era sua personalidade, sua única arma, até onde podia compreender.

E, ainda assim, ela disse a si mesma que a sensação do sangue ainda morno respingando em seu tornozelo não a enjoava.

Porque ela não tinha tempo para sentir-se enjoada. Não tinha tempo para sentir remorso, ou culpa ou qualquer coisa. Tudo que ela havia feito fora causar uma distração.

O quão bem ela poderia usar isso dependia do que fizesse agora.

Por esse motivo, ela tirou o dedo do gatilho e apertou a pistola com mais força, tentando dizer para si mesma que não estava mentindo, não estava tremendo, não estava-

— Annabeth — uma mão fechou-se em torno do antebraço dela, quente, macia e confortante.

Ela queria abraçar Percy naquele mesmo momento, mas não o fez. Não enquanto as vidas de todas aquelas pessoas ainda estivessem em suas mãos.

No breu completo, ela mal conseguia distinguir a face de Percy. Queria imaginar o rosto dele, preocupado, aflito – expectante. No aguardo de alguma ideia brilhante que fosse tirá-los daquela enrascada.

O único problema é que Annabeth não tinha nada.

— Cadê você, sua pirralha de merda? — Ares rugiu, e Annabeth não precisava ver para saber que ele estava completamente fora de si agora — Está com medo?! Não tem coragem de me enfrentar?

— Eu não tenho medo do escuro, Ares — Annabeth vociferou de volta. E, num tom ainda mais alto, gritou: — Todo mundo, para fora do refeitório! Antes que esse maluco psicopata tente mais alguma coisa!

— Soldados, guardem a porta. Ninguém sai desse inferno até eu mandar!

As pessoas se moveram. Annabeth queria ter alguma forma de ver, porque não conseguia dizer se eram seus amigos fugindo ou os soldados bloqueando as portas. Ou ambos.  

— Eu gosto do jeito que você pensa, pirralha — Ares enrolou a palavra “gosto”, como se estivesse tentando dar ênfase —, mas sabe o que é? Você é muito inteligente, mas só está nesse lugar há um mês.

Um calafrio percorreu a espinha de Annabeth. Ela sentiu Hazel apertando sua mão com mais firmeza.

— Essa base é forte, é resistente... — a voz de Ares parecia deslizar pera escuridão, alcançando seus ouvidos — e antiga.

Um milhão de sirenes ressoaram em sua cabeça, e ela deu graças aos deuses por Percy estar segurando-a no lugar, porque o chão pareceu escapar de seus pés.

Ela lembrava-se dos primeiros dias na base: mesmo com tudo o que estava acontecendo, Annabeth jamais permitiria a si mesma de ficar em um local que não conhecesse bem. E enquanto Percy estivera ocupado com Rachel e Grover, ela havia feito sua pesquisa. Conhecia cada parte da base militar como um dia conhecera a escola que estudara. Sabia que haviam três portões – guardados por arame farpado e cercas elétricas. Mas o equipamento de segurança era novo, recém-equipado pelo que ela havia observado. O que queria dizer que havia sido implantado não planejado.

Dois segundos atrás, o sistema de energia antiquado parecera uma mão na luva. Ela só havia precisado estourar uma lâmpada para que o sistema em série fizesse o trabalho de apagar as outras.

Agora?

Annabeth percebia que havia cometido um erro – um grave, grave erro.

Ela havia dado essa informação à Ares.

— Lawrence e Rodríguez, para a sala de comando — ele ordenou, calmamente, e Annabeth só conseguia pensar em como ele não havia ainda desmaiado com todo o sangue perdido. Ares era incrivelmente resistente à ferimentos? Ou havia mais alguma coisa, algum detalhe sobre o vírus, que ela ainda não havia descoberto?

— Parados! — Annabeth levantou a pistola, mas ela não sabia para onde apontar.

— Você pode atirar, se quiser — Ares riu. — Pode atirar quantas vezes quiser. Eu aposto que isso vai ajudar você.

