A maldição do tigre - POV Ren escrita por Anaruaa
Seguimos pelas escadas escuras. Meus olhos de tigre enxergavam bem apesar da luz fraca proveniente da lanterna de Kelsey e dos olhos brilhantes de Fanindra.
Segui na frente com Kelsey logo atrás de mim.
Kelsey parou para reler a profecia e as anotações feitas por Kadam.
— Não tenho a menor ideia de quais possam ser esses perigos — murmurou. — Tomara que os espinhentos sejam algum tipo de planta.
Kelsey estava nervosa e falava o tempo todo, listando animais que possuem espinhos. Ela pegou a gada dizendo que se sentiria mais segura com a arma em mãos.
Eu não estava farejando nenhum animal, mas continuava atento a qualquer surpresa.
O túnel logo se transformou em um caminho de pedras e quanto mais andávamos, mais iluminado ele ia se tornando. No entanto havia muita névoa, a qual pareceu se concentrar ao nosso redor quando paramos.
À medida em que seguíamos pelo corredor, este ia mudando: o piso tornou-se terra úmida, depois estávamos pisando em grama; as paredes secas tornaram-se úmidas, cobertas por musgos, pequenas plantas, até nos que estávamos em uma floresta.
Kelsey demorou a perceber onde estávamos, porque a névoa dificultava sua visão. Seguimos através de árvores e arbustos densos, que impediam a visualização do caminho à frente.
Eu me mantinha à frente e fui abrindo trilhas com o meu corpo, enquanto os ramos das árvores se encostavam em mim. Eu estava muito atento ao caminho, quando Kelsey gritou:
— Ren, pare! Os galhos estão nos arranhando. Eles têm agulhas na parte de baixo que seguem nossos movimentos. São eles os perigos espinhentos da profecia!
Parei imediatamente. Então, os galhos começaram a se enroscar em meu pescoço e cauda. Eu dei um salto, arrancando-os e me livrei deles. Kelsey gritou que teríamos que correr.
Começamos a correr, mas a floresta era densa e interminável. Depois de algum tempo, ouvi Kelsey gritando por mim:
— Ren, não posso ir mais rápido. Continue sem mim. Ultrapasse a linha das árvores. Você pode conseguir.
Ela estava exausta e arfava. Dei meia volta e fui até ela, parando a seu lado. Os galhos começaram a envolver meu corpo enquanto eu os atacava inutilmente com minhas garras.
Kelsey se aproximou e abaixou-se perto de mim. Havia um ramo enrolado em seu braço. Ela acariciou meu rosto de tigre e implorou:
— Ren, vá . Por favor, vá sem mim.
Havia lágrimas em seus olhos. Me transformei em homem e respondi:
— Temos que ficar juntos, lembra? Não vou deixá-la, Kelsey. Eu nunca vou deixar você.
Comecei a remover os ramos que a envolviam. Ela assentiu tristemente. Eu a ajudei a se levantar e peguei a gada de suas mãos. Comecei a usá-la para bater nos galhos que se enrolavam em torno da arma.
Pensei em bater no tronco das árvores. Me aproximei e golpeei com força. Deu certo.
Os ramos daquela árvore se enrolaram protetores ao redor do tronco contraído. Eu comecei a atacar as árvores para que pudéssemos avançar.
À medida que eu me aproximava de uma árvore, seu galhos me atacavam ferozmente, como se soubessem o que eu pretendia fazer. Eu estava muito machucado, sangrava e minhas roupas estavam rasgadas. Mas eu continuei atacando até que deixamos a floresta e chegamos a uma clareira, onde paramos.
Kelsey me ofereceu uma garrafa de água, que eu bebi em um só gole. Ela começou a examinar meus braços e costas. Eu estava muito machucado e encharcado de sangue e suor. Mas eu ainda estava cheio de adrenalina, por isso não sentia dor.
Kelsey pegou uma camiseta na mochila, a molhou com a água da garrafa e começou a passar em mim, limpando meu rosto e minhas costas. Era bom ter alguém cuidando de mim daquela forma. Era maravilhoso sentir o toque delicado de Kelsey. E o frescor do tecido molhado contra a minha pele quente me ajudaram a relaxar.
Então Kelsey percebeu algo que eu ainda não tinha me dado conta:
— Ren! Você está na forma humana há muito mais do que 24 minutos. Você está bem… sem contar os arranhões, é claro?
