Kiku to Higanbana escrita por Tsuchimikado


Capítulo 1
Aquela noite de primavera na qual nos conhecemos


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Venho aqui novamente com essa minha fic!

Essa fic tem uma longa história, na qual nunca estive satisfeito com seu formato final, mas agora eu finalmente me decidi (eu espero)! Estou dando tudo de mim na escrita e realmente tenho me divertido, então espero que seja divertido para os leitores também!

Caso Não tenha ficado claro, esta fic utiliza um estilo semelhante a mangás shounen em sua escrita, então perdoem alguns exageros!

Algumas palavras estão escritas de forma diferente ao correto no português (como karatê, ou kimono), mas o fiz assim para aparentar melhor na leitura!

De qualquer forma, espero que gostem, aqui está um sumário com os termos utilizados no capítulo, caso necessário. Boa leitura!

??” Chan: Honorífico de tratamento carinhoso, normalmente associado com diminutivo.
??” Shihan: Instrutor chefe de artes marciais, independente da graduação.
??” Saquê: Bebida tradicional japonesa obtida pela fermentação do arroz.
??” Dojô: "Local do caminho". Onde se treinam artes marciais.
??” Kiai: grito usado em artes marciais, considerado uma forma de exteriorizar a energia corporal.
??” Shidoin: Instrutor intermediário de artes marciais, independente da graduação.
??” Inari: deus xintoísta da colheita, fertilidade e prosperidade. Seus templos comumente possuem raposas como animais guardiões. Atualmente a segunda divindade mais cultuada no japão. Também é cultuado em alguns templos budistas.
??” Hachiman: deus xintoísta da guerra, protetor dos guerreiros e protetor divino do japão e do povo japonês, além de também ser adorado como deus da agricultura. Com o sincretismo ele foi deificado como um "bodhisattva" pelos budistas e é atualmente a segunda divindade mais cultuada no japão.
??” Youkai: Criaturas sobrenaturais do folclore japonês.
??” Kappa: Um tipo de youkai anfíbio-reptiliano.
??” Maneki Neko: Mais conhecido como "gato da sorte".
??” Kimono: Vestimenta tradicional japonesa.
??” Miko: "Noiva do santuário", são as "xamãs femininas" de templos xintoístas.
??” Kumite: Modalidade de luta para artes marciais. Normalmente usada em treinos.
??” Anego: Modo de falar "Irmã mais velha", mais puxado pra "mana". Associada com delinquentes femininas.
??” Yukata: Vestido tradicional japonês, normalmente usado no verão.
??” Kenpo: Forma japonesa de se referir ao Kung Fu.
??” Aniki: Equivalente masculino para "Anego", seria algo como "irmão mais velho", mais puxado para "mano".
??” Itadakimasu: Dito tradicionalmente antes de refeições.
??” Katana: Espada tradicional japonesa.



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“Você é fraco, ___-chan, e um covarde!”

Aquele sorriso desconcertante em meio às chamas proferindo tais palavras, essa era uma cena que Ikari jamais poderia esquecer. Nem mesmo se quisesse.

No instante seguinte ele estava sentado na cama, suando, seus olhos vidrados no nada e suas mãos tremendo, sua respiração estava irregular e ofegante e seu rosto ardia. Mais especificamente a sua cicatriz ardia.

Não sabe quanto tempo passou até se acalmar completamente, mas quando o fez, sentiu seu corpo frio. Seus olhos inconscientemente buscaram a janela.

— Ah, já é de manhã... – falou consigo mesmo.

Ikari estava de férias escolares, mas ainda assim mantinha um hábito de acordar cedo. Os primeiros raios de sol ainda alcançavam Quioto e os subúrbios pareciam ainda mais calmos nesse horário, fazendo sua boca se mover em um sorriso melancólico. Ele balançou a cabeça, se espreguiçou e seguiu seu caminho.

Chegando ao banheiro ele se olhou no espelho e quase se assustou com a cara horrível que via. Seu cabelo negro e desgrenhado já tinha franjas atingindo suas sobrancelhas e passava de seus ombros atrás. Perto de seus olhos verdes se viam olheiras e... Sua cicatriz...

Logo abaixo da linha dos olhos, de uma ponta a outra, uma cicatriz horizontal cortava a sua face. Ela não era tão profunda, mas também não era bonita, e ele sabia que ela jamais iria sarar. A ardência o fez inconscientemente levar seus dedos ao rosto.

“Não adianta ficar remoendo isso...”, pensou consigo mesmo sem muita certeza.