É, Annabeth não era mesmo fã de ironias. Ao menos, não quando saíam da boca dele.

Sendo completamente honesta, ela não sabia o que fazer. Por um lado, sabia que precisava impedir aqueles oficiais de chegarem na sala de comando a qualquer custo, por outro... não podia atirar a esmo.

(E havia uma terceira, mais insistente parte de si, que lhe dizia que não era apenas isso. Que Annabeth não queria ser forçada a atirar. Não queria ver um buraco sendo aberto no crânio de alguém, mesmo se esse alguém fosse Ares. Não queria sentir a poça de sangue espesso se espalhando sob seus pés).

Annabeth não era uma assassina.

Ela não era.

Certo?

Ela só estava fazendo aquilo porque, porque se não fizesse, então todos-

— Annabeth — Percy chamou, apertando seu braço um pouco mais insistentemente.

Ela inspirou, calafrios percorrendo todo o seu corpo. Empurrando seu conflito moral para o fundo de sua mente – um lugar que, com sorte, poderia visitar depois e permitir-se ser miserável sobre suas péssimas escolhas.

Naquele momento, ela precisava sair dali. Preferivelmente, com sua consciência e crânio intactos.

Queria dizer “eu não quero fazer isso”. Ou ao menos olhar para os rostos de seus amigos e pedir desculpas pelo que estava acontecendo. Mas ela não tinha escolha (e nem luz).

— Quando eu gritar... — sussurrou. — Eu quero que corram.

Ela sentia como se estivesse fazendo isso frequentemente. Gritando. Correndo. Geralmente, os dois.

— Você vai atirar nele? — Hazel perguntou.

O maxilar de Annabeth tremeu.

Não, pensou. Eu vou fazer algo muito pior.

— Só... corram, está certo? Eu tenho certeza que os outros vão entender a tempo, mas...

Ela deixou o pensamento morrer no ar. Mas eu sou uma egoísta do cacete.

— Você tem razão, Ares. Esse prédio é antigo. As cercas são recém-instaladas, porque os muros de concreto não são mais seguros o suficiente. A maioria dos cadeados ainda são manuais... e as suas lâmpadas também eram velhas — disse. — Sabe o que acontece quando lâmpadas velhas explodem?

Talvez Ares soubesse.

Mas ele não teve tempo de falar.

Annabeth largou a mão de Hazel, deslizou-a no bolso traseiro do short e pescou o isqueiro que havia tirado do bolso de Leo antes do garoto ser cremado.

Com a outra, ela levantou a pistola e deferiu mais quatro tiros. Havia estudado o ambiente o suficiente para errar apenas um, embora fosse inexperiente com armas de fogo. O som do vidro quebrando reverberou, tilintando ao cair sobre o chão, as mesas, e as pessoas.

Annabeth respirou fundo. Tentou sentir alguma coisa na atmosfera, alguma coisa que indicasse que seu plano daria certo – mas ela não era Leo. Não entendia dessas coisas tão bem quanto ele. Tudo que ela podia esperar era que desse certo.

Mas confiar em um plano assim não era seu feitio.

Para todos os efeitos, Annabeth sentia-se completamente no escuro.

Ela abriu a tampa com o polegar, apertou o dispositivo, e deixou que a chama azul tremeluzisse por apenas um segundo – iluminando seus dedos cobertos de sangue e pequenos ferimentos causados pelo vidro —, antes de atirá-la o mais alto que conseguiu.

Observou isqueiro aceso subindo até alcançar um dos bocais agora vazio.

Percy a puxou pela mão e eles correram.

Sobre as suas cabeças, uma explosão laranja varreu o teto como o prelúdio de algo muito, muito pior. A temperatura aumentou até queimar sua pele, esquentando o sangue dos ferimentos expostos, secando sua garganta.

