A maldição do tigre - POV Ren escrita por Anaruaa


Capítulo 23
Crise no relacionamento




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Saímos do alcance da gigantesca árvore de agulhas e olhamos a cidade. O rio corria até seus muros de pedra cinza clara e se bifurcava, circundando-a como um fosso.

— Estamos ficando sem luz, Kelsey. E foi um dia duro. Por que não acampamos aqui, dormimos um pouco e entramos na cidade amanhã?

— Parece bom para mim. Estou exausta.

Saí para procurar lenha. Encontrei galhos mortos perto dali. Me abaixei para recolhê-los e comecei a sentir agulhas arranhando minha pele. Mesmo os galhos mortos eram capazes de machucar, embora não tão profundamente quanto os galhos vivos das árvores.

Voltei e acendi a fogueira. Kelsey encheu uma panela com água de uma garrafa e colocou sobre o fogo. Fui buscar mais galhos enquanto Kelsey montava o acampamento.

Voltei com mais madeira e mais arranhões. Kelsey me entregou o jantar: um pacote de comida desidratada e um pouco de água fervente. Despejei a água no pacote e fiquei imaginando como seria ter uma vida normal, chegar em casa do trabalho e encontrar Kelsey preparando o jantar, um bando de crianças gordinhas pulando no meu colo... Sorri diante da ideia. 

Kelsey me tirou dos meus devaneios:

— Ren, você acha que aqueles kappa virão atrás de nós durante a noite?

— Não. Eles ficaram na água esse tempo todo e, se a história for precisa, eles também têm medo do fogo. Vou garantir que o fogo queime a noite toda.

— Talvez devêssemos ficar de guarda. Só por segurança.

Sorri irônico e perguntei quem ficaria com o primeiro turno. Kelsey se ofereceu e eu me diverti com a ideia:

— Ah, uma brava voluntária?

Ela me olhou com ódio, deu uma garfada na comida, depois me perguntou, com a voz pesada de quem está com raiva:

— Está zombando de mim?

Coloquei a mão no coração dramaticamente enquanto respondia:

— De jeito nenhum! Eu já sei que você é corajosa. Não precisa me provar isso.

Ficamos calados e terminamos o jantar. Eu me agachei diante da fogueira e coloquei mais lenha, enquanto pensava arrependido na brincadeira de antes.

"Acho que Kelsey se ofendeu e eu lhe devo desculpas." 

Eu me levante e sentei a seu lado. Ela estava quieta observando as chamas, olhando para a frente quando me sentei. Eu peguei a mão dela.

— Kells, agradeço por se oferecer para montar guarda, mas quero que descanse. Esta jornada é mais dura para você do que para mim.

— É você quem está sendo todo arranhado. Eu me limito a seguir seus passos.

— Sim, mas eu me curo rápido. Além disso, não acredito que haja motivo para preocupação. Tenho uma proposta: eu cubro o primeiro turno e, se nada acontecer, nós dois dormimos. Que tal?

Ela me olhou carrancuda mas não me respondeu. Ela estava mesmo irritada comigo.

Então tentei distraí-la brincando com seus dedos. Virei sua mão e comecei a traçar as linhas de suas palmas com os meus dedos. Era bom acariciar a pele dela. Me relaxava. Olhei para seu rosto e ela estava me observando. Seus olhos estavam parados em meus lábios e ela parecia distraída.

— Kelsey?

Ela desviou o rosto para a frente. Continuei acariciando sua pele. Sorri enquanto tocava a parte interna de seu braço.

— Sua pele é tão macia.

Ela ainda parecia carrancuda. Encostei o nariz na base de sua orelha e fiquei ali brincando e sentindo o cheiro dela. Senti sua pele se arrepiar e seu corpo estremecer. Aproximei meus lábios de sua orelha e sussurei:

— Kells, diga que concorda com o meu plano.

Ela se afastou de mim de repente e respondeu cerrando os dentes:

— Está bem, você ganhou. Concordo. Embora você esteja me coagindo.