Tratou de lavar o rosto e logo amarrou a parte de trás de seu cabelo em uma trança. Com confiança, sorriu para seu reflexo.

“Bem melhor!”

Logo antes de descer as escadas vestiu sua roupa de treino favorita: Calças negras folgadas e uma camisa vermelha de mangas compridas. Essa camisa possuía botões dourados ao estilo chinês, com um dragão de mesma cor estampado em suas costas. Vesti-la fazia-o se sentir mais corajoso.

Saindo pelo corredor e descendo as escadas chegou a um cômodo bem espaçoso, forrado por tatame e recheado de gravuras, armas, equipamentos de treino e bonecos de madeira: O dojô.

Com muita flexibilidade, o moreno começou a se alongar até se sentir pronto quando de repente pareceu lembrar-se de algo:

— Que droga, hoje é o dia de entregar o saquê pro Takenaka-shihan! – disse dando um tapa na própria testa e depois suspirando – Bem, o treino vai ter de esperar...

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Do alto da escadaria uma vista panorâmica da cidade lhe mostrava a beleza das cerejeiras passando por entre construções antigas e novas. Quioto, a “capital milenar”, realmente era bela durante a primavera. Não importava quantas vezes Ikari subisse para o templo, o esforço parecia valer a pena.

Ele vestia-se com as mesmas roupas chinesas do seu dojô, com a adição de sapatilhas pretas, completando seu visual de artista marcial chinês. Em suas costas um barril enorme de madeira estava preso com grossas cordas, e ele parecia carrega-lo com relativa tranquilidade.

— Oh, é o Ikari! É o Ikari! – exclamou uma voz animada.

— Ikari, você trouxe comida? – perguntou outra mais calma.

— Bom dia, Unbou, Seikobou, não, hoje eu só trouxe saquê! – respondeu o moreno sorrindo.

Para uma pessoa comum, Ikari aparentava conversar sozinho, o que seria muito estranho. O que outros não percebem é que Ikari conversava com as duas estátuas de raposa que decoravam os portões do templo.

Ambas as estátuas possuíam lenços em seus pescoços, como que para identifica-las. No lenço de um, o mais animado, estava escrito o ideograma para “Fortuna”, já para o outro o de “Sucesso”. Unbou, o primeiro, carregava em sua boca uma chave, já Seikobou carregava um pergaminho.

Para qualquer passante as estátuas permaneciam imóveis, mas Ikari não só as via como raposas vivas como também era capaz de conversar com elas.

— Oh, que droga!

— Uma verdadeira pena...

— Não fiquem mal, eu tinha esquecido que tinha de vir hoje, na próxima eu trago alguma coisinha pra vocês! – disse ele mais uma vez rindo enquanto entrava no templo.

“Templo dos guerreiros e da prosperidade”, pensou Ikari lendo a placa, “Mesmo depois de anos vindo aqui esse nome ainda é estranho...”

O pátio central parecia-se com o de um santuário budista qualquer. Monges carecas com vestes brancas e pretas varriam o chão ou cuidavam das plantas, todos com evidente serenidade no olhar. A paz reinava, ao menos até que começassem a notar a chegada de Ikari.

— Ooooh, Ikari chegou! – exclamou um mais jovem.

— Ikariiiii, trouxe o saquê?! – perguntou um mais rechonchudo.

— É o saquê da senhora Suzuki! Obrigado por trazer até aqui em cima, Ikari! – disse um que parecia mais velho.

Logo uma roda se formara ao redor de Ikari, todos praticamente babando pelo conteúdo do barril nas costas do garoto. Ikari sorria ironicamente com o canto da boca enquanto apoiava o que carregava no chão.

— Calma aí seu monte de monges beberrões, tem pra todo mundo... – comentou ele com um suspiro – Então, cadê o Takenaka-shihan?

— Ele tá nos fundos, lá no dojô.

— Certo, valeu! Tentem não beber agora, o dia mal começou! – disse o moreno deixando o barril no lugar enquanto adentrava o templo.

De uma forma geral o lugar parecia bonito, como sempre. O pátio de pedra estava bem varrido, os jardins de areia estavam bem organizados e os lagos estavam limpos. O templo era praticamente uma segunda casa para Ikari.

Gritos de kiai passaram a ecoar conforme Ikari se aproximava dos fundos. O dojô aberto exibia um grupo relativamente grande de homens truculentos, todos faixas pretas em seus quimonos brancos. À frente um homem alto e careca liderava a todos que ali se encontravam. Seus olhos pareciam em chamas.

