A viagem do tigre - Pov dos tigres escrita por Anaruaa


Capítulo 6
Preparação - Ren




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Fui para o quarto e não parava de pensar em Kelsey. Eu gostava da maneira como eu a afetava, e sorria naturalmente ao pensar nela. Eu queria poder passar mais tempo com ela sem me sentir mal. Queria tocar em sua pele e beijar a sua boca, sem sentir dor. Queria descobrir uma maneira de poder ficar com ela. Peguei papel e caneta e comecei a escrever:

Lembrando

Onde está o X?

Um tesouro de pirata jaz escondido

Mas o mapa está desbotado

As pontas chamuscadas e ilegíveis

O baú enterrado e trancado

E a chave se perdeu

O navio está a deriva

A ilha desapareceu

Como encontrá-la?

Desenterrar os amuletos preciosos?

As pedras preciosas beijadas pelo sol

Lábios de rubi reluzente

Dobrões de cabelo castanho-dourados

Tantos que poderiam escorrer pelas mãos

Tecidos sedosos para envolver a pele macia perolada

Um corado de donzela da cor de granada mandarim

Olhos de topázio cintilante que queimam e

Perfuram como diamantes

Um perfume – sutil e puro e sedutor

Um homem rico de fato

Se conseguisse encontrar

O X

Deixando a folha de lado, me transformei em tigre e desci para a sala de refeição dos tigres. Kishan estava lá e tinha acabado de comer, estava deitado no chão, ofegante. Eu fui até minha pilha de carne e comecei a me alimentar.

Kishan se levantou e transformou-se em homem, então me disse que ia para o dojo, treinar um pouco. Terminei de comer e dormi por algum tempo. Depois subi para o meu quarto. Senti o cheiro de Kelsey e me transformei em homem.

Ela estava no meu quarto, lendo o poema que eu escrevera mais cedo. Eu me aproximei sem ela perceber e tomei a folha de suas mãos.

— Achei que detestasse os meus poemas. Aliás, quem chamou você aqui? — Falei de forma ríspida, me divertindo com a possibilidade de uma nova briga com ela.

— A porta não estava trancada — respondeu. — Eu estava procurando você.

— Bom, já achou. O que você quer? Mais poemas para queimar?

— Não. Eu disse que não ia queimar os seus poemas.

— Muito bem — Percebi que Kelsey não queria brigar e relaxei. — Este foi o primeiro que consegui escrever desde que fui libertado.

— É mesmo? Talvez seja porque Phet livrou você do estresse pós-traumático.

Guardei o poema e me apoiei no pilar da cama.

— Talvez, mas desconfio que não.

— Então, o que o fez voltar a escrever?

— Parece que tenho uma musa. Agora, por que você está no meu quarto?

— Eu queria conversar. Esclarecer as coisas.

— Entendi — caminhei até a cabeceira da cama e me sentei encostado nela, então chamei Kelsey para se sentar ao meu lado.— Então, sente-se aqui e fale.

— É... não acho que deva ficar tão perto.

— Vamos matar dois coelhos com uma cajadada só. Preciso testar a minha resistência.

Apontei para o lugar ao meu lado novamente.

— Chegue mais perto, minha subhaga jadugarni.

Kelsey cruzou os braços, contrariada:

— Não gosto muito desse apelido.

— Então me diga do que eu costumava chamar você.

— Você me chamava de priya, rajkumari, iadala, priyatama, kamana, sundari e, mais recentemente, de hridaya patni.

Fiquei observando pensativo enquanto ela me dizia cada um dos apelidos que eu tinha para ela e pensando o quanto ela devia ter sido preciosa para mim.

— Eu... chamava você de todos esses nomes?

— Chamava, e provavelmente de mais alguns de que não consigo me lembrar agora.

Conclui que ela merecia cada um daqueles apelidos.

— Venha cá. Por favor.

Ela se aproximou de mim, cautelosa. Então eu coloquei minhas mãos em sua cintura, sobre o tecido de sua roupa. Percebi que assim não queimava, a ergui sobre mim, colocando-a sentada a meu lado na cama.

— Talvez eu devesse inventar outro apelido — sugeri.

— Como o quê? Não me venha com nada parecido com sereia ou feiticeira.

Eu dei risada.

— Que tal strimani? Significa “a melhor das mulheres” ou “uma joia de mulher”. Está bom para você?

— Como foi que chegou a esse nome?