Eles correram pela extensão do refeitório enquanto os sons se misturavam, fumaça e gás sufocando seus pulmões, confundindo seus pensamentos, e Annabeth sentiu-se de volta no auditório – observando as pessoas que ela havia trabalhado para salvar correndo pelas suas vidas.

Apenas, dessa vez, não eram zumbis do lado de fora. Não havia sido um vírus os forçando a correr e protegerem-se.

Havia sido ela mesma.

Eles alcançaram o lado de fora, embolando-se no meio da multidão. Corpos cobertos de fuligem, tossindo sofregamente, tropeçando uns nos outros. O fogo ameaçava segui-los, deslizando pelo corredor, mas, por enquanto, Annabeth tinha tempo.

Agora, ela só precisava encontrar Ares. Ela podia acabar com aquilo de uma vez só. Precisava ter estômago para isso. Do contrário, tudo aquilo seria em vão.

Ela disse a si mesma que Ares não seria um assassinato.

Mas suas mãos já estavam pingando sangue demais, ela sabia.

Vozes gritavam de dentro do refeitório – vozes que faziam a cabeça de Annabeth girar.

Haviam pessoas lá dentro.

Pessoas capturadas no meio do incêndio. Pessoas que ela não podia salvar.

Ao seu lado, Percy cuspiu uma substância nojenta, parecendo uma mistura de sangue e fosse lá o que ele havia almoçado. Nenhum alarme de incêndio foi acionado.

Prédio antigo. Lâmpadas antigas.

Cadeados antigos.

Ela buscou com os olhos pelos dois oficiais que Ares havia mandando irem para sala de controle, mas não os encontrou. Cada nervo do seu corpo urrou em desespero. Ela virou-se para Percy, alarmada:

— Nós precisamos achar aqueles dois — disse — eles vão abrir os port-

— Ainda não.

Foi a vez de Annabeth sentir-se como se suas últimas oito refeições se revirassem eu sem estômago. Ela tentou achar Ares, mas seu olhar estava cansado, seu corpo estava ficando-

Um grito.

— Chase... — Clarisse grunhiu. Sangue escorria por todo o seu rosto, não só o nariz, e o antebraço que ela tinha erguido havia sido queimado, a pele descascando dolorosamente. Uma de suas mãos estava firmemente plantada no pulso do pai.

Que segurava a mesma faca que ela havia usado.

Encima da garganta dela.

Ares não estava muito melhor. Para falar a verdade, Annabeth não sabia como estava vivo. Ela havia se certificando de atirar na lâmpada bem encima da cabeça dele, então o fogo deveria ter sido o suficiente para queimá-lo vivo. Mas lá estava o coronel, com a pele descolando dos músculos, sangue escorrendo dos olhos esbugalhados, e rosto de um homem que já havia a muito perdido sua humanidade.

Os gritos do refeitório não cessaram. E Annabeth sentiu-se enterrada embaixo da culpa.

Pessoas estavam morrendo lá dentro, mas Ares estava de pé ali.

Ela lembrou-se do quão extasiada havia ficado quando descobrira que coisas a mutação havia feito no corpo de Grover. Que tipo de portas aquilo abria para ciência. Pesquisas que ela mal poderia esperar para acompanhar quando saíssem dali-

Quando saíssem dali?

Se.

Se saíssem dali.

Agora, olhando para o homem desfigurado que segurava uma lâmina contra a garganta da filha, ao mesmo tempo em que os sons horrendos invadiam sua mente, ela só pensou no quão injusto aquilo tudo era.

Porque a humanidade deles era tão, tão frágil.

E monstros como Ares sobreviviam a tudo o que facilmente a mataria.

— Não faça isso — ela sentiu a garganta seca, a voz saindo quebradiça — você não quer fazer essa besteira.

— Me passa a arma — ele ordenou —, me passa arma, Annabeth.

Ele não estava mais sorrindo. Não estava mais chamando-a de pirralha.

Ares não estava mais brincando.

Os soldados que haviam sobrado circundaram-nos, armas à postos. Annabeth sentiu que havia, finalmente, alcançado o fim da linha.

