Kiku to Higanbana escrita por Tsuchimikado


Capítulo 5
Com a chegada da primavera


Notas iniciais do capítulo

Este é o último capítulo que eu já tinha deixado pronto, então talvez demore um pouco até lançar o sexto. Agradeço desde já pela paciência!

Início da primeira fase: O advento das estações
Primavera

Termos utilizados:
— Gakuran: Tipo de farda masculina utilizada em alguns colégios japoneses.
— Seifuku: Tipo de farda feminina utilizada em alguns colégios japoneses. Também conhecida popularmente como "Uniforme de marinheiro"
— Ofuda: Papel utilizado por monges ou onmyoujis para realizar feitiços ou afastar demônios.



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"Gentil a brisa

Efêmera a vida

Na primavera"

Não é fácil acordar para o primeiro dia do ano letivo. Alunos bocejando, cheios de preguiça, são uma vista comum. Isso era o que Ikari, acostumado a acordar cedo, percebeu no caminho para o colégio.

“Primeiro dia no Ensino Médio...”, pensou enquanto apoiava a bolsa nas costas com uma das mãos, abrindo um sorriso de canto de rosto. “É, o Shun provavelmente vai se atrasar...”

Vestido em seu gakuran azul-marinho, Ikari pôs a mão no peito para tentar controlar o nervosismo. Ele olhou ao redor, todos vestidos de forma semelhante: Os rapazes com o mesmo gakuran, já as garotas com um seifuku azul-marinho e laço branco. Seus colegas, ou talvez veteranos.

Seu sorriso só durou um breve minuto.

“Eu já tava pensando que tinha a chance de uma vida normal e tranquila. Por que eu fui me meter nessa história de onmyouji...”, pensou enquanto dava um tapa na própria testa com uma força pouco acima do normal, alertando alunos próximos. “Falando nisso, como será que eles vão entrar em contato comigo? Quer dizer, eu sei que a Anego disse que ia entrar em contato por mim. Como será que ela fez isso?”

Com uma expressão pensativa, Ikari entrou pelo portão do Colégio Musubime, uma instituição de ensino pública local. Não era uma escola academicamente impressionante ou atleticamente digna de nota, apenas mais um colégio que você encontraria perto de casa. Ikari a escolheu justamente por isso.

Calmamente ele caminhou pelo amplo pátio repleto de árvores, cerejeiras que já haviam parado de florir, conferiu sua sala e se dirigiu para o prédio. Ele pensava estar agindo de forma bem natural, quando na verdade estava rígido como uma engrenagem enferrujada.

Os corredores eram largos e bem iluminados. Outros jovens, uniformizados, conversavam por lá. Alguns pareciam amigos de tempos passados, já outros pareciam estar ainda se conhecendo. O rapaz teve um bom pressentimento enquanto observava as copas das árvores balançando pela janela.

Mas um obstáculo se pôs em sua frente. Por algum motivo desconhecido a porta da sala estava fechada e emperrada. Ele tentou abri-la sem sucesso. Tentou com mais força e ela mal deslizava. Sem perceber, começou a ser irritar.

Com os dentes cerrados fez ainda mais força e abriu a porta com um estrondo, atraindo olhares de toda a sala. Ikari se apercebeu da situação conforme percebia os cochichos que surgiam. Quis esconder a cicatriz e arrancar a trança nesse momento.

“Será que já pensam em mim como um delinquente?”, pensou suando frio.

Lembrou-se de seu primeiro dia do fundamental. Um bando de veteranos tentou intimidá-lo, dizendo que ele parecia convencido demais com aquela aparência e tentaram espancá-lo. Ikari revidara e fora suspenso por uma semana, a qual passou com a consciência pesadíssima. Não tardou para surgirem boatos do “delinquente de trança”, e Shun não ajudava nem um pouco, visto que ele mesmo se metia frequentemente em brigas.

Com o passar do tempo a sua situação acabara se resolvendo, então ele não se desesperou por isso.

Ikari suspirou e pensou:

“Tudo bem, é só não chamar mais atenção...”

— Ikari! Bom... dia! – exclamou uma voz feminina sincronizada com uma pressão em suas costas. Logo em seguida ele sentiu algo passando por ambos os lados de seu pescoço e prendendo-se nele.

— Ei, espera. Quê? – se perguntou Ikari, surpreso.