Parei um minuto para observar e percebi que não havia tremores em meu corpo.
— Eu me sinto… bem. Não sinto a necessidade de me transformar de volta.
— Talvez a gente já tenha quebrado a maldição!
Eu refleti por um minuto.
— Acho que não. Tenho a impressão de que devemos ir em frente.
— Por que não testamos? Veja se você pode se transformar em tigre.
Transformei-me normalmente e voltei a forma humana rapidamente.
— Talvez seja apenas a magia deste lugar que me permite ser humano.
Kelsey me olhou decepcionada. Eu sorri e beijei-lhe os dedos:
— Não se preocupe, Kells. Logo serei totalmente humano, mas por ora aceito esta dádiva pelo máximo de tempo que puder tê-la.
Meus ferimentos já estavam cicatrizando, então puxei Kelsey para perto de mim e comecei a observar os machucados dela. Peguei a camiseta e comecei a limpá-la, como ela tinha feito comigo. Ela ficou relutante no início, dizendo que os meus machucados eram mais graves, mas eu insisti.
— Está tudo bem. Você tem um arranhão feio no pescoço, mas acho que vai cicatrizar sem nenhum problema.
Eu passei o tecido úmido em seu pescoço e o pressionei ali por um instante. Então puxei a gola da camiseta dela com o dedo e perguntei:
— Tem outros lugares que queira que eu examine para você?
Eu estava brincando, mas se ela dissesse sim...
— Não, obrigada. Esses outros lugares eu mesma posso examinar.
Eu ri da resposta irritada de Kelsey. Levantei-me e a puxei para que continuássemos nosso caminho. Recolhemos a mochila e a gada e começamos a caminhar de mãos dadas.
Passamos por mais árvores de agulhas, mas estas estavam bem espaçadas e misturadas a outras árvores normais, assim pudemos nos manter fora de seu alcance. Eu entrelacei meus dedos nos de Kelsey e comentei:
— Sabe, é bom andar com você sem me preocupar com quanto tempo me resta.
— É verdade
Eu estava feliz. Havia muito tempo que eu desejava poder ser eu mesmo sem me preocupar com o tigre. Na verdade, desde que a maldição me atingiu eu sonhava com essa possibilidade. Poder estar como homem por um tempo indefinido e estando junto de Kelsey, era mais do que eu podia desejar. Eu me sentia abençoado e poderia até viver naquele lugar. Estava tudo perfeito.
Kelsey também parecia satisfeita. Nós caminhávamos em silêncio, aproveitando o momento. Nos olhávamos e sorríamos um para o outro, felizes por estarmos juntos.
Reencontramos uma trilha de terra batida e começamos a segui-la. O caminho ia na direção de algumas colinas e de um grande túnel que, deduzimos, as atravessava.
Não havia nenhum outro caminho a tomar, portanto entramos ali devagar, de olhos atentos ao que nos cercava.
Tochas acesas se alinhavam nas paredes de pedra e muitos outros túneis partiam do principal. Kelsey deu um pulo e disse assustada:
— Ren! Eu vi alguma coisa ali.
— Também vi algo.
Parecia que estávamos em uma grande colmeia de túneis e figuras apareciam continuamente em minha visão periférica. Kelsey pressionou seu corpo no meu e eu passei o braço pelos ombros dela. Comecei a ouvir vozes. Uma voz feminina chamava por mim. Então uma voz masculina respondeu:
— Estou aqui, Kells! Kells! Kells!
Era a minha voz. As vozes que ecoavam daquele túnel eram as nossas vozes.
Olhei para Kelsey que também parecia assustada. Eu a soltei e peguei a gada, segurando à minha frente e comecei a avançar lentamente, com Kelsey logo atrás de mim.
Ouvi muitos sons ao longo do túnel: a voz de Kelsey pedindo por socorro, a minha própria voz chamando por ela, rosnados de tigres, berros de medo e de dor.
Olhei para trás e vi um outro túnel que não estava ali antes. Kelsey não estava atrás de mim. Ouvi a voz dela gritando:
— Ren! Onde você está?
Segui para o túnel e a vi, mas ela não estava sozinha. O tigre negro estava com ela.
Me aproximei e chamei por ela, que me olhou e sorriu cinicamente, agarrando-se ao tigre negro.
Então ouvi outra voz como a de Kelsey vinda do outro lado:
— Ren socorro! Eu fui atacada!