— Vamos! Mais vinte repetições, seus molengas! – exclamou.

Ikari entrou, curvou-se e sentou-se no canto até que os treinos terminassem. Por algum motivo eles pareciam com um bando de gorilas bombadões, mas Ikari se dava bem com eles. Todos ali eram enormes, e o professor não parecia perder para nenhum deles.

Quando aquele que ensinava os karatecas finalizou tudo, acabou percebendo Ikari e logo correu em sua direção.

— Oooh, Ikari-shidoin! Já faz um tempinho que você não vem visitar! Cadê a Lin-shihan? – gritou o monge suado abraçando Ikari.

— Shihan, eu vim semana passada, nem faz tanto tempo assim... – reclamou o garoto tentando se livrar do agarrão enquanto acenava pros karatecas que por ele passavam.

— Eu sei, mas é que o álcool tinha acabado muito rápido... – respondeu-lhe o homem com olhar choroso.

— Sabe, você pode simplesmente descer até a cidade e buscar...

— Como assim? Esse é o seu trabalho, pegaria mal um monge descer só pra comprar álcool... – comentou o maior com um rosto confuso. – Além disso você mora pertinho da loja da senhora Suzuki.

— E tá tudo bem alguém de menor trazer? – perguntou Ikari com um olhar sem emoção.

— Detalhes, detalhes! – dispersou o maior com tapinhas nas costas de Ikari – Onde você deixou o barril?

— Lá no pátio central com os outros monges.

— Aaaaaaah, que erro! Eles vão beber tudo!

Takenaka Masaru era um homem alto. Certamente bem mais que Ikari. Normalmente ele trajava suas vestes de monge, mas todas as manhãs ele podia ser visto no dojô do templo ministrando aulas de karatê para aqueles que queriam “tornar-se verdadeiros guerreiros de corpo e alma”.

A careca desse “monge-guerreiro” quarentão certamente se destacava, mesmo entre os monges.

— Eu conheço vocês há anos e ainda me pergunto que tipo de monges vocês são...

— Ora, obviamente somos os monges da guerra e da prosperidade! – exclamou ele em meio uma risada. – Você vive fazendo essa pergunta!

— E o senhor sempre dá a mesma resposta... O que isso deveria significar? – perguntou Ikari esboçando um sorriso – Não é tão incomum templos budistas também cultuarem divindades do xintoísmo, mas Inari e Hachiman ao mesmo tempo é incomum até demais!

— Não é nada! De qualquer forma, o treino acabou. Quer comer algo? Ainda não tomei café.

— Nah, valeu. Eu só queria ter chegado um pouco mais cedo pra treinar junto, mas tinha me esquecido que era dia de trazer o saquê...

— Hunf – bufou Masaru – Essas férias estão deixando você mole, Ikari-shidoin! Mas ainda assim você é muito mais diligente que aquela desgraça do meu filho...

Ikari riu.

— O Shunsuke já acordou?

— Não, e se deixar quieto sabe-se lá quando ele vai acordar... Aquele preguiçoso vive matando treino!

— Não seja tão duro com o Shun, Takenaka-shihan, ele não faz por mal... – pediu Ikari, tentando remediar a situação.

— Eu tenho de ser, Ikari! Ele não vem mais treinar, ele não quer saber de herdar o templo e ele não se dedica em nada aos estudos! Nesse ritmo ele vai virar um vagabundo! Quer saber, eu vou acordar ele agora! Espere aqui!

— Calma, calma, não é pra tanto... -  disse Ikari com um sorriso nervoso enquanto o monge caminhava furioso para fora do dojô.

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Escorado na cerca de madeira, Ikari observava um dos lagos do templo. Vindo de uma parte mais alta da montanha o corpo d’água era límpido, cristalino. Lá dentro, um kappa nadava preguiçosamente, ocasionalmente recebendo os raios solares que faziam seu caminho pelas copas das árvores.

Ikari acenou para o réptil, o qual retribuiu o cumprimento com um sorriso no rosto. Seres espirituais são especialmente comuns de se ver no Templo dos Guerreiros e da Prosperidade, então não surpreendia Ikari encontrar um ou outro por ali. Alguns que habitavam a região também estavam familiarizados com Ikari.

Perdido em pensamentos, a atenção de Ikari retornou para o presente ao ouvir um miado. Ele estava pouco à sua frente, do outro lado do lago, um gatinho branco com uma enorme moeda de ouro presa às costas.