Rindo eu perguntei a ela como a estaria coagindo.

— Em primeiro lugar, você não pode esperar que eu pense com coerência quando está me fazendo carinho. Em segundo, você sempre sabe como conseguir o que quer de mim.

— Verdade?

— Claro. Você só precisa sorrir e pedir com gentileza, tocar em mim como quem não quer nada, e então, antes que eu me dê conta, já conseguiu o que queria.

— É mesmo? — zombei baixinho. — Eu não tinha a menor ideia de que exercia esse efeito em você.

Aquela era uma informação muito interessante que eu poderia usar em meu favor mais tarde. Toquei o rosto dela e o virei para mim. Tracei todo o contorno com meus dedos. Desci até o pescoço, a base dos ombros e deslizei até o decote, sentido a corrente que prendia o amuleto. Acompanhei a corrente até tocar nele. 

Pude sentir o coração de Kelsey bater descontroladamente e senti sua respiração ofegante. Percorri o caminho de volta até seu rosto. Ela engoliu seco quando me inclinei levemente sobre ela falando baixinho:

— Vou ter que me aproveitar mais disso no futuro.

Ela estremeceu e ficou tensa. Mas eu estava muito satisfeito ao perceber o feito que eu causava nela. Era o mesmo efeito que ela causava em mim. Ela me desejava tanto quanto eu a ela. 

Levantei-me para percorrer o perímetro do acampamento a fim de me assegurar que não havia nenhum perigo por perto. Ademais, eu ainda tinha olfato e audição de tigre, o que me garantiria a percepção da aproximação de um inimigo eventual.

Voltei para o acampamento e encontrei Kelsey sentada exatamente onde eu a deixara. Ela estava perdida em pensamentos. Sentei-me a seu lado:

— O que você está pensando?

Ela respondeu sem me olhar.

— Nada importante.

Senti que havia algo errado, mas concluí que era só cansaço. Levantei-me e anunciei que faria a primeira vigília:

— Embora não considere necessário. Ainda tenho meus sentidos de tigre. Poderei ouvir ou farejar os kappa se eles decidirem sair da água.

— Ótimo.—Ela respondeu rispidamente.

— Você está bem?

— Estou bem — disse bruscamente, levantou-se e começou a vasculhar a mochila. — Avise quando seus super sentidos começarem a formigar.

— O quê? Perguntei confuso

Ela colocou as mãos no quadril e respondeu em um tom agressivo:

— Você também pode saltar de edifícios altos?

— Bom, eu ainda tenho minha força de tigre, se é a isso que você se refere.

— Maravilha. Vou acrescentar super-herói à sua lista de prós.

Eu franzi a testa. Não estava conseguindo compreender o tom que Kelsey estava usando. Parecia estar com raiva de mim.

— Não sou nenhum super-herói, Kells. O mais importante no momento é que você descanse um pouco. Vou ficar de olho por algumas horas. Então, se nada acontecer eu me junto a você.

Sorri com essa possibilidade.

Ela parou e ficou me olhando com uma expressão amedrontada, imóvel. Ela observava meu rosto, parecendo que tentava decifrar algo.

Kelsey apanhou sua velha colcha de retalhos e foi para o outro lado da fogueira deixando-me só. Deitou-se no chão enrolando-se como uma múmia na colcha.

Passados alguns minutos, ela começou a falar comigo:

— Ren? Onde você acha que estamos? Não acredito que isso acima de nós seja o céu.

— Acho que estamos em algum lugar subterrâneo.

— É quase como se tivéssemos vindo parar em outro mundo.

Ela ficou se remexendo no chão inquieta. Depois de um tempo eu perguntei qual era o problema.

— O problema é que estou acostumada a descansar a cabeça em um travesseiro quente de pelo de tigre.

Fiquei feliz em saber que ela estava sentindo a minha falta...

— Humm. deixe-me ver o que posso fazer.