Percy pegou a mão dela na dele e apertou. Ela queria ter tempo de olhar para ele, de segurar sua mão de volta e senti-lo preenche-la com aquela esperança inabalável, a única coisa que a havia mantido sã até então.

Ao invés disso, ela respirou fundo e assentiu.

Agachou-se, depositando a arma no chão, e seu olhar encontrou o de Ares.

— Você solta ela primeiro — instruiu — e eu empurro a arma. Se fizer alguma gracinha, eu mato você.

Ela não sabia bem o quanto uma ameaça daquelas surtiria efeito, principalmente quando qualquer um dos soldados de Ares poderia cravejá-la com balas a qualquer momento, mas estava contando com a insanidade de Ares e aquele estranho desejo que ele parecia ter de atestar sua superioridade.

— Chase — Clarisse ofegou — não seja burra.

Oh, Clarisse.

Ares cumpriu sua palavra. Assim que a arma fez contato com a ponta da bota de couro dele, Annabeth soube que aquela havia sido, provavelmente, a última aposta de sua vida.

Merda!

Annabeth não viu acontecendo.

O que – provavelmente – lhe salvara algum resquício de sanidade.

Clarisse havia acabado de dar dois passos para frente, massageando o próprio pescoço, ainda perdida demais para reagir, quando o sangue espirrou da base da sua garganta, e ela caiu no chão, de bruços, tremendo.

Annabeth sentiu a sensação familiar, quente, inóspita, de lágrimas percorrendo seu rosto, embora não soubesse quando havia começado a chorar. Tudo o que ela conseguia ver era o cabo da faca, cravado na nuca de Clarisse, e a poça ainda maior de sangue que se expandia, vagarosamente.

O corpo da sargento parou de se mover.

O grito de Frank soou como um vidro sendo quebrado, mas Annabeth não conseguiu identificar o que ele disse. Parecia que um zumbido estava preenchendo seus ouvidos, como se ela estivesse submersa na água, ouvindo tudo à quilômetros de distância.

Será que era isso que Percy queria dizer?

Ela assistiu a tudo como uma telespectadora, como se seu corpo não pudesse – ou melhor, não fosse capaz de obedecer. Quando Ares juntou a pistola no chão, girou na mão uma única vez e sorriu.

Ela pensou ouvi-lo dizendo “minha vez agora”. Mas nada parecia real.

Frank tentou se mover, mas ele não era tão rápido quanto uma bala.

E Annabeth assistiu, enquanto a bala disparada da mesma arma que ela havia usado para salvar a vida de Hazel alguns minutos atrás acertava seu torso e mandava-a cambaleando para trás, cobrindo a barriga com as mãos, o sangue já escapando, jorrando, ensopando suas roupas-

... Por que?

Eu fiz tudo certo. Eu... eu nos tirei do auditório. Eu nos trouxe para cá.

Nós estávamos vivos.

Então, por que?

— Hazel! — Nico exclamou.

E o rugido descomunal que rasgou a garganta de Percy a trouxe de volta à realidade. Ela o viu atravessar a distância entre eles e o Coronel e jogá-lo ao chão. Os soldados apontaram as armas para eles, e Annabeth, ainda meio trêmula, soube o que tinha que fazer.

Percy prendeu o coronel em uma chave de braço, uma veia saltando em seu pescoço, os olhos jorrando ódio, e Annabeth pegou a pistola que ele havia derrubado no chão.

Ela encostou o cano na testa do Coronel.

Mas um detalhe não passou despercebido.

Estava leve.

O pente estava vazio.

Annabeth posicionou seu corpo de modo que os outros soldados não pudessem ver, mas seus olhos gritaram alarmados para Percy.

— O que você vai fazer, Annabeth? — Ares sorriu — Me matar agora vai adiantar alguma coisa? Vai trazer seus amigos de volta-

— Cala a merda da boca! — Percy vociferou — Eu vou acabar com você! Vou acabar com você, seu desgraçado! — Ele apertou com mais força, o sangue espirrando dos diversos ferimentos de Ares.