— Ando inspirado ultimamente. Então, sobre o que você queria conversar?

— Eu queria abrir o jogo, para que possamos nos sentir mais à vontade perto um do outro. Assim, vamos poder trabalhar juntos e as coisas vão ser mais fáceis.

— Você quer abrir o jogo? Como assim?

Eu a encarei esperando por uma resposta. Ela me olhou nos olhos e se inclinou lentamente em minha direção. Depois, afastou-se depressa, batendo a cabeça na cabeceira da cama.

— Hum... talvez essa não seja uma boa ideia. Deu certo com Kishan, mas algo me diz que não vai funcionar tão bem com você.

Eu senti ciúme ao ouvi-la mencionar Kishan e franzi a testa, intrigado:

— O que deu certo com Kishan?

— Nós... conversamos sobre os nossos sentimentos.

— E daí? O que ele disse?

— Não sei bem se devo contar isso a você.

Eu rosnei baixo e reclamei em hindi que Kishan era um aproveitador.

— Certo, Kelsey. Você queria falar, então fale.

Kelsey pegou um travesseiro e colocou atrás da cabeça, respirou fundo e sorriu. Eu a observei curioso e ela corou ao perceber meu olhar. Então eu perguntei o que ela estava fazendo:

— Se quer mesmo saber, o travesseiro tem o seu cheiro. E confesso que gosto dele.

— Ah, é? — Eu sorri lisonjeado.

— É. Está vendo? Estou abrindo o jogo.

— Não totalmente. Vamos fazer um trato. Conte para mim o que Kishan disse, e você vai poder contar para ele tudo o que nós conversarmos. Sem segredos.

— Tudo bem.

Kelsey hesitou um pouco no início, mas foi se abrindo. Ela me contou que depois que eu fui sequestrado, Kishan cuidou dela e lhe deu apoio, o que os tornou muito próximos. Então em um dado momento, ele lhe confessou que estava apaixonado. Depois, durante a viagem a Shangri-la, eles passaram muito tempo juntos e precisaram um do outro, tornando-se mais íntimos. Com isso, Kishan se sentiu à vontade para flertar com ela abertamente, chegando a beijá-la algumas vezes, até que ela lhe fez prometer que não a beijaria mais. Ele o fez, mas disse que só não a beijaria até que ele tivesse certeza de não haver mais nada entre Kelsey e eu.

Eu senti ciúmes e um pouco de raiva.  Depois ela me contou sobre a conversa que teve mais cedo com meu irmão:

— Eu disse que confio nele e que gosto quando ele está por perto. E que sinto por ele... mais do que devia. Mais do que queria sentir, e isso me deixa incrivelmente culpada.

Eu quase parei de respirar ao ouvir aquilo. Queria sair dali, temendo que ela me dissesse que tinha me esquecido e se apaixonado por meu irmão. Mas me mantive firme, ouvindo pacientemente o que ela tinha para dizer. Ela continuou:

— Phet disse que eu ficaria feliz com qualquer um de vocês dois e que em breve teria que fazer uma escolha. E eu acredito nele.

— E o que foi que Kishan disse?

— Ele disse que gosta de pensar que pode me fazer feliz. Ele também disse que quer a mim e quer ficar comigo mais do que tudo, mas que vê como eu olho para você, que eu ainda tenho sentimentos fortes por você, e que não quer ser meu plano B. Que se eu ficar com ele, que seja porque eu o amo e não porque não posso ficar com você. Kishan me contou que você o perdoou por tudo o que aconteceu no passado e que vocês estão se dando bem agora, e que se eu te escolher, ele vai conviver com isso.

Eu sorri ao pensar em como Kishan estava diferente, maduro. Antes ele era impulsivo e competitivo e acho que dificilmente abriria mão assim de uma luta. Fiquei me perguntando se eu merecia o amor de Kelsey, se Kishan não seria mais digno dela por ser tão altruísta.

Mas o certo é que eu a queria. E se ela ainda me quisesse, eu suportaria toda a dor para ficar com ela e fazê-la feliz. 

— E, quanto a você, só quero dizer que sinto muito por ter gritado com você na selva. Sei que tenho sido uma chata ultimamente, e peço desculpas. Eu estava irritada e magoada, e joguei a culpa em você.

— Talvez eu merecesse a culpa — Ergui a sobrancelha e sorri— Então, você veio aqui me dar um beijinho e fazer as pazes?

— Vim fazer as pazes.