Olhei na direção de onde via o som. Quando voltei a olhar para a frente, Kelsey e Kishan haviam sumido. A voz de Kelsey continuava me chamando. Corri em direção a ela.
— Kelsey? Kelsey! Cadê você?
— Ren! Estou aqui!
Quando a encontrei ela estava de costas para mim. Chamei por ela e ela se virou sorrindo e caminhou em minha direção. Me deu um abraço e disse:
— Que bom que você chegou, estava com medo de nunca mais te encontrar.
Ela virou o rosto para mim e disse que nunca esteve tão feliz. Me pediu para deixar tudo e vivermos ali, onde eu nunca mais precisaria me transformar em tigre.
— A única coisa de que precisamos é um do outro. Vamos ficar bem!
Tinha alguma coisa estranha. Aquela não era Kelsey. Eu a soltei e ela me olhou sorrindo
— Vamos Ren, você não me quer? Falou se insinuando
Me afastei dela e a imagem se dissolveu.
Ouvi um berro de dor vindo do outro lado. Corri até lá e a encontrei. Ela estava caída no chão.
Corri até ela e Me ajoelhei a seu lado. Segurei seu corpo inerte em meus braços. Eu não queria acreditar que era ela. Tinha que ser outra ilusão. Sussurrei em seu ouvido:
— Kelsey? É você? Kelsey, por favor. Fale comigo. Preciso saber se é mesmo você.
Mas ela não me respondeu. Ela estava morta. Fiquei desesperado e chorei implorando para que ela não me deixasse. Então ouvi sua voz dizendo baixinho, quase como um pensamento:
— Ren? Estou aqui. Não desista
Levantei a cabeça mas não consegui enxergá-la.
— Kelsey? Eu estou ouvindo você, mas não posso vê-la. Onde você está?
Assim que coloquei o corpo da falsa Kelsey no chão ele desapareceu. Ouvi a voz de Kelsey mais uma vez:
— Feche os olhos e sinta seu caminho até mim.
Lembrei-me do que Durga havia nos dito:
não confiem em seus olhos. Seus corações e suas almas lhes dirão a diferença entre fantasia e realidade.
Levantei-me e fechei os olhos, deixando-me guiar pelo meu coração. Comecei a caminhar lentamente, até que senti sua mão encostar em meu peito. Abri os olhos e me deparei com o sorriso mais belo do mundo.
Meu coração batia forte, me dizendo que era ela. Ergui a mão e toquei seu cabelo. Depois me afastei e perguntei se era ela mesmo, só pra ter certeza.
— Bom, eu não sou um cadáver cheio de larvas de varejeira, se é o que você quer dizer.
Eu sorri.
— Que alívio. Nenhum cadáver cheio de larvas de varejeira seria tão sarcástico.
— Bem, e como eu sei que é você de verdade?
Pensei um pouco sobre isso. Então a puxei para perto de mim. Nossos corpos ficaram tão próximos quanto possível. Encostei meus lábios nos dela e a beijei suavemente.
Os lábios dela responderam ao toque dos meus. Beijá-la era delicioso. O cheiro dela e seu sabor me deixavam ávidos por mais.
Então, quase sem perceber, o beijo mudou, ficou mais intenso. Minhas mão percorriam os braços, costas, ombros e pararam no pescoço, que eu segurava levemente. Ela por sua vez, colocou os braços ao redor da minha cintura e me apertou com força.
Eu a desejava mais que tudo. Mas ainda tínhamos um longo caminho a percorrer, então, me afastei dela e olhei para seu rosto. Após alguns segundos ela disse:
— Mesmo que não seja você de verdade, eu fico com esta versão.
Eu ri satisfeito e aliviado por estarmos novamente juntos.
— Kells, acho melhor você segurar minha mão pelo resto do caminho.
Ela sorriu. Parecia feliz.
— Sem problema.
Caminhamos de mãos dadas enquanto vária imagens falsas de Ren e Kelsey tentavam chamar nossa atenção. Seguimos em direção a uma luz até sairmos daquele túnel.
Quando estávamos bastante longe daquele lugar, paramos diante de um rio e comemos barras de cereais enquanto conversávamos. Eu disse a ela que preferia evitar as árvores e seguir pelo leito do rio. Ela concordou.