— Não se preocupe. Estou bem — ela parecia estar em pânico

Eu ignorei seu protesto. Peguei-a em meu colo, com a colcha e tudo e a carreguei até o meu lado da fogueira. Coloquei-a de lado, virada para o fogo e deitei-me atrás dela, colocando meu braço sobre sua cabeça.

— Assim está mais confortável para você?

— É… sim e não. Minha cabeça descansa melhor nessa posição. Mas infelizmente o restante do meu corpo não consegue relaxar.

— Por que não?

— Porque você está perto demais para que eu possa relaxar.

— Quando eu era um tigre, isso nunca a incomodou — disse confuso.

— O tigre e o homem são duas coisas completamente diferentes.

Não sei se entendi errado, mas me pareceu que Kelsey preferia dormir com o tigre. Isso me deixou um pouco irritado e decepcionado. 

Eu coloquei o braço na cintura dela e a puxei para mais perto. Nossos corpos ficaram muito próximos e a sensação era ótima.

— Não parece diferente para mim. É só fechar os olhos e imaginar que ainda sou um tigre.

— Não funciona assim.

Eu gostava de dormir com ela na forma de tigre. Gostava de sentir como ela relaxava quando encostava em meu corpo de tigre e se sentia segura. Era bom. Mas senti-la assim como homem era pleno. 

Senti o corpo dela tenso em meus braços. Queria que ela relaxasse. Encostei o nariz em sua nuca e comecei a acariciá-la e sentir seu cheiro.

— Gosto do cheiro do seu cabelo. 

Comecei a ronronar, como eu fazia na forma de tigre. Fiquei surpreso por ser capaz de fazer isso como homem. Eu sabia que isto a deixava relaxada e a fazia dormir.

— Ren, pode não fazer isso agora?

Ergui a cabeça confuso.

— Gosta quando eu ronrono. Ajuda você a dormir melhor.

— Sim, mas isso só funciona com o tigre. Aliás, como é que você consegue fazer isso como homem?

— Não sei. Eu apenas faço

Coloquei o rosto novamente em seu cabelo e acariciei seu braço.

— Ren, me explique como você planeja montar guarda assim.

Meus lábios roçaram seu pescoço.

— Eu posso ouvir e farejar os kappa, lembra?

Eu estava fazendo de tudo para deixá-la calma e relaxada. Eu só queria que ela dormisse bem e descansasse. Mas parece que tudo o que eu fazia só estava servindo para deixá-la mais tensa e irritada.  

Então pensei que talvez ela estivesse com medo de mim. Com medo que eu passasse dos limites, talvez. Ergui a cabeça e olhei para o rosto dela dizendo:

— Kelsey, espero que saiba que eu jamais a machucaria. Não precisa ter medo de mim.

Ela se virou e tocou o meu rosto, olhou dentro dos meus olhos, suspirou e disse:

— Não tenho medo, Ren. Confiaria minha vida a você. Só que nunca estive tão perto assim de alguém.

Compreendi aliviado. Eu também nunca tinha estado tão perto assim de alguém, a não ser dela mesma, mas como tigre. Eu estava adorando aquela sensação de proximidade. 

Sorri e lhe beijei levemente nos lábios. Deitei-me novamente e avisei a ela:

— Agora vire-se e durma. Estou avisando que pretendo dormir com você nos braços a noite toda. Quem sabe quando vou ter essa chance de novo, se é que a terei. Portanto, tente relaxar e, pelo amor de Deus, não fique se mexendo!

Eu a puxei pra mais perto, aninhando-a em meu peito e relaxei. Nós dormimos assim a noite toda, e foi o melhor sono da minha vida.

Quando acordamos, Kelsey estava deitada sobre meu peito e meus braços estavam ao redor dela. Nossas pernas estavam entrelaçadas e estávamos deliciosamente perto um do outro. 

Percebi quando ela acordou. Eu já havia despertado mas mantinha meus olhos fechados. Por mim eu não sairia dali nunca.

Senti os dedos dela tocarem meu rosto. Ela seguiu o desenho da minha sobrancelha, depois afastou o cabelo que estava caindo na minha testa. Senti que ela pretendia se levantar e a abracei com força.