Ene ria enquanto abraçava o rapaz por trás. Por terem quase a mesma altura ela não precisava de muito esforço para alcançar seu pescoço. Ikari, ao perceber a situação, corou enquanto seus olhos pareciam buscar um lugar para fugir.

— Ei, Ene... – comentou ele baixinho – Me solta, tá todo mundo olhando...

— Ah, foi mal! Foi mal! – desculpou-se com uma expressão totalmente isenta de culpa.

Ikari sentiu cochichos e olhares invejosos queimarem por fora de seu campo de visão, mas decidiu ignorá-los enquanto soltava um sorriso nervoso.

Quando observou melhor a garota, porém, sua preocupação sem sentido desaparecera. Seus longos cabelos rosados estavam presos com uma tiara azul-marinha em cima e soltos pelas costas. Junto de seus olhos azuis-claros, ela realmente se destacava no seifuku.

— Cai bem em você... – comentou Ikari sem pensar muito.

Ene soltou um risinho.

— Obrigada! O uniforme também combina com você!

— Mas mais importante, o que você tá fazendo aqui? – perguntou Ikari baixinho enquanto reparava, aliviado, que aos poucos deixavam de ser o centro das atenções.

Ene bateu continência descontraída com um largo sorriso.

— Kamui-san me mandou pra cá como missão! Ele disse que eu tô responsável por você!

— Ah, certo... Estou em seus cuidados... – Ikari dizia enquanto sentiu uma presença se aproximando.

— Ora, ora, ora! O que eu estou vendo aqui? – ouviu-se a voz de Shunsuke enquanto ele passava um dos braços pelo pescoço de Ikari – Não só estou na mesma sala que meu amigão Ikari, assim que eu chego ele já tá cantando uma gatinha antes mesmo da aula começar... Como assim você tomou a iniciativa antes de mim? – ele finalizou com um olhar profundo e ameaçador.

O rapaz de cabelos castanhos, presos por uma tiara, também trajava o uniforme. Este, porém, estava desabotoado, com a camisa interna por fora da calça.

— Cala a boca, Shun... – Ikari afastou o olhar, envergonhado. Depois deu uma leve cotovelada afastando o garoto – Mal chegou e já tá fazendo uma cena...

Ikari exalou ar, cansado.

— Você tá muito frio comigo, Trancinha... – choramingou Shun – Não vai me apresentar à sua nova amiga não? Ela é bem gata... – finalizou com uma tentativa de sorriso sensual.

— Ah, certo. Não é bem uma nova amiga, essa é Kunie Ene, uma amiga de infância minha, apesar de não a ver há muitos anos. Ene, esse é...

Shun bateu na mesa mais próxima, assustando algumas pessoas desatentas, e levantou seu tom de voz. Seu olhar era de desprezo.

— Pera aí, que história de amiga de infância é essa? Eu, Takenaka Shunsuke, sou seu amigo de infância! – lágrimas e um sorriso desesperado se formaram na segunda metade da frase. – Você tá me trocando, cara?

— Ei, você é muito barulhento... – reclamou Ikari, já se irritando.

— Cara, como assim ela é sua amiga de infância?! Eu sou seu amigo de infância desde os nove anos, cara! Como ela pode ser sua amiga de infância e não minha amiga de infância?

— Eu conheço Ikari desde oito! – disse Ene levantando a mão com animação, como se fosse para pedir sua vez de falar.

Shun a observou em silêncio por uns segundos depois começou a chorar no ombro de Ikari.

— Isso é injusto, eu só queria uma amiga de infância gata pra voltar junto pra casa depois da escola...

Ikari, sem expressão, apenas deu tapinhas nas costas do rapaz.

— Talvez começar a namorar, ir a encontros com uma pessoa que não só é sua namorada como sua amiga...

Ikari continuou sem expressão, mas aos poucos seu rosto ficava vermelho.

— Vai ficar tudo bem, cara. Você supera...

— Se você perder a virgindade antes de mim eu te mato, desgraçado! – disse Shun com um olhar obsessivo, atraindo ainda mais olhares na sala. Ene encarava como se não entendesse bem o fluxo da conversa.

— Se você continuar agindo assim, tô vendo que você vai ter que me matar mesmo. – Respondeu Ikari, devolvendo-lhe um olhar irritado.

— Agora que ela voltou pra sua vida você vai me trocar? – voltou a choramingar. – É porquê ela fica melhor com uma tiara que eu?