— Certo. Vamos ver se entendi direito. Kishan prometeu não beijar você até ter certeza de que não há mais nada entre nós.

— Isso.

— Você prometeu alguma coisa para mim quando estávamos juntos? Tipo, que não ia beijar outros homens?

— Nunca prometi nada sobre beijar, especificamente. Mas, depois que ficamos juntos, eu não quis beijar mais ninguém. Para ser muito sincera, antes de você eu também não tinha tido vontade de beijar alguém.

— Certo. Cheguei a prometer algo a você?

— Chegou, mas não importa mais, porque você não é a mesma pessoa.

— Ponha para fora, Kelsey. Quero saber exatamente o que fiz para magoá-la, além da questão óbvia da amnésia.

— Está bem — ela expirou com força. — Está lembrado da minha festa de aniversário?

— Estou.

— Você me deu meias.

— Meias?

— No Dia dos Namorados, você me deu os brincos da sua mãe. Eu lhe disse que poderia ter me dado meias. Você respondeu exatamente o seguinte: “Meias não são um presente romântico, Kells.” No meu aniversário, você falou que não era muito fã de sorvete de pêssego com creme, mas antes, em Tillamook, escolheu pêssego com creme porque disse que tinha o meu cheiro. Também afirmou que gostava mais do perfume de Nilima do que do meu cheiro natural.

— Tem mais?

— Tem. Você disse que nunca mais iria voltar a dançar com Nilima e fico com ciúme quando fala dela. E, falando nisso, você nunca mais demonstrou ciúme. Costumava bancar o ciumento o tempo todo, e agora não se importa... nem com a paquera de Kishan. Ele está dando em cima de mim desde Shangri-lá. Normalmente, você ficaria bastante aborrecido com isso. Todas essas coisas estão me incomodando desde que nós voltamos.

Ela continuou:

— Uma vez, eu disse que tinha escolhido você... não Kishan. Mas agora Phet diz que também posso ser feliz com ele e que terei que fazer uma escolha em breve. De certa maneira, é legal saber isso porque, se eu não puder ficar com você e não puder fazê-lo feliz, pelo menos eu supostamente poderia fazer Kishan feliz, apesar de eu não conseguir me imaginar feliz sem você.

Sua voz falhou.

— E já que estamos confessando tudo... eu adoro os seus poemas. Para mim, são mais preciosos do que qualquer outra coisa. E... sinto sua falta. É difícil, estranho e perturbador estar perto de você sem estar com você. Ah, e tem mais uma coisa: aquela música, a que você não consegue lembrar, é uma das que escreveu para mim. E eu prometi... prometi nunca mais abandonar você.

Ela baixou os olhos e ficou assim por algum tempo. Quando ela finalmente me olhou eu a encarava. Sentia um carinho enorme por aquela mulher e queria retribuir todo o amor que ela tinha por mim. Queria consolá-la e ser aquilo que ela esperava de mim. Eu não tinha mais dúvidas: Eu estava apaixonado por ela...

Depois de um momento de reflexão, eu disse:

— Bom, essa foi uma confissão e tanto. Acho que é a minha vez — eu fiz uma breve pausa. — Eu só sinto quando você está por perto.

— Como assim?

— Quero dizer que, na maior parte do tempo, é como se eu estivesse entorpecido. Só me sinto vivo quando estou próximo de você. Não consigo tocar, ler, estudar, nem escrever, a menos que esteja por perto. Você é minha musa, strimani. Parece que não tenho vida sem você. E, como estamos nos abrindo, tenho bastante certeza de que estou me apaixonando por você de novo. Já no que diz respeito ao ciúme, eu diria que essa emoção definitivamente está retornando. Sinto muito pelas meias. Ninguém me disse que haveria uma comemoração até o último minuto. Kishan jogou o presente para mim do nada, e agora estou achando que ele pode ter feito isso de propósito.

Dizer aquilo foi como tirar um peso das minhas costas. Eu retomei o fôlego e continuei:

— Eu gosto, sim, do seu cheiro. Agora que mencionou, pêssego com creme é uma descrição adequada. Desculpe pelo sorvete, mas gosto mais de manteiga de amendoim com chocolate. Prometo não dançar com Nilima. Acho que você é linda e, se não acredita em mim, pode reler o meu poema. Era você que eu estava descrevendo. Acho você interessante, doce, inteligente e altruísta. Gosto até do seu temperamento. Acho bonitinho. E, se isso não me causasse tanta dor, eu lhe daria um beijo agora mesmo.