— Nem pense em sair daqui — murmurei sonolento, e a puxei de volta para se aninhar comigo. 

Ficamos assim por mais alguns minutos, até que a posição ficou desconfortável e o sono me abandonou de vez. Eu me virei de lado, esticando o corpo e a puxei para mim. Dei-lhe um beijo na testa, abri os olhos e sorri pra ela.

Kelsey me olhava intensamente, mas não sorriu de volta. Ela mordeu os lábios e ficou pensativa. Eu prendi uma mecha solta do cabelo dela atrás da orelha. 

Eu estava absolutamente feliz em acordar assim, com ela em meus braços e com o rosto dela como a minha primeira visão do dia.

— Bom dia, rajkumari. Dormiu bem?

— Eu… você… eu… dormi muito bem, obrigada

Então rolou pra longe de mim e se levantou, ficando de costas pra mim. Eu me levantei e fui até ela. Coloquei meu braços ao redor de sua cintura e sorrindo encostei os lábios na orelha dela pra lhe dizer que aquela tinha sido a melhor noite de sono que eu tive em 350 anos.

Para mim, estava tudo perfeito. Eu não precisava me transformar em tigre e estava com ela. Ela era linda, cheirosa, perfeita. Eu amava tudo nela e a queria mais que tudo. 

Mas ela não parecia confortável e apenas murmurou:

— Que bom pra você — e se afastou de mim.

Eu fiquei ali, parado, confuso olhando para as costas dela enquanto ela recolhia os objetos e os colocava na mochila.

Ela não falou comigo e parecia estar tentando me evitar. 

Eu a ajudei a arrumar tudo e quando terminamos ela pegou uma barra de cereais e me entregou, pegou outra para si e começou a caminhar comendo a dela. Eu a segui e fiquei ao lado dela. Segurei sua mão, mas depois de um minuto ela a soltou para pegar algo na mochila, depois colocou as duas mãos ao redor das alças.

Todas as vezes em que segurei sua mão, ela inventou uma desculpa para nos separar. Eu perguntei se havia algo errado mas ela desconversou. 

No início eu achei que estava exagerando, mas ela se desvencilhava sempre que eu tentava tocá-la. Eu tentava conversar com ela, que praticamente me ignorava.

Parei de insistir. Fui caminhando e tentando entender o que estava acontecendo. Se eu havia feito algo para magoá-la, ela não queria me dizer o que era. Fiquei refazendo nossos passos mentalmente e não percebi nada. 

Até a noite anterior estava tudo bem. Talvez ela tenha ficado com raiva por eu ter dormido ao invés de ficar de vigília como eu tinha prometido. Mas eu estava atento, se ouvisse qualquer som eu despertaria imediatamente. Além disso, havia corrido tudo bem, nada aconteceu e eu estava certo afinal!

O comportamento dela havia mudado durante a noite. 

"Será que eu fiz alguma coisa enquanto dormia que a fez se sentir desrespeitada? Eu não percebi nada".

Foi a primeira vez que eu dormi como homem em muitos séculos. E foi a primeira vez em 350 anos que eu dormi com uma mulher (exceto na forma de tigre). Não vou dizer que fui completamente imune a isso, é claro que meu corpo reagiu às sensações, assim como o dela, mas eu nunca tive a intenção de desrespeitá-la. 

Se era esse o caso, ela poderia ter falado comigo ao invés de me tratar da forma como estava tratando, afinal, éramos adultos e éramos amigos acima de tudo, deveríamos resolver nossos problemas com maturidade. 

Comecei a ficar ressentido, magoado e finalmente, com raiva. Resolvi que se Kelsey iria me ignorar, eu também a ignoraria.

Continuamos caminhando com aquele clima ruim entre nós. Até que chegamos a um fosso e encontramos uma ponte levadiça que estava levantada, mas pendia ligeiramente de um lado, como se estivesse quebrada.  Olhei o rio e comentei que não poderíamos atravessá-lo a nado, pois havia Kappas nele.