“O que é isso? Parece um... maneki neko?”, se perguntou o rapaz enquanto se inclinava sobre a cerca.

Isso não o surpreendeu tanto assim, mas o que vira a seguir sim. Surgindo das folhagens uma figura vestida de branco saltitava. Uma garota, e humana ainda por cima.

As mangas largas de seu kimono de miko chegavam até seus pulsos. Os detalhes, comumente vermelhos, eram pretos, assim como sua saia, que chegava até metade da coxa. Calçava sapatilhas pretas com meias brancas que subiam praticamente até onde a saia terminava. Em uma de suas mãos portava uma lança que facilmente era maior do que si.

Seus longos cabelos róseos balançavam contra o vento, e com seu movimento se podia ouvir o som do sino que os prendiam na ponta. Graciosamente ela parou perto do gatinho e se agachou. Seu rosto estava coberto com o que parecia uma máscara de madeira, mas Ikari não pôde identificar exatamente o que era.

“Uma pessoa... Uma garota... que também pode ver youkais?”, se perguntou o moreno com surpresa.

— Está perdido, bebê? – perguntou ela enquanto pegava o dócil maneki neko. – Pobrezinho...

Subitamente ela pareceu ter percebido algo e virou-se para Ikari, que a observava com muito interesse. Por um instante seus olhares se entrelaçaram e o moreno pareceu preso dentro da profundidade de seus olhos azuis-celestes. Ele queria dizer algo, mas não conseguia, era uma visão simplesmente hipnotizante. Talvez ele parecesse um idiota, encarando-a desse jeito, mas não se importava.

Quando finalmente conseguiu juntar um pouco de coragem para falar algo, um chute forte em sua bunda apareceu, acordando-o para a realidade.

— Ah! – exclamou de dor – Shun, seu desgraçado, pra quê isso?

— Pra ver se dou um jeito nessa tua cara de retardado! – brincou garoto de cabelos castanhos que acabara de chegar.

Ikari fez uma cara de emburrado enquanto passava a mão onde tinha sido chutado. Quando retornou a visão para o lago a garota havia desaparecido tão subitamente quanto havia chegado. O rapaz suspirou.

“Será que eu só imaginei isso?”

— Qual é, pra que ce tá tão pra baixo? – perguntou o outro apoiando as costas na cerca.

Takenaka Shunsuke tinha a mesma idade e aproximadamente a mesma altura de Ikari, mas seu semblante era muito mais descontraído. Seu cabelo castanho tinha uma franja  um pouco maior que o de Ikari, e estava preso para cima por uma tiara. De resto ele se vestia de forma bem casual, uma camisa comum e calças jeans.

— Você usa tanto isso aí na cabeça que eu juro, um dia isso vai grudar e não vai sair mais... – comentou Ikari um pouco mais calmo.

— Assim eu vou ter desculpa pra usar isso no colégio! – disse o outro animado – Tenho de fazer minha estreia no ensino médio em grande estilo, né?

— É, vão chamar a gente de “dupla delinquente” de novo... – soltou Ikari com um olhar entediado. – Você tem é que cortar esse cabelo...

— Olha quem fala, senhor “trancinha”! Além disso, eu acho que daqui a pouco essa tua roupa de kung fu vai sair andando sozinha de tanto que você usa!

Ikari sorriu enquanto pegava na gola de sua blusa. Ele quase podia sentir o dragão em suas costas. Seu corpo parecia se encher de determinação com o pensamento.

— Tá querendo brigar? – desafiou Ikari em tom de brincadeira – Falando nisso, o Shihan tava irritado contigo por faltar o treino de novo!

Algo atingiu o rapaz de novo, mas dessa vez era macio. Quando Ikari olhou para Shun, este segurava um par de luvas de karatê em sua direção.

— Kumite! – exclamou Shun. – O velho reclamou que eu preciso praticar um pouco, e já que você tá aqui, vai me ajudar!

Ikari sorriu e estralou os dedos.

— Não me culpe se você acabar chorando! – riu Ikari.

— Chorando? Irmão, eu vou chutar a tua bunda tão forte que você não vai nem conseguir sentar! – Exclamou Shun em tom de desafio.

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— Fala sério, desde quando você é tão forte assim, Ikari? – perguntou um Shun com a cara coberta de marcas de soco, amenizadas pelas luvas de karatê.

— Desde que você parou de treinar. E para de chorar que já tem um boooom tempo que você não me vence!