— Você é um cara, claro que isso não fica bem em você... – pensou Ikari, já cansado. – Relaxa, você pode ser um tremendo idiota, mas eu não vou te trocar! – finalizou com um sorriso amigável enquanto mostrava o punho.

Com o que foi dito, Shun parecia ter voltado à sua postura normal.

— Bem, mas é claro. Somos amigos! – disse em sua atitude descontraída, devolvendo um “brofist”. – De qualquer forma, foi mal, e prazer conhece-la, Ene-chan! Qualquer amiga do Ikari é minha amiga também!

— Oh, digo o mesmo, Shun! – concluiu ela animada.

  O sinal tocou e Shun vagarosamente se aproximou de sua cadeira, casualmente cumprimentando garotas no caminho. Elas pareciam evitá-lo.

  Ikari coçava a nuca com um sorriso nervoso.

— Foi mal pelo Shun, ele é meio idiota mas é um cara bom lá no fundo...

— Ele é engraçado, eu gostei dele! – Disse Ene.

— Ele normalmente é mais tranquilo, mas fica assim quando eu falo com uma garota que ele não conhece. Ele é meio competitivo... – concluiu Ikari cansado.

— Tudo bem. – Disse Ene enquanto se encaminhava para sua cadeira – Ah, isso me lembra, vamos pra sua casa depois da aula? Tem umas coisas que preciso falar contigo!

Ene falou isso um pouco alto demais, o que atraiu olhares furiosos para Ikari, incluindo de Shun. Ele resolveu ignorá-los por hora e andou até sua cadeira.

— Que bela primeira impressão, hein... – comentou consigo mesmo enquanto o professor entrava na sala.

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— Como eu ia dizendo... – soltou Ene enquanto andava à frente de Ikari, seus longos cabelos balançando ao vento – O Kamui-san me deixou responsável por você, eu tenho que te ensinar umas coisinhas pra você se tornar um onmyouji, sabe? O básico do básico...

Ene continuou tagarelando, sempre à frente. Às vezes se equilibrando em algum muro, às vezes no meio-fio. O ar infantil dela contrastava em muito o ar refinado de quando conversava com as garotas da sala.

— Oh, chegamos! – exclamou a Ene não muito tempo depois. – Dojô do Punho do Crisântemo! Esse nome é legal!

Ikari olhou sério para a placa por um momento, movendo então sua boca em um sorriso.

— É, é bem legal mesmo! – concordou enquanto entrava. – Anego, estamos em casa!

Lin trocara seu tradicional vestido chinês por uma roupa mais prática para a luta. Ela vestia uma calça negra folgada que se assemelhava à que Ikari usava nos treinos e uma blusa arroxeada de mangas curtas ao estilo chinês.

Seus movimentos eram graciosos e longos, tais como os de tai chi. Se você forçasse um pouco a vista era quase como se ela estivesse guiando o fluxo de um rio pela gentil palma de sua mão. Seu rosto tinha uma expressão serena, quase como se sua alma não estivesse ali, ou talvez estivesse, mas ocultada por uma beleza simples e profunda. Ikari e Ene observavam impressionados a perfeição da técnica.

Seus braços faziam longas e sinuosas curvas enquanto ela se movia como uma dançarina. Seu trabalho de pés impecável fazia parecer que ela deslizava, ou melhor, flutuava. Talvez fosse só impressão de Ikari, mas a brisa parecia em perfeita sincronia com a movimentação da mulher. Isso fez os pelos do garoto se eriçarem.

  Após finalizar a sequência que praticava ela respondeu com gentileza a Ikari:

— Bem, vindo de volta! E você também, Ene!

— Valeu, Anego! – disse a garota com empolgação.

— Anego? – se perguntaram os irmãos.

— Posso te chamar assim? – pediu a Ene com brilho nos olhos – É que parece tão maneiro!

Lin soltou um risinho.

— Bem, eu não me importo.

— Ei Anego, podemos usar o dojô? – Disse Ene. Lin não fez objeção, mas seu rosto parecia perguntar o motivo – Hoje vamos começar o treinamento onmyouji de Ikari!

Foi por um breve momento, mas Ikari percebeu. Os olhos de Lin ficaram profundos e seus lábios se retraíram, uma visão não tão incomum, mas não menos incômoda. Ela sempre fazia isso quando não gostava de uma situação. Mais do que não gostar, quando algo a angustiava, mas que nunca era capaz de dizer aos outros.

— Bem... – Ela concluiu – Vou me retirar então. Melhor deixar que treinem em paz.