— Daria?

— Sim, daria. Será que o que falei deu conta de tudo?

— Deu.

— Tem certeza de que não prometi mais nada para você? Tem mais alguma coisa que deixou você irritada?

Ela hesitou.

— Tem, sim. Tem mais uma coisa. Uma vez você prometeu que nunca ia me abandonar.

— Eu não tive escolha. Fui capturado. Está lembrada?

— Você escolheu ficar para trás.

— Para salvar a sua vida.

— Da próxima vez, não faça isso. Quero ficar e lutar com você.

— Acho que não posso prometer isso. A sua vida é mais importante do que o meu desejo de tê-la por perto. Mas vou ficar com você enquanto puder. Está bom assim?

— Do jeito que está falando, parece mais a Mary Poppins. Você só vai ficar até o vento mudar. Mas acho que é o melhor que consigo.

Eu me virei para ficar de frente para ela.

— Tem mais uma coisa que quero que fique às claras.

— O que é?

— Você ainda... me ama?

Ela me olhou e seu olhos se encheram de lágrimas:

— Sim, eu ainda amo você.

— Então, que se danem as consequências.

Coloquei minha mão sob seu queixo erguendo seu rosto. Minhas mãos tremiam um pouco. Encostei meus lábios nos dela e a puxei, quase deitando-a sobre mim. Murmurei sob seus lábios enquanto a beijava:

— Se eu... não encostar na sua pele... não é tão ruim.

Fui resistindo ao incomodo e tracei beijos de sua boca até sua orelha. Ela acariciou meu cabelo, hesitante.

— Dói se eu tocar no seu cabelo?

— Não.

Eu sorri e beijei seu ombro, por cima da camiseta. Ela beijou minha cabeça, sobre os cabelos.

— É pior quando eu beijo você?

Ela me beijou na linha do couro cabeludo e então passou para a testa beijando-me suavemente.

— Quando você beija o meu cabelo não dói nem um pouco, mas quando os seus lábios tocam a minha pele, queima. De um jeito quase bom.

Eu voltei a beijar seus lábios apaixonadamente. Kelsey retribuiu com ardor, como se estivesse esperando por aquilo há muito tempo. Mas então a dor e o desconforto ficaram insuportáveis. Eu separei nossos lábios e me afastei dela rapidamente.

— Desculpe. Kelsey. Não consigo... ficar perto de você agora.

Ela se encolheu no canto e eu me levantei rápido, indo até a porta da varanda, para conseguir respirar. Eu olhei para ela e sorri, me desculpando.

— Você vai ficar bem?

Eu fiz que sim com a cabeça e pedi desculpa. Sai rápido dali, me transformei em tigre e fui caminhar pela mata.

Eu passara muito tempo com ela e me senti muito mal o resto do dia, por isso, resolvi evitá-la. Escrevi um bilhete e o deixei sobre sua cama. Dizia:

“Quem, tendo um coração para amar e, dentro dele, coragem para tornar conhecido o seu afeto, poderia se conter?”

Quem, de fato?

Eu passei a tentar com todo afinco encontrar o ativador da minha memória. Eu desejava me lembrar de meu passado com Kelsey e eu desejava mais que tudo não ter efeitos colaterais ao ficar com ela.

Depois que eu a beijei, eu não conseguia pensar em mais nada. Eu queria viver aquilo de novo, queria ficar com ela plenamente. Eu nunca me sentia tão vivo como quando estava com ela.

Eu me transformava em tigre para poder aproveitar a presença dela por mais tempo. Como homem, nós líamos junto e conversávamos. Ela parecia feliz, mas eu queria mais.

Kadam me ajudava a tentar encontrar o ativador. Nós passávamos muito tempo juntos, conversando para tentar ter alguma ideia, mas não conseguimos nada.

Kelsey e Kadam continuavam pesquisando a profecia, mas ela também passava muito tempo com Kishan. Eles viam filmes, treinavam , saiam juntos. Eu ficava com ciúmes, mas sabia que a presença dele fazia bem a Kelsey, então eu não interferia.