— Tá, tá, tanto faz. Mas fala aí, você vai pro festival hoje?

— A Anego tá querendo ir, talvez eu vá junto. Vocês vão montar uma barraca lá esse ano também, né? Soba de novo?

— Soba de novo. Passa por lá que a gente te dá um pouco de graça, e pede pra Lin-san ir de yukata, pode até não estar quente ainda, mas eu tenho certeza que ela vai ficar muito sexy... – pediu o outro com uma face sonhadora.

— Você sabe bem que ela prefere usar vestidos chineses... - O rosto de Ikari claramente dizia “é sério isso?”, mas ele preferia não comentar.

— Hm, eles caem muito bem nela também, talvez eu até vá treinar contigo de vez em quando, só pra ver mais a Lin-san com vestido chinês, me ensinando kenpo... Mesmo assim acho que ela poderia variar e representar um pouquinho a beleza japonesa!

Ikari suspirou como alguém que desistia de argumentar.

— Mas... E o Aniki? – perguntou Shun – Alguma notícia dele?

— O de sempre, já faz três anos que não temos nem um único sinal dele...

— Que pena, sinto saudades do cara, ele era legal... – comentou Shun.

— É, eu também sinto... – comentou Ikari.

Fez-se um silêncio um tanto melancólico.

— Bem, eu vou indo, te vejo mais tarde... – comentou Ikari se levantando. – Tenho de ir treinar um pouco!

— Ei, nossa luta não serviu de nada?

— Serviu, de aquecimento! – brincou Ikari enquanto saía.

Shun sorriu enquanto ele ia embora. “Exibido”, pensou.

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Era costume todas as primaveras que um festival fosse realizado nos subúrbios onde Ikari residia. Como nem todos tinham a disposição para subir até o templo dos guerreiros, a festividade era realizada no santuário de Inari mais próximo. Lá, comerciantes de todo o distrito, bem como monges, montavam suas barracas e ajudavam na preparação local para que os moradores da região pudessem aproveitar as festividades.

“A noite de primavera”, como era conhecida, sempre acontecia no final da primavera, próximo da volta às aulas. Ninguém sabia explicar, mas por algum motivo as flores de cerejeira pareciam sempre mais bonitas nessa noite do que em todas as outras, seja pelo clima festivo, seja por alguma influência mística, caso acreditasse nisso.

Seja lá no que se acreditasse, a comemoração pelas belas cerejeiras fazia sucesso e o santuário se encontrava lotado como nunca, talvez até mais do que no ano novo.

— Anegô, eu to passando mal, acho que preciso de um pouco de ar... – comentou Ikari, tonto em meio à multidão.

Não tardou para que ele saísse da massa de pessoas e encontrasse um banco para se sentar, ainda segurando o soba que conseguira na barraca dos Takenaka. Uma bela mulher o acompanhava, abanando-o com um leque.

— Desculpa, Ikari-chan, eu sei que você não gosta muito de multidões e eu te arrastei pra cá de novo... – disse Lin.

Ela vestia-se com um belo vestido chinês azul-claro, o que parecia ressaltar seus olhos de mesma cor. Seus longos cabelos cor de noite estavam presos em um coque por uma agulha com uma flor na ponta, um crisântemo. A linda mulher por volta de seus vinte e cinco anos tinha uma atitude maternal para com o rapaz.

— Tudo bem, Anegô, não se preocupe comigo, eu só preciso descansar um pouco...

— Pra quem treina como você, é surpreendente o quão fácil você se cansa quando tem uma multidão envolvida. – ela comentou com um sorriso – Vou buscar algo para você tomar, volto já!

E ela desapareceu na multidão.

Ikari voltou seu olhar para cima enquanto se escorava no banco. Um céu estrelado acima das cerejeiras. “Elas realmente merecem um festival...”, pensou, mas logo interrompeu-se ao ouvir o barulho de sinos.

Ele não sabia como ou porquê, mas esses sinos lhe soavam familiares. Novamente eles soaram e logo ele se viu procurando na multidão sua origem. Quando olhou para trás de si viu um pequeno morro, no topo do qual residia uma cerejeira solitária. Não perdeu tempo e subiu para observar de cima.

O sino soou novamente, dessa vez mais perto. Ikari virou-se para o som e mais uma vez estava ela lá, a garota de branco. Ela parecia quase planar, caindo de forma graciosa na sua frente.