— Ah, não precisa se preocupar, não vamos ocupar tanto espaço assim! – disse Ene. – E se quiser você pode ver o nosso treino! Apesar de que hoje vai ser meio chato... – finalizou ela com uma expressão pensativa.

De fato, o salão era grande e parecia impensável que três pessoas sequer precisassem usar toda a área. Nem mesmo os treinos de luta entre os irmãos precisavam de tanto espaço, normalmente Lin sequer precisaria de metade do dojô para derrubar Ikari.

— Não, não, eu realmente preciso sair, tenho uns assuntos a resolver. – Disse a mais velha enquanto tomava um momento para respirar. Ela não tinha uma gota de suor em seu corpo. – Preciso preparar o jantar, qualquer coisa que precisarem eu estarei na cozinha.

E assim ela saiu cantarolando do local, deixando apenas os dois mais jovens juntos. 

— Certo... Por onde começamos? – perguntou o Ikari tentando quebrar o gelo.

A outra levou a mão ao queixo enquanto uma parecia fazer força para pensar.

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Era possível sentir algo rastejando por seus braços, sob sua pele. No esquerdo, coberto até os ombros por uma bandagem, uma dormência associada a tremores. No direito, formigamento, não, mais do que isso... Era como se pontas de faca fossem lentamente perfurando a sua carne, mas sem que houvesse sangramento.

Suor escorria pelo seu rosto enquanto ele fugia por becos e ruelas. O rapaz tomou um momento para recuperar seu fôlego se escorando em uma parede. Seu cabelo negro, desalinhado, chegava até seus olhos, estando o esquerdo coberto por um tapa-olho prestes a se soltar. Seu olho descoberto tinha uma tonalidade marrom e aparentava cansado.

Ele ouviu passos se aproximando e voltou a correr, silencioso como uma sombra.

— Corram, seus imprestáveis! Ele tem de estar por aqui! – soou uma voz grave e ofegante.

Seu punho esquerdo se apertou na bainha branca escamosa, seu punho direito se apertou na bainha negra lisa.

 

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— Vamos começar com Reiki! – exclamou a Ene, vestindo seu kimono com listras negras, combinando com a saia de mesma cor. Seu olhar parecia triunfante.

— Ah, sim. Aquilo de poder da alma e tudo o mais, né? – Perguntou descontraído enquanto se alongava. Ele também havia se trocado e trajava sua camisa vermelha com o dragão dourado nas costas e as calças negras.

— Essa definição não está totalmente correta, Ikari-dono... – disse Ene com um sorriso melancólico e olhos mortos, assustando Ikari. Suas palavras saíam como se recitasse um livro. – Reiki vem da união de duas palavras: “Rei”, a energia cósmica divina, e “Ki”, a energia mundana do homem. O Rei é a sabedoria em todas as coisas, já o Ki é o que lhes dá vida. Quando elas se encontram, naturalmente elas coabitam e se tornam acessíveis por nós. É o poder que reside em nós moldando o poder da existência e vice-versa...

— E-Ene, tá tudo bem contigo? – perguntou ele com receio.

Como se estivesse para chorar ela cobriu o rosto com as mãos.

— Foi horrível, Ikari. Kamui-san me fez ler até decorar isso... Eu pensei que meus olhos fossem cair da cara...

— C-certo, tá tudo bem...

— Enfim, vamos ao que importa! – retornou ela, determinada. – Tem muito mais do que isso, é toda uma filosofia que eu também não entendo. O que você precisa saber é que é uma energia que existe em nós e no mundo à nossa volta e além. Conecta a gente a tudo e, quando a canalizamos, nos dá poder!  - enquanto ela dizia isso segurava um pedaço de papel com inscrições em sua mão esquerda, um ofuda. Ele começou a brilhar e, como em resposta, uma lança passou a se materializar em energia branca em sua mão livre.

— Certo! – concordou o rapaz, ainda sem entender exatamente.

Ene percebeu isso em sua expressão e riu.

— Bem, é mais fácil eu te mostrar! – disse Ene, subitamente batendo no chão com o cabo da lança – Vamos abrir o seu corpo!

Ikari empalideceu.

— Você não vai usar essa lança, vai? – perguntou Ikari com um sorriso receoso.

— Huhuhu, será que vou precisar dela?

— Eu acho que prefiro meu corpo inteiro, obrigado... – praticamente implorou o rapaz enquanto observava a arma e sua longa lâmina, como a de uma partazana.

