Clemenza escrita por Camylla Almeida


Capítulo 1
I - Acerto de contas.


Notas iniciais do capítulo

Olá ~

Escrevi esse conto para o amigo oculto do PL, gostei e resolvi postar aqui.

Boa leitura. ♥



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Clemenza

"Dinheiro sujo, não pelo sangue dos meus manos
Os que rezaram por nóis se tornaram ateus, danos
E teve quem me ameaçou ao se sentir ameaçado
Glock embaixo do travesseiro
Eu nunca tive o sono tão pesado
Requintes de crueldade
Tipo água benta nos anjos caídos, fraudes."
O que sobra disso tudo, B.K

Ao término da missa, Domênico encontrava-se com a mente distante e alguns pensamentos nebulosos estavam o atormentando. Era fiel da paróquia e estava acostumado ao cheiro das velas e ao choro das senhoras viúvas ou das mães que perdiam seus filhos de forma precoce, de certo os membros da igreja também já estavam acostumados à sua presença sempre séria, mas tranquila. O padre certamente estava e após se despedir dos últimos fieis, aproximou-se do banco onde o rapaz estava sentado aparentemente na mesma posição desde a sua chegada e sorriu com gentileza:

— Mi scusi, ma ho visto che sei ancora più riflessivo di oggi. Un problema? - Guilhermo indagou cordialmente, sentando-se no espaço vazio ao lado do homem mais jovem. Estava impecável em sua veste, mas não tardou em retirar seu colarinho clerical e pareceu respirar aliviado assim que o fez.

— Siamo in Brasile, padre. - Domênico murmurou, a voz arrastada. - Permettetemi di esercitare la mia lingua locale. - pediu, suspirando ao encará-lo e sorriu um sorriso pequeno, sem muita vontade. Seu cansaço ficou claro na pequena ação.

— Va bene, va bene! Diga-me o que se passa e talvez eu possa ajudá-lo.

— São os mesmos problemas de sempre. - suspirou novamente, deixando a expressão contrair-se em uma carranca. - Não acho que o senhor possa me ajudar... Preciso fumar, me acompanha em uma caminhada?

— Não prefere se confessar? Sabe que tudo o que é dito no confessionário fica em segredo e assim você já começa a caminhar até o perdão.

Domênico riu. Não foi um riso de zombaria, mas sim de descrença e o padre conseguiu entender bem o motivo. Estava muito tarde para que pudesse obter algum perdão, ainda mais quando não buscava redenção ou mostrava sinais de arrependimento, cansaço era a única coisa que sua linguagem corporal deixava em evidência, mas somente na igreja e após o término da missa, este era o seu pequeno ritual de domingo. A noite estava curiosamente fria em Salvador, um frio fora de época por assim dizer.

Última missa antes do Natal.

Padre Guilhermo já estava preparando o sermão da missa natalina e estava pensando em alguma coisa mais inovadora para não deixar as pessoas enjoadas com o ar monótono que estava impresso todos os anos, queria modernizar a igreja e atrair mais jovens, mais pessoas no geral. Estava cansado do teatro ensaiado, ficava repetindo a mesma peça há anos e era quando olhava para o jovem à sua frente que sabia precisar de mudanças, talvez ainda pudesse salva-lo... Era esperançoso, afinal. Lembrava de Domênico correndo pelas ruas de pedra em Roma e sentia falta do olhar puro e infantil que antes estampava aquele rosto, agora sentia incômodo ao fitar seus olhos por mais de alguns segundos. Olhando ao redor, foi a sua vez suspirar, encarou o jovem com um pouco mais de atenção, buscando por sinais da criança que conhecera, e concordou com um meneio. Estava cansado, mas se podia ajudá-lo de alguma forma e mesmo que fosse apenas com a sua companhia durante uma caminhada, o faria.

Estava na pequena paróquia há dez anos e nesse meio tempo observava Domênico com atenção, sabia bem o que ele era e o que fazia, contudo, não o julgava. Não poderia julgar ninguém, uma vez que tinha um passado pronto para bater à sua porta em algum momento...