Mais uma vez seus olhares se cruzaram, o azul-claro e o verde-musgo pareciam igualmente profundos. Ikari não sabia descrever o que estava acontecendo, mas por detrás de uma máscara de tigre feita de madeira, os olhos da garota pareciam igualmente surpresos.

E eles se chocaram. Como Ikari não estava preparado para isso, logo os dois caíram juntos, com o garoto batendo suas costas contra a grama macia.

— Ai, mas que diabos... – comentou até perceber que ela jazia por cima de si, com a cabeça sobre seu peito. O rapaz corou imediatamente, lutando consigo mesmo para manter a compostura. – E-ei, você está bem? – tentou toca-la.

Mole, a garota rolou um pouco para o lado, saindo de cima do rapaz. Assim como ele, ela estava de costas para o chão com seus braços e pernas esparramados. Ikari não pôde compreender, mas ela parecia querer dizer algo. Ele se apressou para retirar sua máscara.

A jovem aparentava ter a sua idade. Sua pele clara, junto de seu cabelo rosado e fracos olhos azuis faziam-na parecer uma boneca. O moreno pôde sentir seu coração bater forte por estar tão perto dela, mas mais uma vez tentou se convencer de que não era hora pra isso.

— Eu... – ela tentou dizer em uma voz suave, quase inaudível.

Ele se aproximou para escuta-la melhor.

— Estou morrendo...

E o coração de Ikari bateu forte mais uma vez, esta com pesar, tornando-se praticamente silencioso em seguida. Mil pensamentos passaram por sua cabeça sem que ele realmente soubesse agir quando a voz da garota soou novamente.

— De fome... – concluiu com a cara caindo para o lado de uma forma idiota.

Os olhos de Ikari pareciam pontos e ele se sentia como um idiota. Pelo menos a situação não era tão séria quanto pensava. Ele apoiou a jovem e viu que ainda segurava a caixa de soba, intacta. Sem muita pressa a pegou e abriu perto do nariz da jovem, que acordou com um vigor assustador.

— Er... Pode comer... – ofereceu Ikari sem jeito.

Com essas palavras ela pôs a lança de lado por um momento e pegou a caixa da mão dele. Sem hesitação ela engoliu seu conteúdo como água. Isso deixou Ikari bem assustado, mas ele estava perplexo demais para dizer qualquer coisa.

Assim que terminou de comer ela olhou para o rapaz e pareceu ter se lembrado de algo. Seriamente ela juntou as mãos e disse:

— Itadakimasu.

— Não, acho que está um pouco tarde pra isso... – comentou o moreno.

Ela tornou os olhos para o garoto com genuína curiosidade e começou a mexer com ele, como se fosse um gatinho.

— E-ei, para, o que é isso? – perguntou o rapaz diante da atitude estranha da rosada.

Seus dedos passaram pelos cabelos, orelha e nariz do rapaz até que ele percebeu que não adiantava discutir e se aquietou com uma cara emburrada. Por fim ela tocou e percorreu sua cicatriz devagar e gentilmente.

Nenhum dos dois percebeu, mas emanando de ambos a grama parecia ressoar em sucessivas ondas com um ritmo calmo, mas constante.

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Sozinho, iluminado somente pelo luar, um homem sentava-se atrás de uma mesa em um escritório. Seus olhos de raposa observavam sem evidente interesse alguns papéis em sua mão. Ele arrumava preguiçosamente os óculos quando algo o fez soltar a papelada.

Levantando-se da cadeira no mesmo momento ele observou a janela atrás de si com uma espécie de surpresa curiosa no olhar.

“O que... foi isso?”, pensou.

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Caminhando por uma rua deserta, um rapaz de cabelos vermelhos como chamas cantarolava. O sobretudo marrom que ele vestia balançava com o vento, ocasionalmente revelando uma katana em sua cintura. Como se tivesse sentido algo, os pelos de sua nuca se eriçaram e seu rosto se contorceu em um desconcertante sorriso.

— Então você estava aqui em Quioto? Ótimo, isso é ótimo!

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— Sim, não tenho dúvidas! – os lábios da garota se abriram em um sorriso de genuína felicidade – Você é o Ikari!

Ikari, por sua vez, permanecia ali sentado, encarando-a, sem entender a situação. Apesar dessa garota lhe ser estranha ela falava como se o conhecesse. Isso era estranho, mas no fundo essa garota lhe passava um sentimento de nostalgia.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam?
Não tenho muito o que dizer aqui ainda, mas espero que o capítulo tenha ficado interessante. Logo virá o próximo capítulo, obrigado pela leitura!