Ela olhou para a arma e riu mais uma vez.

— Ah, relaxe, não é literalmente. Tá mais pra uma meditação.

— Então fale logo esse tipo de coisa... – Ele comentou em um suspiro

— Mas assim não teria graça! – Ela respondeu com uma expressão emburrada.

Ene sentou-se com as pernas cruzadas e deu tapinhas no tatame para que Ikari fizesse o mesmo, próximo a ela. Ela pediu que estendesse as mãos e o rapaz se surpreendeu quando ela as segurou.

— Já falei, relaxa, você tá muito tenso!

— Foi mal... – disse o rapaz focando seu olhar em qualquer outro lugar. Suas mãos pareciam tenras, mas Ikari pôde sentir calos. Calos pelo uso da lança, ele pensou. Isso o impressionou. – Eu tô pronto!

 

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Sua respiração estava pesada, seus pelos eriçados e sua pele pegajosa de suor. O frio em sua barriga era intenso. Suas pupilas, dilatadas, forçavam uma estranha contração horizontal.

Ele sentiu a cobertura do lado esquerdo se desfazer. Silenciosamente lutou com sua vontade, encarando a bainha cujas escamas brancas se remexiam.

“Vamosss Arato! Eu essstou com fome!”, uma voz sibilante permeava sua mente.

“Cala essa boca...”, retrucou em um engasgo retraído.

Com a mão descoberta ele aproximou a ponta da bainha negra da outra. Esta começou a se remexer mais, e Arato sentia um olhar penetrante através da lâmina escondida direcionado para si. Como um animal faminto, a negra começou a entrar na branca, que parecia devora-la. No fim, somente havia uma espada, guardada na bainha áspera e animalesca.

Arato, cansado, suava frio. Sua visão estava fria e ele estava febril.

“Hihihi, agora temosss trêsss!”, jubilou a voz sibilante enquanto o tapa-olho preguiçosamente caía...

E revelava uma íris amarela circundando uma pupila reptiliana.

 

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Ene observava com um sorriso de canto de boca enquanto Ikari, com os olhos fechados, canalizava uma energia ao redor de si. Ela era vermelha, intensa, e o cobria como se estivesse no centro de uma fogueira. Atrás de si e acima de sua cabeça flutuavam dois ofudas, como que controlando o ritmo.

No início ela precisava segurá-lo, como se estivesse aprendendo a andar de bicicleta, mas assim que ele pegou o jeito ela permitiu que ele meditasse por si só. Ele parecia um pouco tenso. Ela, por outro lado, estava bem tranquila. Uma leve luz branca a revestia, como se fosse sua silhueta.

“É tão lindo”, pensou.

Ikari se concentrava nas instruções: Manter um ritmo constante e leve, caso contrário sabe-se lá o que poderia acontecer com seu corpo. Talvez ficasse extremamente cansado, como na última luta, ou talvez ocorresse algo pior.

— Muito bem, acho que isso basta para abrir seu corpo! – disse Ene, quebrando a concentração de Ikari. No mesmo instante ele abrira os olhos e parara de emitir a aura de chamas. – Não, não era pra parar! – Concluiu ela um pouco atrapalhada.

— Ah, foi mal! – se desculpou ele, forçadamente fechando os olhos e tentando puxar a energia de si sem sucesso.

— T-tá tudo bem! Só vai com calma! – disse ela gritando – Com calma!

— Então se acalme primeiro! – pediu Ikari, ainda com os olhos fechados.

— Ah, ok... – ela concordou com um sorriso nervoso, logo recuperando sua compostura. Limpou sua garganta e continuou – Bem, apenas relaxe, você tá tentando forçar sem deixar fluir...

Com suas palavras, a aura que Ikari apresentava antes aos poucos se recuperava. Ela se levantou e começou a falar enquanto vagava pelo dojô ao redor dele.

— Então, como você se sente?

Ikari demorou para responder.

— É estranho... Eu me sinto cheio de energia, mas ainda assim não agitado... E eu sinto você... – essa afirmação surpreendeu a garota – Só que tá meio apagada...

— Sim, você está sentindo o Ki. Mas ainda precisamos trabalhar um pouco no Rei! A energia cósmica!

— E como eu faço isso? – perguntou o moreno, mais uma vez abrindo os olhos e quebrando a estabilidade da sua aura.