— E se arrastássemos um tronco até aqui e o usássemos como ponte?

— É uma boa ideia

Caminhei até ela e a fiz virar de costas. Ela ficou nervosa e perguntou, na defensiva:

— O que você está fazendo?

Me deu uma raiva tão grande, que eu quis me jogar no rio e atravessá-lo nadando apesar dos Kappa, só pra ficar longe dela:

— Só estou pegando a gada.. Não se preocupe. Isso é tudo que vou fazer. — acrescentei sarcástico.

Peguei a gada e fechei a mochila agressivamente, descontando toda a minha raiva naquele zíper. 

Fui até uma árvore e bati nela duas vezes, com muita força. Usei toda a minha força de tigre, que combinada com a raiva e a frustração que eu estava sentindo, derrubou a árvore de uma vez. Continuei acertando a árvore com a gada, arrancando os galhos do tronco. 

Kelsey se aproximou e ofereceu ajuda:

— Alguma coisa que eu possa fazer?

Respondi sem me virar pra ela:

— Não. Só temos uma gada.

— Ren, por que está com raiva? Tem algo aborrecendo você?

Me virei pronto para uma discussão. Ela vinha me evitando, fingindo que eu não estava ali, me fazendo sentir o pior dos homens e agora vinha me perguntar se tinha algo me aborrecendo, ela estava de brincadeira? 

Olhei em seu rosto para tentar entender o que se passava com ela, mas ela o virou e ficou fitando os galhos das árvores. Frustrado, resolvi ignorá-la. Virei-me de volta para o tronco, lhe respondendo:

— Não tem nada me aborrecendo, Kelsey. Estou bem.

Quando terminei de limpar o tronco, devolvi a gada para Kelsey, evitando o contato visual com ela. Abaixei-me e agarrei uma ponta do tronco. 

Kelsey correu e abaixou-se para pegar a outra ponta. Eu gritei sem olhar para ela:

— Não!

Ela se afastou assustada. 

Não me arrependi. Eu estava muito irritado naquele momento e queria distância de Kelsey. Desde que a conhecera, a presença dela sempre me fez bem, eu sempre quis tê-la por perto. Ela me fazia sentir humano. Mas naquele momento, eu não conseguia sequer olhar para ela. 

Eu queria gritar com ela, queria extravasar aquele sentimento ruim que estava dentro de mim. Nunca tinha me sentido assim antes. Nunca tinha me sentido tão humano...

O tronco que eu estava carregando, era como os galhos daquela árvore, cheio de agulhas, que estavam rasgando a minha pele onde se encostavam. Mas eu ignorava totalmente esse fato.

Voltamos ao riacho e eu assentei o tronco, após encontrar um bom lugar para isso. Vi quando Kelsey se aproximou do tronco e percebeu as agulhas. Ela então voltou-se para mim e disse:

— Ren, deixe-me ver suas mãos e seu peito.

— Esqueça, Kelsey. Eu vou sarar.

— Mas, Ren…

— Não. Agora se afaste.

Eu caminhei até a outra extremidade do tronco e o ergui, apoiando-o em meu peito. Enquanto isso, fiquei pensando nas atitudes de Kelsey. Como ela pode em um momento me ignorar e destratar, e em seguida vir toda preocupada querendo ver meus machucados? Eu não conseguia entender e me sentia cada vez mais frustrado.

Quando o tronco estava no lugar, resolvi testar para ver se era seguro atravessar. Mandei que Kelsey ficasse onde ela estava. Falei com autoridade e frieza e ela obedeceu. 

Me transformei em tigre, atravessei o tronco e saltei para a fenda de onde a ponte levadiça pendia ligeiramente aberta. Ali, abri caminho com as garras e consegui chegar até a ponte e baixá-la. 

Kelsey passou por ela enquanto eu a esperava do outro lado. Resolvi continuar a caminhada sob a forma de tigre.