Um dia, Kadam anunciou que queria conversar conosco depois do jantar. Nos reunimos na sala do pavão e ele começou a contar a historia de Durga:

— Durga é conhecida por diversos nomes — começou ele. — Um deles é Parvati. O marido de Parvati, Shiva, ficou bravo porque ela não lhe dava a atenção que ele julgava merecer. Shiva a baniu para o mundo inferior, para viver como mortal numa vila de pescadores. O povo, ainda que pobre, era devoto e tinha construído muitos templos. Apesar de Parvati estar vivendo como humana, conservou sua beleza celestial e muitos quiseram se casar com ela. Shiva logo começou a sentir falta da mulher e ficou com ciúme da atenção que outros homens lhe davam. Então enviou seu servo Nandi para a vila de pescadores. Nandi roubou o colar dela em segredo e disse aos aldeões que o Colar de Pérolas Negras da linda donzela tinha sido escondido sob as ondas, protegido por um tubarão feroz. O homem que fosse capaz de matar o tubarão e encontrar o colar poderia tomá-la como esposa. Mas os pescadores não sabiam que Nandi assumira a forma daquele tubarão. Ele protegia, implacável, o colar para seu senhor, Shiva, que tinha planos de ir até lá recuperar as pérolas e deixar que os outros homens morressem tentando. Ele tinha esperança de que seu gesto fosse suficiente para reconquistar o afeto da esposa.

Kadam limpou a garganta e logo retomou seu relato.

— Muitos homens aceitaram o desafio, mas não foram bem-sucedidos. Alguns armaram estratégias para pegar o colar. Procuraram afastar o tubarão com carcaças ensanguentadas para depois ir atrás das pérolas, mas Nandi não era um tubarão qualquer. Ele era esperto e se escondia. Esperava os homens mergulharem e então atacava. Logo, todos os pretendentes tinham sido mortos e comidos pelo tubarão ou ficaram apavorados demais para tentar. Parvati se desesperava com a perda de tantas vidas. O tubarão Nandi patrulhava as águas, causando medo e confusão ao rasgar redes de pesca e atacar qualquer um que ousasse pôr os pés na água. Todo o vilarejo, em sofrimento, ficou aflito.

— Nossa! Exclamou Kelsey.

— Mas havia um deus menor que amava a cidade. Vários dos templos ali tinham sido construídos em sua homenagem. Ele era o deus dos raios, do trovão, da chuva e da guerra e, aliás, tinha dado a Parvati o poder de emitir raios. Seu nome era Indra. Ele ouvira falar da terrível praga que tinha se abatido sobre aquele povo e resolveu investigar. Indra viu aquela mulher linda, mas não reconheceu a deusa. Mesmo assim, imediatamente se apaixonou por ela. Resolveu conquistar sua mão disfarçando-se de mortal e matando o tubarão por conta própria. Isso tinha sido exatamente o que Shiva pensara em fazer, e não ficou nada feliz por ver outro homem, que não era nada menos do que um deus, apresentar-se ao desafio. Os dois deuses, disfarçados de homens, deram início à empreitada, ambos tentando matar o tubarão para encontrar o tesouro escondido. Indra detinha o poder do clima e causou grandes tempestades e ondas que confundiram Nandi, o tubarão. Enquanto Indra mantinha o tubarão ocupado, Shiva procurava o colar pelo oceano, e logo o encontrou. Ele retornou à terra no exato momento em que Indra arrastava a carcaça do monstro morto para a praia e afirmava que a deusa era dele, porque tinha matado o enorme peixe. Shiva revelou quem era e disse a Indra que o peixe na verdade não tinha sido morto, mas que era seu servo Nandi. O cadáver do tubarão se transformou no corpo vivo de Nandi. Então Shiva pôs o colar em Parvati. Quando o colar se assentou no lugar, a deusa se lembrou de quem era e abraçou o marido. Indra ficou irado e pediu aos aldeões que julgassem quem deveria ser o vencedor. Estando em uma posição desconfortável, o povo atribuiu a vitória a Shiva. As pessoas ficaram contentes por Indra ter matado o tubarão, mas o amor entre Shiva e Parvati era óbvio para todos. Shiva teria matado Indra naquele momento, mas Parvati o deteve. Ela implorou por sua vida, dizendo que as mortes causadas por ela já eram numerosas demais. Shiva concordou e levou-a de volta a seu reino. O povo se regozijou e voltou a prosperar, agora que o terror dos mares não estava mais lá. Mas Indra não esqueceu sua vergonha e os truques que tinham sido aplicados contra ele. Certa noite, ele se esgueirou para dentro da casa de Shiva e Parvati e roubou o colar. Usou seu poder para convocar as ondas e os ventos para inundar o vilarejo que o tinha traído e deixou todos os templos debaixo d’água, menos aquele que havia sido dedicado a Shiva e Parvati. Ele o deixou lá como um monumento vazio, um lembrete de que agora não existia mais ninguém para louvá-los. Então voltou a esconder o colar e ele próprio assumiu a forma do tubarão para que pudesse sempre vigiar seu prêmio e imaginar a raiva de Shiva toda vez que olhasse para o pescoço nu da mulher.