— Eu não mandei parar! – repreendeu a Ene com autoridade. – Enfim, eu preciso te ensinar a se conectar com o Rei pra depois te ensinar a pular nas sombras!

— O que acontece se eu “pular nas sombras”?

— Aí você vai parar em Taiyin, o mundo oposto ao nosso! Ah, só pra dizer, lá em Fukuoka a gente chama de saltar nas sombras, mas aqui parece que eles gostam de chamar de portal das sombras...

“O mundo dos espíritos”, pensou o rapaz. Ene continuou com um sorriso infantil:

— Acho que você vai gostar de lá! É tudo tão mais louco que aqui, mas também é muito divertido! Agora presta atenção em mim! – concluiu dando tapas simultâneos na bochecha do garoto e colocando seu rosto bem à frente do dele. – Sabe aquela história de Fio Vermelho do Destino?

Ikari se distraiu um pouco com o dedo mindinho da garota balançando à sua frente.

— Sim. – Respondeu.

— Bem, ele é meio que verdade! O Rei também inclui a ligação entre pessoas. Você tava me sentindo até agora a pouco, né? Foca nisso até você ter uma imagem bem nítida de mim! Depois foca até você achar a sua irmã ou mais alguém. Dá pra imaginar essas conexões como um fio mesmo, é só você se guiar por ele até a outra pessoa, facinho!

— É, não parece tão difícil...

— Com o tempo você vai perceber um fio que não leva a lugar algum, daí é só segui-lo e bam! Você saltou nas sombras!

“É, eu acho que isso parece fácil até demais...”, pensou Ikari um pouco desconfiado.

— Bem, ao trabalho seu molenga! – exclamou a garota com um rosto mandão e cutucando-o com o pé.

— Certo, certo...

 

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Ikari perdeu a noção do tempo enquanto meditava. Os roncos de Ene ao seu lado desde que jantaram não ajudavam muito com a concentração, mas de alguma forma ele sentiu que progrediu bem. Sentir Ene era fácil. Depois ele sentiu Lin no andar superior, ela parecia estar escovando os cabelos.

O tempo passava e Ikari pôde sentir cada vez mais conexões. Os pássaros nos postes, as árvores, os vizinhos, até mesmo o vento parecia carregar um pouco de energia. Era informação demais para assimilar e ele sentia uma pontada na cabeça cada vez que começava a perder o foco. Ainda assim ele estava empolgado, e a cada segundo parecia mais fácil.

As formas não eram precisas, mas de alguma maneira ele sabia onde estava cada coisa e como ela era. As linhas imaginárias de energia eram disformes e permeavam a si e todas as coisas, e não pareciam exatamente presas, mas flexíveis e mutáveis.

Chegou até mesmo a pensar se era sua imaginação ou se ele realmente estava sentindo as estrelas. A pequena presença no fundo de sua mente estava lá novamente, mas parecia estar... dormindo? Quando tentou investigar sentiu um frio na espinha que o impedia de prosseguir.

E lá estava, um “fio” que não se ligava a nada. Sua presença era ínfima, mas era claro como o dia que ele diferia dos outros.

“Daí é só segui-lo e bam!”, Ikari questionou se era tão simples “Só vou saber se tentar, né?”

E a noite silenciosa, interrompida apenas por roncos, se ocupava por sons bagunçados vindos de todas as direções. Conversas, passos, calor, aos poucos Ikari absorvia tudo isso sem se perguntar demais para não quebrar sua concentração.

Em sua mente não encontrava mais os inúmeros fios de há pouco, perguntou-se se deveria parar, já estava cansado.

— Ei garoto, sai do meio! – soou uma voz grossa.

— Ah, foi mal! – o garoto respondeu por reflexo, abrindo os olhos e se levantando.

Seu queixo só não caiu por estar colado à cabeça.

— Moleque estranho, tinha que ser humano... – a figura gorda vestindo um folgado kimono se afastava – Vê se não fica aí atrapalhando os outros no meio da rua...

Ikari estava acostumado com um ou outro youkais aparecerem do nada, mas ele jamais imaginava que encontraria tantos em um único lugar.

O lugar estava lotado e ele começou a se sentir tonto. 


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Notas finais do capítulo

Mais explicações e um pouquinho de comédia novamente. O que acharam?

Novamente essa semana tenho uma arte de AnnLet, dessa vez com o Ikari em uma versão mais "mangá"! Eu fiquei tão feliz com isso que não consigo nem descrever!

Até o próximo capítulo!



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