Não se demorou muito em buscar seu celular, carteira e relógio, agora estava pronto para acompanhá-lo. As ruas estavam quase desertas, havia uma ou outra barraca de ambulantes e poucas pessoas caminhando pelo lugar estreito, os cumprimentos não se demoraram já que Guilhermo era conhecido na periferia por seus trabalhos sociais e pela própria igreja que sustentava com pouco orçamento, para a comunidade ali estava um exemplo de homem; quase um anjo em terra. Livre de suspeitas e com um sorriso no rosto.

— Fumar não vai te incomodar, certo? - Domênico indagou, puxando um maço do bolso de seu sobretudo. Não esperou pela resposta do mais velho e acendeu o cigarro, tragando longamente e sentindo a mágica da nicotina fluindo. O primeiro trago trouxe o início da calmaria, podia jurar ouvir sinos ao longe, um relaxamento brando o atingiu, acabou por sorrir e diminuir o ritmo dos passos.

— Não me incomoda se você souber dividir. - o padre riu, melhor dizendo, Guilhermo. Fora da igreja e longe dos olhos críticos gostava de ser um homem como outro qualquer, certo ou errado, conseguia adaptar seu modo de vida pessoal ao clérigo. Aceitou o vício estendido, segurou-o bem preso entre os dedos e tragou, ah, a mesma sensação o percorreu. Relaxou. - Bons tempos onde homens de bem ainda podem compartilhar um cigarro... - sorriu um tanto abobalhado, sentindo as impurezas. Não havia apenas nicotina e porcarias ali.

Domênico riu alto, sua risada forte espantou um cachorro de rua que perambulava nas redondezas em busca de comida. Magro e machucado, a coleira velha e apertada no pescoço sinalizando que em algum momento de sua vida miserável já possuiu um lar...

— E desde quando somos homens de bem? - retrucou, buscando o cigarro para si novamente. Tragou duas vezes e devolveu. Civilizado, já estava satisfeito. Não se demorou muito fitando o cachorro ou poderia bambear no intento.

— Acho que não somos, então. - Guilhermo ponderou, fumando sozinho. Ficou quieto por alguns minutos e como o outro também não fazia questão de falar, o silêncio foi confortável. Estava refletindo sobre algumas coisas, pois a chegada de Domênico trouxe consigo algumas lembranças que vinha tentando evitar ultimamente, uma forma que havia encontrado para viver bem. - Somos pecado... - murmurou.

Um transgressor das Leis de Deus? Certamente. O rapaz apenas concordou, seguindo o padre que se aventurou no caminho escuro e ermo. No céu, uma trovoada soou forte e impaciente.

— Você sabe porquê estou aqui. - afirmou, próximo ao mais velho que caminhava um pouco mais à frente.

— Sei. - Guilhermo se permitiu rir. A sorte o havia abandonado naquele momento. - Meu nome surgiu e você resolveu se encarregar da minha carcaça velha pessoalmente. - mostrou-se magoado, mas sem indícios de surpresa ou medo.

— Não sou eu quem decide isso, você bem sabe.

— Poderia se recusar.

— Sinto muito, mas não tenho tanto apreço por você. - a sinceridade cortante. As primeiras gotículas da chuva os molhando, como se alguém lá acima das nuvens pesadas chorasse ao presenciar a cena...

— Sou seu pai, Domênico! Como pode ser tão frio? - Guilhermo exaltou-se, jogando o cigarro longe. Oh, sim, admitir em voz alta estava sendo libertador. Como teria sido a sua vida se tivesse criado aquele rapaz desde a infância? Quase se permitiu voar em divagações.

— Tanto faz. - fez um gesto de desdém, não se importando com as falas do mais velho. - Apenas faço o meu trabalho e faço bem.

Novamente, o silêncio. Quem poderia culpá-lo por ser assim? Cada mínimo evento em sua vida havia contribuído para se tornar um homem frio e prático, com um cansaço que não condizia com os vinte e cinco anos, mas ainda assim sendo muito compreensível. Matar pessoas por dinheiro pode ser bastante cansativo, porém ainda soa melhor que trabalhar preso num escritório de contabilidade... Ou não? Se somos todos pecadores, assumir nossos pecados não é tão ruim assim.