Entramos na cidade de pedra de Kishkindha. A maior parte dos edifícios tinha dois ou três andares. A pedra acinzentada dos muros externos também era a usada nas construções. Era polida como granito e continha pedaços cintilantes de mica que refletiam a luz.

Uma estátua gigante de Hanuman erguia-se no centro, e cada canto e cada fresta da cidade encontrava-se coberto com macacos de pedra em tamanho natural. Sobre os prédios, os telhados e as sacadas viam-se estátuas de macacos. Entalhes de símios cobriam as paredes dos prédios. As estátuas representavam várias espécies diferentes de macaco e com frequência se agrupavam em número de dois ou três.

Enquanto atravessávamos a cidade, Kelsey se abaixou para colocar Fanindra, que havia despertado, no chão. A cobra ergueu a cabeça e provou o ar com a língua várias vezes. Então começou a colear pela cidade antiga. Kelsey e eu a seguíamos.

Então ouvi Kelsey se dirigir a mim, com a voz irritantemente doce:

— Você não precisa se manter como tigre só por minha causa

Eu me mantive seguindo em frente, sem sequer voltar um olhar em sua direção. Estava decidido a fingir que ela não estava ali.

— Ren, é um milagre que você possa ficar na forma humana. Não faça isso consigo mesmo 

"O quê? eu não posso acreditar no que ela está dizendo."—  Pensei irritado 

 — por favor. Só porque está com rai…

Me transformei em homem e girei, ficando de frente pra ela e a interrompi, falando com raiva:

— Eu estou com raiva! Por que não deveria permanecer como tigre? Você parece muito mais à vontade com ele do que comigo! Falei magoado.

Naquele momento, percebi que o tigre e o homem eram duas entidades diferentes. Eu tinha ciúmes do tigre. Kelsey nunca ignorou o tigre, nunca deixou de falar com ele. Mesmo agora, ela ignorou o homem por horas, mas dirigiu-se ao animal com doçura.

— Eu me sinto mais à vontade com ele, mas não porque eu goste mais dele. É complicado demais discutir isso com você agora.

A resposta dela me deixou mais frustrado. Eu não sabia o que dizer, nem o que fazer. Passei as mãos pelo cabelo e perguntei ansioso:

— Kelsey, por que está me evitando? É porque estou indo rápido demais? Você não está pronta para pensar em mim dessa maneira, é isso?

— Não. Não é isso. É só que — ela torcia as mãos — eu não quero cometer um erro ou me envolver em algo que vá levar um de nós ou os dois a se machucar. Também não acho que este seja o melhor lugar para falar sobre isso.

Ela baixou os olhos, me evitando.

Eu permaneci em silêncio, olhando para ela, tentando entender o que estava acontecendo entre nós, esperando por uma resposta. Mas ela continuava calada. Então eu desisti:

— Ótimo.

— Ótimo?

— É, ótimo. Agora me dê a mochila. É minha vez de carregá-la um pouco.

Fanindra estava parada, nos esperando. Eu peguei a mochila de Kelsey e a coloquei em minhas costas.

Fanindra voltou a traçar seu caminho e nós voltamos a segui-la. Passamos para as sombras escuras entre os edifícios, onde o corpo dourado de Fanindra brilhava. Ela escorregou entre frestas sob portas emperradas, as quais eu abri empurrando meu corpo contra elas. 

Fanindra seguia um caminho fácil para cobras mas impossível para humanos ou tigres. Tive que farejá-la muitas vezes para encontrá-la após ela entrar por rachaduras no chão e desaparecer. Sempre a encontrávamos enrodilhada e descansando, esperando pacientemente que a alcançássemos.

Por fim, ela nos levou até um tanque retangular cheio até a borda com água verde repleta de algas. O tanque ia até a cintura de Kesley e em cada canto erguia-se um alto pedestal de pedra. No topo de cada pedestal havia um macaco esculpido, todos olhando a distância, um para cada ponto cardeal.