Após o descanso, seguimos rio abaixo. A margem era cheia de pedras lisas. Kelsey apanhou uma e ficou brincando com ela distraidamente. De repente Kelsey parou e me chamou. Ela estava observando as pedras no rio e disse:
— Ren! Olhe ali. Debaixo d’água— disse apontando para as pedras preciosas que cintilavam ali embaixo.
— Está vendo ali? Um rubi do tamanho de um ovo de avestruz!
Ela se abaixou para pegar uma pedra, sem perceber a criatura que emergia. Eu a envolvi em meus braços e a puxei. Ainda com ela em meus braços, sussurei em seu ouvido apontando para a criatura:
— Olhe adiante. Ali, com o canto do olho. O que você vê?
— Não estou vendo nada.
— Use sua visão periférica.
Então ela viu a criatura parecida com um macaco branco, sem pelos. Seus braços longos estavam estendidos na direção dela.
— Ele estava tentando pegar você.
Ela largou a pedra que estava em sua mão.
— Estou achando que são kappa.
— O que são kappa?
— Demônios da Ásia dos quais minha mãe costumava me falar. Eles ficam na água, à espreita de crianças, para pegá-las e sugar-lhes o sangue.
— Macacos-cavalos-marinhos-vampiros? Você está falando sério?
— Parece que são reais. Minha mãe falava sobre eles quando eu era pequeno. Contava que as crianças na China aprendiam a demonstrar respeito pelos mais velhos curvando-se. Diziam-lhes que, se não se curvassem, os kappa iriam pegá-las. Sabe, os kappa têm uma depressão no alto da cabeça que fica cheia de água. Precisam ter água nessa concavidade para sobreviver. A única maneira de se salvar se um deles o perseguir é se curvando.
— Como o ato de se curvar pode salvar alguém?
— Se você se curvar para um kappa, ele terá que repetir o gesto. Ao fazê-lo, a água no topo da cabeça derrama, deixando-o indefeso.
— Bem, se eles podem sair da água, por que não nos atacaram?
— Em geral atacam apenas crianças, ou pelo menos foi o que me disseram. Minha mãe contou que a avó dela costumava entalhar o nome das crianças em frutas ou pepinos e então os atirava na água antes de banhá-las no rio. Os kappa comiam os frutos e ficavam satisfeitos, assim não machucavam as crianças no banho.
— Sua mãe seguia essa tradição?
— Não. Éramos da realeza e tínhamos o banho preparado para nós. Além do mais, minha mãe não acreditava nessa história. Ela só nos contava para que compreendêssemos a essência, que era a de que todas as pessoas e coisas precisam ser tratadas com respeito.
— Gostaria de saber mais sobre sua mãe. Parece ter sido uma mulher muito interessante.
— E era. Eu também gostaria que ela tivesse conhecido você. Aquele ali estava tentando pegar você, embora supostamente só ataquem crianças — falei apontando para o demônio no rio — Estes devem ter sido designados para proteger as pedras preciosas. Se você houvesse apanhado uma delas, eles a teriam puxado para debaixo d’água.
— Por que me puxar para debaixo d’água? Por que simplesmente não saltar sobre mim?
— Os kappa em geral afogam suas vítimas antes de tirar seu sangue. Eles se mantêm na água o máximo possível para se protegerem.
Agora que o rio também apresentava perigo, resolvemos caminhar no meio, longe das árvores de agulha como da água, onde os Kappa permaneciam. Eu mantinha a gada comigo, caso precisasse atacar as árvores ou os demônios.
Caminhamos por horas nos desvencilhando dos inimigos, até que chegamos diante de uma árvore enorme que bloqueava o caminho. Seus ramos longos e serpenteantes estendiam-se impossivelmente em nossa direção, as agulhas projetadas para a frente.
Eu resolvi atacá-la. Me abaixei e dirigi-me em alta velocidade na direção na planta, lançando-me contra ela, com a gada em mãos. Suas folhas me envolveram totalmente, mas eu consegui atingi-la com força suficiente. A árvore estremeceu e me soltou.
Caminhei na direção de Kelsey, muito satisfeito por ter conseguido. Mas quando vi seu rosto fiquei muito preocupado. Ela estava boquiaberta olhando assustada à sua frente.
Aproximei-me dela que apontou adiante. Quando olhei fiquei tão surpreso quanto ela.
A árvore estivera bloqueando nossa visão e, agora que ela havia se dobrado sobre si mesma, eu podia ver adiante o reino fantasmagoricamente cinzento de Kishkindha.
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