— Uau! Essa história é perturbadora — comentou Kelsey. — Uma coisa que me confunde na mitologia indiana é a maneira como os nomes sempre mudam. A cor da pele dela muda: dourada, preta, rosa. O nome dela muda: Durga, Kali, Parvati. A personalidade dela muda: é uma mãe amorosa, é uma guerreira brutal, é terrível em sua ira, é uma amante, é vingativa, é fraca e mortal, depois é poderosa e não pode ser derrotada. E ainda tem o estado civil: às vezes é solteira, outras vezes, casada. É difícil dar conta de todas as variações.

— Parece uma mulher normal para mim — caçoei.

Kishan riu e Kelsey nos olhou com raiva.

— E tubarões? Por favor, por favor, diga que não vai ter nenhum tubarão vigiando o colar.

— Não sei bem o que vai ter lá. Espero sinceramente que não enfrentem um tubarão. — Respondeu Kadam.

— Está com medo, Kelsey? Não precisa ficar. Desta vez, nós dois vamos estar com você — disse eu.

— Permita-me esclarecer a situação para você com uma citação de Shakespeare: “Se quiseres saber como vivem os peixes no mar, é como os homens na terra: os maiores comem os menores.” E eu sou um dos menores. Tigres não podem lutar contra tubarões. Dito isso, é melhor eu treinar meu poder de raio embaixo d’água. E se eu acabar me eletrocutando?—Disse ela, mordendo os lábios.

— Hum. Vou pensar sobre esse assunto — disse Kadam.

Kelsey apertou a mão de Kishan, preocupada e ele retribuiu o gesto, enquanto ela dizia:

— Se pudesse escolher, ia preferir enfrentar os cinco dragões.

Kadam assentiu com um gesto solene e retomou a palavra:

— Querem saber para onde nós vamos?

— Queremos.

— Vamos para a cidade de Indra. Ela se chama Cidade dos Sete Pagodes. Era uma antiga cidade portuária, construída no século sete, famosa por ter sete pagodes, ou templos, todos com um domo de ouro. Fica perto de Mahabalipuram, no litoral leste da Índia. De fato, muitos estudiosos não acreditavam que existisse até que um terremoto abalou o oceano Índico em 2004. O tsunami que veio em seguida mexeu com os depósitos de areia e revelou uma cidade submarina complexa. Antes de o tsunami atingir o litoral, a água recuou e as pessoas que ficaram bem acima do nível do mar relataram ter visto ruínas de construções e pedras grandes, mas a água logo voltou a cobrir tudo. Desde então, as muralhas da cidade foram sendo redescobertas, e a uma distância de pouco menos de um quilômetro do litoral. Agora encontraram estátuas de elefantes, cavalos, leões e divindades. A única construção que ficou acima do nível do mar foi o Templo da Praia. Durante séculos haviam sido transmitidas histórias sobre a tal cidade e repassados relatos de quem teria visto a cidade afundada brilhando sob as ondas, peixes gigantes nadando pelas ruínas e joias reluzindo intocadas porque qualquer pessoa que tentasse mergulhar ali seria amaldiçoada e nunca mais voltaria à tona.

— Parece um lugar fabuloso — Kelsey comentou, irônica.

— Os achados causaram tanto alvoroço que vários livros foram escritos a respeito do lugar, e muitos arqueólogos o estudaram. Li num livro que Marco Polo registrou a cidade quando a visitou em 1275 e disse que os domos cobertos de cobre dos templos eram um ponto de referência para os navegadores. Muita gente desprezou sua afirmação ou achou que estivesse falando de outra cidade. Tenho a sensação de que é este o lugar em que devemos procurar o Colar de Pérolas Negras.

— Certo. Vamos encarar essas aulas de mergulho.— Disse Kelsey

— Primeiro, acho que precisamos trocar de acomodações.

— Para onde vamos? — perguntou, confusa.

Kadam juntou as mãos e respondeu:

— Para o iate, é claro.


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