As estátuas encontravam-se agachadas, com as mãos tocando o chão. Os dentes estavam à mostra. Suas caudas se curvavam sobre o corpo, alavancas robustas para aumentar o alcance da investida. Sob os pedestais, grupos de macacos de pedra de olhar maligno espiavam das sombras com suas caretas e olhos negros e ocos. Os braços compridos se estendiam à frente.

Degraus de pedra levavam ao tanque de água. Subimos e olhamos lá dentro. Na extremidade do tanque, na borda de pedra, havia uma inscrição.

— Você consegue ler? 

— Diz Niyuj Kapi. “Escolha o macaco”.

— Hum.

Examinamos as estátuas de macacos de cada um dos 4 cantos. Eram quatro estátuas, cada uma de uma espécie diferente.

— Ren, Hanuman era metade homem, metade macaco, certo? Que tipo de macaco era a metade macaco?

— Não sei. O Sr. Kadam saberia. Só sei dizer que estas duas estátuas não são de espécies nativas da Índia. 

 —Este aqui é um macaco-aranha, nativo da América do Sul. Este outro é um chimpanzé.

Ela me olhou boquiaberta, perguntando como eu sabia tanto sobre macacos. Cruzei os braços sobre o peito e comentei:

— Ah, então macacos são um tema de conversa aceitável? Talvez, se eu fosse um macaco e não um tigre, você me desse uma pista do motivo por que está me evitando.

— Não estou evitando você. Só preciso de um pouco de espaço. Não tem nada a ver com sua espécie. Tem a ver com outras coisas.

— Que outras coisas?

— Nada.

— É alguma coisa.

— Podemos voltar para o tema macacos? — Ela gritou

— Ótimo! — eu gritei de volta.

Nós ficamos ali por um minuto, os dois se olhando com raiva e frustração. Saí daquele estado infrutífero e comecei a analisar cada estátua, listando baixinho as características que eu conseguia me lembrar de cada espécie ali representada. Então ouvi Kelsey dizer, sarcástica, como se para si mesma:

— Eu não tinha a menor ideia de que estava acompanhado de um especialista em macacos, mas, é claro, você os come, certo? Então acho que essa seria a diferença entre, digamos, porco e frango, para alguém como eu.

Franzi a testa e tentei manter a calma. Eu já não estava com tanta raiva. Pelo menos ela estava falando comigo.

— Eu vivi em zoológicos e circos por séculos, lembra? E eu não… como… macacos!

Ela cruzou os braços e me olhou com raiva. Me afastei batendo os pés e me abaixei diante de uma das estátuas.

— Aquele ali é do gênero Macaca, nativo da Índia, e esse peludo é um babuíno, também encontrado aqui.

— Então, qual eu escolho? Tem que ser um destes dois últimos, já que os outros dois não são daqui.

Eu a ignorei, ainda observando as estátuas. Ela então declarou:

— Babuíno.

Eu me levantei, curioso e perguntei:

— Por que ele?

— A cara dele me lembra a da estátua de Hanuman.

— Então faça uma tentativa.

— Como é?

— Sei lá! Faça aquela coisa que você faz, com a mão— Falei impaciente

— Não sei se funciona.

— Ah, então esfregue a cabeça dele como uma estátua de Buda. Precisamos descobrir qual é o próximo passo — Falei apontando para o macaco.

Ela fechou a cara e se aproximou da estátua do babuíno. Tocou-lhe a cabeça, Deu tapinhas em suas bochechas, esfregou-lhe a barriga e puxou os braços, a cauda… Nada. Então ela tocou os ombros e empurrou. 

A estátua se moveu e o topo do pedestal deslocou-se para o lado, revelando uma caixa de pedra com uma alavanca. Kelsey puxou a alavanca.

A princípio nada aconteceu. De repente, o chão começo a tremer e a água do tanque a escoar. Olhei para Kelsey e os desenhos da sua mão tinham reaparecido. 

Sua mão parecia estar presa à alavanca. Eu agarrei seus braços e a puxei contra meu peito afastando-nos do tanque, ficamos observando a pedra se deslocar.