Guilhermo suspirou encarando o céu. Simples assim? Sentiu vontade de xingar e chorar, mas não tinha esse direito.

— Tenho orgulho de você por isso, não posso mentir... - murmurou, voltando seus olhos mareados para o filho. - Sabe de tudo?

— Quase tudo.

— Clemenza, figlio. Mi pento di tutti i miei peccati! - devolveu a sinceridade, permitindo que algumas lágrimas rolassem. Talvez não lamentasse todo o seu passado, sua luxúria e os pecados mais sujos, mas se arrependia de não ter criado aquele menino.

— Conversa fiada. - riu.

— È vero!

— Que seja, eu não posso voltar atrás. - murmurou, aproximando-se do mais velho. A proximidade foi grande, rostos quase colados, centímetros os separando, olho no olho. - Eu só quero saber... Che cosa hai fatto con la mia mamma? - indagou feroz, pouco se importando em misturar os idiomas num momento de nervosismo.

— Ho ucciso che cagna! - confessou na mesma frieza do filho, sobre esse fato não havia arrependimentos. Apenas uma lembrança gostosa.

O barulho de um novo trovão e um raio cortando o céu... Com a habilidade que era tão sua, Domênico retirou a mão direita do bolso de seu sobretudo e com ela veio a caneta tinteiro, segurando-a firme, fincou na jugular do pai. Retirou rápido e fincou novamente com ainda mais força, deixando presa no corpo alheio a única coisa que restava de sua mãe. O objeto que o sustentava nas noites de tristeza do orfanato e não havia poesia ou licença poética no ato, nem mesmo ódio, foi um movimento limpo, mecânico. Algo que precisava ser feito. O grito de Guilhermo não o excitou, permaneceu impassível enquanto assistia o pai cair no chão, agonizando com o sangue jorrando...

A chuva tornou-se mais intensa.

Com os olhos fixos no filho que permanecia de pé com o seu sangue respingado no rosto, além daquele que corria em suas veias, pôde enfim perceber o local o qual se encontrava e o quão perto da morte estava. Tentou falar alguma coisa, mas foi inútil, apenas cuspiu carmesim enquanto se engasgava no próprio, sentindo algo indescritível e... Orgulho. Seu garoto era mesmo bom no que fazia! Sorriu. Pagaria por tudo agora, porque verdadeiramente acreditava em Deus e sabia que aquilo que estava reservado para si não seria nada além do tormento eterno, porque se arrepender dos pecados não conseguia. Só queria ter tido mais tempo com Domênico.

Quando o padre fechou os olhos, caído no chão da pracinha abandonada, foi o encerramento de um ciclo. Domênico nem mesmo se importou com uma senhora que passava pelo local com seu guarda-chuva e bíblia, adentraria um avião e não estaria mais em solo brasileiro pela manhã... Não pagaria pelo parricídio na justiça dos homens e não acreditava na justiça divina, então não tinha motivos para se preocupar. Cansaço. O mesmo cansaço de sempre... Amaldiçoou a chuva por impedi-lo de acender mais um cigarro e caminhou para longe dali, deixando o pai morto, a senhora assustada e qualquer fantasma da infância para trás. Havia feito o seu trabalho. Guilhermo estava dando muitos prejuízos à principal família italiana que compunha a Máfia, ele precisava morrer, e como seu filho tinha o direito e a honra de assumir os negócios escusos do pai, mas gostava mesmo era de matar. O cassino e o prostíbulo seriam apenas diversão.

As luvas grossas de couro pinicando, uma leve dor de cabeça surgindo e a ansiedade por um novo trabalho o movendo...

— Tutti noi abbiamo peccato e il rimorso. - murmurou para si mesmo, pensativo.

Foi apenas mais uma noite comum em sua vida, porque a vida pode ser complicada... Mas a morte, ah, a morte é fácil e rápida.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo!

Beijos ~



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