Dessa vez, ele não esperou que Annabeth desse uma ordem. Percy desfez a fivela do cinto, puxou o objeto com uma das mãos, e enrolou o pescoço do Coronel com a tira de couro.

Annabeth havia sido a primeira deles a matar um zumbi. A primeira a sentir a cabeça de alguém sendo esmaga, golpe após golpe.

E também havia sido a primeira a matar alguém. Vivo. Humano.

Mas, de alguma forma, ver Percy enforcando Ares – que a esse ponto não eram nem zumbi e nem humano – as mãos puxando o cinto em direções opostas e o olhar completamente focado, ela sentiu como se o fim de mundo houvesse finalmente alcançando-os.

Não eram mais zumbis – nem do lado de fora, nem do lado de dentro.

Também não eram mais humanos – nem soldados nem adolescentes estúpidos tentando salvar a própria pele jogando uma garota da escada.

Eram eles.

Percy e ela.

Os dois eram parte apocalipse também.

Foi só quando o corpo de Ares caiu inerte no chão, bem ao lado da poça de sangue de Clarisse, espalhando as gotas sobre eles, que Annabeth permitiu-se respirar. As mãos de Percy ainda seguravam o cinto, nós dos dedos completamente brancos, e cada respiração balançava o corpo inteiro dele.

Hazel.

Ela deu meia volta, apenas para ver Nico chorando profusamente enquanto tentava pressionar uma camiseta dobrada sobre o ferimento. A cabeça de Hazel estava deitada no colo de Reyna.

Will estava de pé.

Will estava de pé.

— A bala não atravessou — ele disse, sem que ela perguntasse. — Está alojada entre os órgãos internos. Se mexermos, só vai adiantar a morte.

— Nós podemos leva-la para a cirurgia! — Nico gritou, enquanto seus dedos ensanguentados tremiam cada vez mais.

Will fechou os olhos, os lábios comprimidos. Annabeth lembrou-se de quantos curativos ele teve que fazer – de quantas vidas salvou. De quanto sangue havia passado pelas suas mãos.

E, mesmo assim, nada daquela experiência serviu para impedi-lo de chorar, enquanto assistia Nico tentar salvar a vida de Hazel em vão.

Annabeth ajoelhou-se ao lado dele, e gentilmente, retirou as mãos de Nico da garota. Ela encontrou o olhar de Reyna. As duas sabiam o que precisava ser feito.

Hazel respirava com tanta dificuldade que seu peito mal se mexia. Sangue escapava pelos cantos da sua boca, olhar desfocado. Ao redor deles, o fogo se alastrava, refletindo nas írises douradas.

— Eu... — Annabeth soluçou, segurando uma das mãos da garota entre a sua — eu sinto tanto, Hazel.

A garota sorriu, Annabeth queria dizer mais – queria dizer muito mais. Queria dizer que Hazel era a alma mais pura que ela já havia acontecido. Queria dizê-la que pensava todos os dias na bondade dela em pensar na estufa, na luz que havia trazido para a vida de Nico, no amor que ela havia ensinado tantos deles à acolherem.

Annabeth queria dizer muitas coisas.

Mas Hazel não estava mais ouvindo.

Com um segundo soluço, ela esticou uma mão e fechou as pálpebras dela.

O mundo poderia ter ficado em silêncio. Annabeth só queria um momento de silêncio.

Ao invés disso, um som alto foi ouvido a pouca distância. A parede que separava o refeitório da dos dormitórios desmoronou, consumida pelo fogo. Annabeth limpou as lágrimas dos olhos, engoliu em seco, e marchou até Percy.

Ela estava de joelhos, rosto afundado nas mãos, molhado de lágrimas, soluçando febrilmente. Annabeth colocou uma mão no ombro dele.