O tanque retangular rachou e se dividiu em dois. As duas metades começaram a deslizar em direções opostas. A água se derramou, batendo na pedra e rolando para o buraco que se abriu. Alguma coisa começou a emergir. 

Um galho se projetou do buraco, coberto por folhas douradas. Mais galhos surgiram e então um tronco. Ele continuou a subir até que a árvore toda estava diante de nós. Ela tinha cerca de três metros de altura e era coberta por pequenas flores brancas. Olhei bem para ela e reconheci uma mangueira.

Segurei a mão de Kelsey e a conduzi até a árvore. Ela estava impressionada com a beleza da mangueira. Estiquei a mão e colhi uma flor branca e perfumada, enquanto Kelsey observava encantada a árvore dourada.

Olhando aquela árvore linda e a flor em minhas mãos, me esqueci dos nossos desentendimentos e me aproximei. A flor era bonita e perfumada como Kelsey. Dei um passo na direção dela e ergui o braço para colocar a flor em seus cabelos.

Mas ela se afastou de mim. 

Deu um passo à frente, fingindo não ter me visto. 

Isso me magoou mais do que qualquer coisa. Eu não entendia porque ela estava agindo daquela maneira. Esmaguei a flor com a mão e a joguei no chão. Não era raiva, não mais. Era mágoa.

Eu amava  Kelsey e jamais faria qualquer coisa para magoá-la, pelo menos não intencionalmente. Ela, por outro lado, tinha meu coração em suas mãos e o estava machucando de propósito. Eu estava triste e decepcionado.

Continuei observando a árvore, contornando-a até que a vi. Uma esfera dourada balançando suavemente em um galho. Eu o apontei para Kelsey.

— Uma manga. É claro. Faz sentido.

— Por quê?

— A manga é um dos principais produtos de exportação da Índia. É essencial para o nosso país. É possível que seja o recurso natural mais importante que temos. Portanto, o Fruto Dourado da Índia é uma manga. Eu devia ter imaginado.

Olhando para o alto, Kelsey me perguntou como alcançaríamos o fruto lá no alto.

— Suba nos meus ombros. Precisamos fazer isso juntos.

Ela riu.

— Ren, acho melhor você inventar outro plano. Tipo saltar como vocês super tigres fazem e pegá-lo com a boca ou algo assim.

Achei graça da proposta, e rindo respondi a ela:

— Não. Você vai se sentar nos meus ombros. Falei apontado o dedo para ela.

— Por favor, pare de dizer isso — ela respondeu gemendo

— Ande logo. Eu vou dizendo a você o que fazer. É como uma brincadeira de criança.

Com muito custo, ela subiu nos meus ombros. Eu quase tive que jogá-la lá no alto para ela não desistir. Eu a segurei e equilibrei seu peso nos meus ombros enquanto ia lhe dando instruções:

— Está vendo aquele galho grosso bem acima da sua cabeça?

— Sim.

— Solte uma das mãos e agarre-o.

— Não me deixe cair!

— Fique tranquila.

Ela segurou e se agarrou ao galho

— Ótimo. Agora levante a outra mão e pegue o mesmo galho. Vou ficar segurando suas pernas, não se preocupe.

— Ei, Ren, essa foi uma ótima ideia, mas ainda estou a mais ou menos meio metro do fruto. O que faço agora?

Eu já tinha pensado nisso. Sem avisá-la eu tirei os tênis dela e mandei que ela segurasse firme no galho. Quando ela o fez, eu a ergui, sustentando seu peso em meus braços.

— Ren, você está maluco? Sou muito pesada para você.

— É claro que não é, Kelsey . Agora preste atenção. Continue segurando o galho. Quero que você passe das minhas mãos para os meus ombros, primeiro um pé, depois o outro.

— Pronto. Vou tentar pegá-lo agora. Fique firme.

Kelsey se esticou e tocou o fruto, puxou uma vez, mas ele não se soltou. Ela o envolveu novamente com as mãos e puxou forte, arrancando o fruto dourado.

Nesse momento, ela ficou imóvel. Parecia estar congelada. E então ela caiu.


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