— Percy, eu-

— O que nós precisamos fazer? — Ele a olhou determinado. — O que nós precisamos fazer para a morte dela não ter sido...

— Não foi — Annabeth tentou dizer, mas sua voz estava tremendo. Ela tentou organizar os próprios pensamentos —, eu preciso que você vá até a sala de controle e impeça que os soldados desativem o sistema de segurança.

— Sistema de segurança? — Percy piscou, expulsando mais lágrimas dos olhos.

Annabeth não queria acreditar no que estava prestes a dizer:

— Eles vão abrir os portões.

A boca de Percy abriu.

— Sim — Annabeth disse —, os zumbis vão entrar.

Percy assentiu. Talvez ele ainda não houvesse registrado tudo o que havia acontecido. Talvez estivesse agindo por impulso. De qualquer forma, Annabeth precisava acreditar nele, o que não era muito difícil.

— E você?

— Preciso ir até a cabine da Piper antes do fogo consumir tudo — disse. — O rádio do Leo está lá.

— Rádio?

— Eu vou tirar a gente desse inferno. Mas nós não vamos muito longe daqui sem uma forma de comunicação — ela olhou ao redor rapidamente, tentando encontrar os rostos dos amigos, e notando que, claro, os soldados haviam sumido — Jason, você pode vir comigo? Preciso chegar até a cabine da Piper. Reyna, eu-

— ...Gostaria que eu fosse com o Percy — a garota levantou-se, deitando delicadamente a cabeça de Hazel no chão, e limpando as próprias lágrimas —, eu quero olhar para os rostos daqueles desgraçados antes de irmos embora daqui.

Annabeth concordou. Ela tentou não focar muito na forma como Reyna dissera aquilo. Como se tivesse certeza de que Annabeth ia conseguir tirá-los de lá.

— Eu vou também — Nico disse de repente — com você. — Annabeth arregalou os olhos quando ele se levantou —, eu não quero ficar aqui e esperar para ver quem vai ser o próximo a morrer.

— Certo.

Antes que eles pudessem ir, Annabeth caminhou até Percy. Eles se olharam por um longo momento. Annabeth lembrava-se do começo daquela quedinha estúpida, da forma como seu coração batia mais forte e seu rosto ficava vermelho.

E agora o coração dela estava disparado também. Mas por um motivo completamente diferente.

Porque agora era perfeitamente possível que nenhum dos dois voltasse vivo.

Percy pegou as mãos dela e colocou na frente do próprio peito, aproximando-se. Suas testas se encontraram, mas nenhum dos dois fechou os olhos. A respiração quente de Percy aqueceu seu rosto úmido de lágrimas. As órbitas verdes a acalmaram, como se ela estivesse vendo o oceano no final de uma tarde fria.

Ele apertou as mãos dela carinhosamente.

— Você vai voltar para mim — ele pediu — promete?

Annabeth deixou um beijo rápido, singelo, mas cheio de tudo o que ela estava tentando colocar em palavras, sobre os lábios rachados dele.

Eles fecharam os olhos, respiraram fundo, e então Annabeth seguiu com Jason e Nico pelo corredor pegando fogo, sabendo, dentro de si...

Sabendo que não havia respondido.

Porque ela não podia aguentar quebrar outra promessa.

As chamas se alastravam, famintas, correndo as paredes, e fazendo-os andarem juntos como se estivessem no centro de um furacão. Era difícil respirar, a fumaça tornava quase impossível de enxergar, e Annabeth podia sentir o estresse pesando em seus músculos, atrasando a velocidade do seu corpo.

— É aqui — Jason apontou para uma das portas.

Annabeth não teve tempo de ponderar. O ar quente que entrava pelas janelas estava empurrando o fogo na direção deles. Uma das labaredas alcançou a calça de Nico, e ele tentou balançar as pernas, mas só piorou. Quando sua pele começou a queimar, ele olhou para ela com urgência em seus olhos avermelhados.

— Não dá para entrar — ela constatou.

A porta que Jason chutara havia caído com tanta facilidade que não haviam dúvidas que as dobradiças já haviam derretido. O fogo lá dentro parecia ainda mais impossivelmente intenso, uma explosão de vermelho fúria e o mesmo tom de laranja que destruíra o refeitório.

— Eu vou lá. — Jason disse.

Annabeth agarrou o braço dele.

— Me solta. Você disse que nós não vamos a lugar algum sem esse rádio, e eu acredito em você — ele livrou-se da mão dela —, não vamos sobreviver lá fora. Não sem água, comida, e principalmente sem abrigo.

Ele olhou bem para o rosto dela. Jason estava coberto de hematomas da briga com os guardas mais cedo, mas seu olhar continuava o mesmo – determinado, duro, impassível.

— Annabeth — ele disse, por fim, no que parecia um suspiro. Chamas começaram a subir pela manga da camiseta dele — eu conheço o Leo. Ele enfiou esse rádio em algum lugar maluco, que só um deus ou coisa parecida poderia destruir, e, e... — o lábio inferior dele tremeu, as pupilas ficando distorcidas, suor brotando por toda a parte visível do seu corpo — nós precisamos desse rádio. Nós precisamos de você.

Jason colocou as mãos nos ombros dela.

— Precisamos de você para que essas mortes não tenham sido em vão — disse, por fim — então me prometa, que quando vocês saírem daqui, você... você vai fazer com que tudo isso tenha valido a pena.

— Jason! — Nico estendeu uma mão.

Eram promessas demais.

E era tarde demais.

Tarde demais para ela dizer algo, e tarde demais para que a mão de Nico o alcançasse.

Jason mergulhou nas chamas.

Annabeth podia dizer que ele estava tentando não gritar, não emitir som para não piorar as coisas — mas ela podia ouvi-lo grunhindo lá dentro, sendo chicoteado por cada nova queimadura. A medida que o fogo os envolvia, Annabeth e Nico se aproximaram.

Não houve adeus.

Apenas o aparelhinho de metal saindo das chamas e sendo apanhando no ar pelas mãos ensanguentas dela. Ela observou a caixinha amarela, e do mesmo tom do cabelo de Jason, e uma nova crise de choro a acometeu. Mas ela o manteve preso na garganta e gritou:

— Jason! Jason!

E teria ficado ali, provavelmente, se Nico não a houvesse pegado pelo antebraço com uma mão igualmente vermelha – vermelha do sangue de Hazel, ela constatou com terror – e a puxado antes da parede oposta ruir e o fogo subir como um monstro raivoso, faminto, insaciável.

Eles correram de volta.

E Annabeth só conseguia pensar nas promessas.

Nas promessas e no fogo.

No fogo que em breve consumiria tudo ali – na culpa, e no sangue, e nos corpos e nos gritos.

Em Clarisse, Hazel, Jason.

Em como o fogo os engoliria por completo.

Em como talvez, um dia, ela pudesse voltar ali para recuperar o que sobrasse.

Por enquanto, ela deixou que as chamas os queimassem. Que fossem entregues ao fogo.

Ou melhor, às cinzas.

 


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Notas finais do capítulo

Algumas observações: 1) Jason é meu terceiro personagem favorito dos livros (entre os meninos). O Luke é o segundo. Sim, eles morreram na fic. Sim, isso significa que um personagem ser querido da autora não tira ele do perigo -q
2) Eu simplesmente amei escrever esse capítulo. Fica empatada com a parte final de "clube de debate". Tava querendo escrever sobre esse lado da Annabeth, e acho que consegui.
3) Esse também é um dos capítulos mais importantes, e por isso ficou um pouco mais longo que os outros.
Como sempre, eu espero que tenham gostado, comentários são sempre apreciados e críticas também! Se você tem alguma observação, sinta-se livre para fazer.
Até a próxima! (amanhã, com sorte, hehe).